08 Março 2017
A constante atuação de Jair Krischke no Uruguai e na América Latina, investigando os casos relacionados à Operação Condor durante a ditadura uruguaia, é, na avaliação dele, a principal razão que explica a ameaça de morte que ele e outras doze pessoas receberam em meados de fevereiro. O trabalho de investigar e denunciar militares que violaram direitos humanos durante a ditadura uruguaia, diz, fez “aumentar o ódio contra a minha pessoa entre os militares”.
O grupo intitulado Comando Barneix, responsável pelas ameaças, segundo Krischke, é composto por “uma turma antiga, ou seja, são os velhos repressores”. “Esses militares querem se ver livres dos processos e investigações. (...) Embora hoje tenha se adotado o nome de Comando Barneix, trata-se dos mesmos militares que se reúnem num grupo chamado Tenientes de Artigas, que funciona como uma loja maçônica – não tem nada a ver com a maçonaria, mas adota recursos da maçonaria, como o segredo. Eles foram responsáveis pelo golpe, ocuparam cargos importantes durante a ditadura e agora fazem parte desse grupo que reage às condenações e processos”, afirma.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Krischke explica como ficou sabendo das ameaças e de que modo tem se mobilizado para receber explicações do governo uruguaio, que “tem sido muito relapso na condução dessas ações”. “Já ocorreram situações graves em outros momentos, as quais nunca foram apuradas: bomba em automóvel de deputados, escritório de ex-presidente da República já foi atacado, e recentemente o prédio da Universidade Nacional do Uruguai, onde atuam os antropólogos forenses, que estão escavando em quartéis em busca de corpos, foi atacado e roubaram de lá o disco duro de computadores, roubaram documentos e ninguém sabe de nada, como se não tivesse acontecido nada”, informa.
Jair Krischke em palestra no IHU
Foto: Acervo IHU
Jair Krischke é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos direitos humanos da região sul do Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Desde quando e por quais razões o senhor está sendo ameaçado de morte? Como recebeu a ameaça?
Jair Krischke – No dia 17 de fevereiro, do Uruguai me avisaram que a revista semanal Brecha iria publicar uma matéria sobre as ameaças que o promotor geral de Justiça do Uruguai havia recebido por e-mail, as quais foram enviadas através do sistema Tor, que impossibilita a identificação do remetente. Depois que o Semanário publicou a notícia, eu comecei a me mover, junto com os companheiros uruguaios que também estão sendo ameaçados, no sentido de pressionarmos o governo uruguaio para que investigue e chegue aos autores da ameaça. Começamos a nos articular porque nos últimos tempos o governo uruguaio tem sido omisso; essa não é a primeira situação em que pessoas foram ameaçadas. Então, acionei a embaixada do Brasil no Uruguai para que ela dissesse o que estava acontecendo em relação a minha pessoa, que sou um brasileiro.
Nesse meio tempo, o chefe da Polícia de Investigações de Inteligência do Uruguai enviou um ofício para o cônsul brasileiro em Montevidéu, pedindo que me comunicasse que eu estava sendo ameaçado de morte. Com isso, a situação se tornou oficial e não apenas um boato da imprensa.
Diante da ameaça, solicitamos uma audiência na Comissão de Direitos Humanos que tem sede em Washington, para que nos atendam pessoalmente, e a Comissão já publicou uma nota especial a respeito do caso, cobrando do governo uruguaio uma investigação. Nos próximos dias a Comissão vai nos comunicar se a audiência será concedida.
Por outro lado, também foi acionada a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados do Brasil, que emitiu três documentos: um deles foi enviado para a Comissão Interamericana, solicitando alguma medida cautelar, como cobrar das autoridades uruguaias a investigação; um segundo documento foi enviado para o ParlaSur, que é o parlamento do Mercosul, que no momento tem presidência exercida por um deputado brasileiro; e o terceiro ofício foi enviado para a procuradora federal que trata dos direitos da cidadania, uma vez que estou sendo ameaçado.
Eu tenho insistido - e já falei com o senador Paulo Paim sobre isso, porque ele me telefonou na sexta-feira - que precisamos que o Executivo brasileiro cobre uma resposta do governo uruguaio, ou seja, é uma convocação para o presidente Temer e para o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira, para que cobrem uma resposta do governo uruguaio.
Sexta-feira também estive na OAB de Porto Alegre, que tem uma comissão de direitos humanos, da qual eu participo. Nessa reunião, os membros entenderam que a OAB deve informar o governador do Estado, a Assembleia Legislativa e o presidente nacional da OAB para que ele se manifeste junto ao presidente da República e ao Itamaraty para cobrar ações. Isso é o que está sendo feito agora.
O governo uruguaio tem sido muito relapso na condução dessas ações. Já ocorreram situações graves em outros momentos, as quais nunca foram apuradas: bomba em automóvel de deputados, escritório de ex-presidente da República já foi atacado, e recentemente o prédio da Universidade Nacional do Uruguai, onde atuam os antropólogos forenses, que estão escavando em quartéis em busca de corpos, foi atacado e roubaram de lá o disco duro de computadores, roubaram documentos e ninguém sabe de nada, como se não tivesse acontecido nada. Então, a pressão que está sendo feita é na direção de que o governo uruguaio investigue o que está acontecendo.
IHU On-Line - Quem são os demais ameaçados? Todos estão envolvidos com pesquisas e investigações sobre a ditadura militar no Uruguai?
Jair Krischke – É um assombro, porque o ministro da Defesa do Uruguai está na lista. Ou seja, o presidente da República tem um ministro do seu governo ameaçado, e não diz nada sobre o caso. Além do ministro da Defesa, está sendo ameaçado o procurador geral da República, uma ex-promotora de Justiça e minha grande parceira na denúncia contra repressores, Dra. Mirtha Guianze, que hoje atua na área dos direitos humanos. Também estão sendo ameaçados advogados que têm atuado em processos contra repressores e três estrangeiros: eu, Louis Joinet, jurista francês, e uma italiana de nome Francesca Lessa, uma moça jovem que atua como pesquisadora na Universidade de Oxford. Em junho do ano passado eu e Francesca estivemos no Uruguai, num seminário tratando de justiça de transição, abertura dos arquivos da repressão do Uruguai, e ela concedeu algumas entrevistas, então acabou sendo notada.
O meu caso é diferente, porque minha presença é constante no Uruguai, com as denúncias dos sequestros de uruguaios em Porto Alegre. Mais recentemente tivemos uma extraordinária vitória no caso do coronel do exército uruguaio Manuel Juan Cordero Piacentini, que trabalhou na operação Condor. Ele era um condor, e foi responsável pela captura e desaparição de uruguaios em Buenos Aires. Ele teve problemas de desobediência com a justiça uruguaia e o juiz o convocou para depor num processo, mas ele não apareceu e fugiu para o Brasil.
Nós começamos a investigar o caso dele e o encontramos em Livramento. À época tomei um avião, fui a Buenos Aires, prestei um depoimento ao juiz que tratava da causa dele e informei que ele se encontrava no Brasil, em Santana do Livramento. A partir daí o juiz pediu a extradição dele e, depois de cinco anos de luta, finalmente se conseguiu que fosse extraditado, quando em janeiro de 2010 ele foi levado para a Argentina. No segundo semestre do ano passado ele foi condenado a 25 anos de prisão e, pela idade, certamente vai morrer na prisão. Esse episódio fez aumentar o ódio contra minha pessoa entre os militares.
IHU On-Line - Como o senhor interpreta a mensagem recebida pelo promotor Jorge Díaz, "para cada suicídio de agora em diante, mataremos três escolhidos aleatoriamente da seguinte lista"? O que é e quem faz parte do Comando Barneix, e qual sua relação com a ditadura uruguaia?
Jair Krischke – Essa é uma turma antiga, ou seja, são os velhos repressores. Recentemente, se chegou à figura do general Pedro Barneix, que até então passava incólume e ninguém havia se dado conta. Inclusive, ele foi cogitado para ser o comandante do exército uruguaio. Mas se descobriu que quando ele era um jovem tenente, participou de uma seção de tortura que terminou com a morte da vítima, e diante dessa descoberta, ele foi denunciado e começou um processo contra ele. Ele teve que depor como réu, não compareceu e a juíza determinou que a polícia fosse a casa dele e o levasse até a presença dela. Quando a polícia tocou a campainha, ele deu um tiro na cabeça. É por isso que o Comando Barneix usa esse argumento de “nenhum suicídio mais”. Mas na verdade eles querem dizer: “não nos processem mais”.
IHU On-Line – Quantos militares da época da ditadura ainda vivem no Uruguai?
Jair Krischke – Nesse pacote de novas investigações, existem atualmente 308 processos na justiça uruguaia contra repressores. Agora, quantos ainda respondem a processos, não sei dizer, porque em muitos processos se repetem as pessoas. Mas trata-se de um número grande de pessoas que ainda estão impunes.
Eu gostaria de chamar a atenção de por que há esse ódio contra a minha pessoa: além do Cordero, eu descobri, em 2014, outro coronel uruguaio em Santana do Livramento. Ele foi responsável pelo assassinato de duas pessoas importantes no cenário político uruguaio: o senador Zelmar Michelini e o deputado Héctor Gutiérrez Ruiz, entre outros. Ele é acusado por esses assassinatos e é réu num processo que corre na justiça penal de Roma, porque algumas de suas vítimas eram ítalo-uruguaias. O coronel pediu cidadania brasileira porque a mãe dele era brasileira, e a Constituição Federal determina que filho de mãe ou pai brasileiros, se residirem no Brasil, tem direito à cidadania. Como ele estava vivendo no Brasil, obteve a cidadania. Mas por que ele fez isso? Porque a mesma Constituição veda a extradição de brasileiros. Então, ele ficou longe da mão da justiça italiana, da argentina e até da uruguaia. Mas ele continua mensalmente atravessando a rua [indo de Santana do Livramento para Rivera] para receber os seus direitos de coronel aposentado.
Esses militares querem se ver livres dos processos e investigações. Na Câmara de Deputados do Uruguai existe uma comissão que trata disso, mas ela anda devagar. Embora hoje tenha se adotado o nome de Comando Barneix, trata-se dos mesmos militares que se reúnem num grupo chamado Tenientes de Artigas, que funciona como uma loja maçônica – não tem nada a ver com a maçonaria, mas adota recursos da maçonaria, como o segredo. Eles foram responsáveis pelo golpe, ocuparam cargos importantes durante a ditadura e agora fazem parte desse grupo que reage às condenações e processos.
IHU On-Line - E qual é o estágio da sua pesquisa sobre a Operação Condor? O senhor teve acesso a novos dados recentemente?
Jair Krischke – Não. O que está em andamento por enquanto é uma investigação do parlamento, que está investigando essas pessoas ligadas à ditadura. Mas, por outro lado, começaram a aparecer documentos secretos que revelam como se dava o aparelho repressivo, e é claro que esses novos documentos vão revelar o nome de outras pessoas. Eu mesmo colaborei com um documento pós-ditadura, que mostra que o exército uruguaio organiza a espionagem em órgãos de imprensa, sindicatos, partidos políticos etc. Essas investigações, mesmo que vagarosas, trazem algo de novo. Se os 308 processos forem acelerados, muita coisa vai acontecer, mas eles não querem isso.
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“Nenhum suicídio mais” quer dizer “não nos processem mais”. Entrevista especial com Jair Krischke - Instituto Humanitas Unisinos - IHU