11 Março 2017
Na primavera de dezesseis séculos atrás, em Alexandria, no Egito, uma mulher foi assassinada. Foi agredida na rua, despida, arrastada para a igreja "que tomava nome do césar imperador", a Cesárea, conforme relatado por uma das fontes contemporâneas do fato, o historiador eclesiástico de Constantinopla: Sócrates, o Escolástico. Ali, ela foi estraçalhada com cacos pontiagudos. Enquanto ainda respirava, seus olhos foram arrancados. Em seguida, os restos de seu corpo desmembrado foram jogados na fogueira. O massacre foi executado por fanáticos cristãos, os chamados parabolanos (monges incumbidos de cuidar e enterrar doentes contagiosos), originários do deserto da Nítria, mas, de fato, violentos milicianos ao serviço de Cirilo, o então poderoso e beligerante bispo da megalópole do Egito, fértil em trigo e intelectos, matemática e poesia, música, gnose e filosofia.
A reportagem é de Silvia Ronchey, publicada por la Repubblica, 08-03-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
O nome dessa mulher era Hipátia, e esse nome, em grego, evocava a ideia de "eminência". Quem ela era nos recônditos mais secretos de sua eminente personalidade e o que teria feito para atrair sobre si a sádica violência masculina coletiva que a matou, não temos mais como saber. Melhor, sabemos o que não era e do que certamente não era culpada. Conhecemos as máscaras que a propaganda, fantasia ou simplesmente a incurável tendência humana para a manipulação e mentira, sobrepuseram à sua pura aparência de filósofa platônica. A historiografia aproveitou-se dela, a literatura transfigurou-a e traiu: cientista castigada por suas descobertas, heroína protofeminista, mártir da liberdade de pensamento, iluminista e romântica, livre-pensadora e socialista, protestante, maçom, agnóstica, vestal neopagã e até mesmo santa cristã. Mas Hipátia não era nada disso.
Na Alexandria do século V, Hipátia pertencia à aristocracia intelectual da escola de Plotino e, da tradição familiar, herdara a sucessão (diadoché) de seu ensino. Uma cátedra pública, onde ensinava "para quem quisesse ouvir, o pensamento de Platão, de Aristóteles e de outros filósofos", como narram as fontes antigas. Nesse sentido, ela também era um cientista: a sabedoria transmitida nas escolas platônicas incluía a ciência dos números e o estudo dos astros. Portanto, também era uma matemática e uma astrônoma, mas no sentido antigo e pré-científico.
Não fez nenhuma descoberta, não antecipou nenhuma revolução copernicana, não foi um Galileu mulher. Tudo o que sabemos é que, devotamente, compilou o texto crítico do terceiro livro do Almagesto de Ptolomeu, para que seu pai, Theon, pudesse apresentar seu comentário, e compôs pessoalmente comentários didáticos para aqueles que eram os livros-texto da época: as Crônicas de Apolônio de Perga, e a Álgebra de Diofanto. Não foi certamente por isso que foi assassinada.
Além de filósofa platônica, Hipátia foi uma carismática. Havia, nas academias platônicas, um aspecto esotérico que envolvia a transmissão de conhecimentos "secretos" - no sentido de não acessível a iniciantes - que diziam respeito ao divino. Além do ensinamento público (demosia), que desempenhava no Museu, ou em outros lugares no centro da cidade, temos conhecimento de reuniões "privadas" (idia), que realizava em sua casa, em um bairro residencial afastado, cercado por verdes jardins. Foi no caminho de carruagem entre um e o outro lugares, que foi agredida e morta.
A fúria de Cirilo, que de acordo com testemunhos da época foi o mandante de seu assassinato, foi desencadeada justamente pela descoberta dessas reuniões. Porque essas reuniões traziam Hipátia para o centro da vida, não apenas cultural, mas, especialmente, política de Alexandria. Porque reuniam em uma parceria intelectual e política as elites pagãs da cidade, convertidas ao cristianismo compulsivamente depois deste ter sido proclamado a religião do Estado pelos decretos teodosianos. Elites unidas pela vontade de preservar suas tradições e crenças: aquela “educação helênica” que ainda se chamava de paideia, aquele “modo de vida grego” que o discípulo predileto de Hipátia, Sinésio, definia como "o método mais fecundo e eficaz de cultivar a mente".
Às reuniões desse tipo de maçonaria, nas quais a classe dominante de Alexandria, pagã, cristã, e talvez até mesmo judaica, comparecia para fazer frente às mudanças e para proteger seus interesses na transição de uma para outra hegemonia de culto e de pensamento, também participavam membros da classe dominante, enviados pelo governo central de Constantinopla. "Os líderes políticos que vieram administrar a polis foram os primeiros a frequentar a sua casa. Porque, embora o paganismo tivesse acabado, o estudo da filosofia ainda parecia importante e venerável para aqueles que tinham os mais altos cargos da cidade". Até mesmo o prefeito Orestes pertencia àquele círculo mais restrito, se não secreto, onde Hipátia transmitia os ensinamentos que lhe valeram as alcunhas sacerdotais de "mãe, irmã, mestra, patrona", "juíza suprema", "senhora abençoada de divina alma" que aprecem nas cartas de Sinésio ao se referir a ela.
Nesse círculo, Hipátia ensinava, juntamente a outros preceitos típicos das academias platônicas, um conhecimento mais moderado, particularmente útil em tempos de transição. Não era necessário trair a própria fé ou a boa fé para converter-se. O Uno de Plotino e o Deus dos cristãos poderiam se equiparar. As religiões não deveriam lutar entre si porque não diferiam umas das outras se não em detalhes ficcionais projetados para os mais simples. Os mitos dos deuses do olimpo pagão, os dogmas ou crenças "populares" do ensino cristão, entre os quais o da ressurreição da carne, eram destinados para quem não era "filósofo". "A respeito da ressurreição de que tanto se fala, estou muito longe de me conformar com os pontos de vista das pessoas comuns", escrevia em uma de suas cartas Sinésio, aluno de Hipátia, mas também bispo cristão de Ptolemaida.
Hipátia não era apenas mestra e diretora da consciência dos quadros políticos. Era, ela própria, uma política.
As fontes descrevem-na como "eloquente e persuasiva (dialektike) ao falar, ponderada e política (politike) no agir, de modo que toda a cidade tinha por ela uma veneração genuína e prestava-lhe homenagem." O estilo de seus discursos foi tão franco a ponto de ser considerado elegantemente insolente por alguns. Muitas vezes era a única mulher presente em reuniões reservadas aos homens, mas a companhia masculina não lhe causava constrangimento, nem a tornava menos impassível e lúcida em sua dialética.
Hipátia agia como pacificadora nos assuntos da cidade, principalmente nos conflitos religiosos que cobriam Alexandria de sangue. Ela defendia, influenciando o prefeito Augusto Orestes a acompanhá-la, os diferentes grupos das tentativas dos setores fundamentalistas de cada um deles de tomar o comando. Inclusive, pouco antes de ser assassinada, havia defendido a antiga comunidade judaica de Alexandria do pogrom devastador ordenado por Cirilo, cuja ação política tinha duas linhas bem específicas: a luta econômica contra os judeus, que dominavam o transporte de grãos de Alexandria a Constantinopla, e a tendência em "erodir e condicionar o poder do estado para além de qualquer limite já concedido à esfera sacerdotal", conforme relatam as fontes coevas. Essa era a única coisa que a tolerância filosófica de Hipátia não tolerava, e, a esse respeito, a Hipátia política era tão inflexível quanto a Hipátia filósofa era flexível: a ingerência de qualquer igreja no poder secular do Estado.
Isso foi o suficiente, com toda a probabilidade, para motivar seu assassinato, que foi, sob todos os aspectos, um assassinato político. Nada a ver com a ciência, com o feminismo ou com os outros fetiches com que a história do pensamento, da literatura ou da poesia, sempre impelida pelo demônio da atualização e pelo fantasma da ideologia, foi gradualmente transformando o seu rosto ao longo de dezesseis séculos, cristalizando-o em traços tão esquemáticos quanto distantes da verdade, sobrepondo um emaranhado de definições àquela única - embora ainda não universalmente acessível - palavra que os antigos usavam para se referir a ela: filosofia.
A fogueira de Hipátia foi considerada, por alguns, o primeiro caso de caça às bruxas da inquisição cristã. Na verdade, o proselitismo armado por Cirilo contrariava na íntegra a ideia, evidentemente abstrata, de tolerância defendida uma centena de anos antes pelo edito de Constantino (em 313), bem como a tendência conciliadora do cristianismo com o paganismo da elite que o primeiro imperador cristão tinha apoiado politicamente e sancionado legalmente. Cirilo, reivindicando o acesso da igreja à condução da política, aspirava a um verdadeiro e próprio poder temporal real, mais próximo ao promíscuo modelo do papado romano que à rigorosa separação de poderes sancionada pelo cesaropapismo bizantino.
Também por esta razão, talvez, a posição oficial da Igreja de Roma, apesar da gravidade e da natureza hedionda do antigo assassinato de Hipátia, nunca quis questionar Cirilo, sua santidade, sua probidade. Mesmo no século XIX, Leão XIII o proclamou Doutor da Igreja. Na celebração realizada em 2007, Bento XVI elogiou "a grande energia" de seu governo eclesiástico. Mais recentemente, a igreja de São Cirilo de Alexandria foi construída em Roma, no bairro de Tor Sapienza. Hoje, nas imediações dessa igreja, inaugura-se o jardim que o Escritório Toponomastico da Cidade de Roma dedicou a Hipátia, acatando uma petição que não apenas pedia para dedicar-lhe um espaço público, mas de localizá-lo precisamente naquela área.
Porque a tolerância laica certamente não impede de continuar a incluir, entre os santos do calendário, um integralista condenado como assassino pelo tribunal da história. Mas, os fiéis cristãos, têm o direito de recordar a sua antiga vítima e a espiral de consequências engendrada pela intolerância religiosa.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Hipátia - A primeira mulher vítima de um crime político - Instituto Humanitas Unisinos - IHU