07 Março 2017
No dia 22 de setembro do ano passado, o governo de Michel Temer resolveu reformar o ensino médio brasileiro. Fez isso por meio de uma Medida Provisória (nº 746), causando uma grande reação. Ao longo de cinco meses, o texto passou pelas duas casas legislativas. Aprovado com pequenas mudanças, foi sancionado pelo presidente no dia 16 de fevereiro deste ano, mesmo sendo considerada por muitos estudiosos, estudantes e entidades um verdadeiro “retrocesso social”.
Em entrevista à Cátia Guimarães da EPSJV/Fiocruz, 06-03-2017, o professor Domingos Leite Lima Filho, da Universidade Tecnológica do Paraná, situa a reforma no contexto da crise política que o país atravessa e analisa as principais consequências dessas mudanças para a educação profissional. Ele acredita que a criação de um itinerário formativo de educação técnica para o ensino médio visa jogar os jovens que dependem da escola pública precocemente no mercado de trabalho, antes mesmo de terem concluído a educação básica.
Na prática, diz, essas mudanças vão empobrecer o currículo, gerando uma formação mais aligeirada e operacional, que castigará especialmente os filhos da classe trabalhadora. O professor ainda ressalta que as experiências exitosas que acontecem na rede pública, principalmente as de ensino médio integrado à educação profissional, estão ameaçadas.
Foto e Fonte: EPSJV/Fiocruz.
Eis a entrevista.
Uma das principais mudanças trazidas pela reforma é a criação de itinerários formativos como opções que as escolas podem oferecer no currículo. Mas há quem diga que a LDB hoje já permite essa organização e que a grande novidade mesmo seria a inclusão de um itinerário específico de educação técnica e profissional como parte do currículo do ensino médio. Qual a sua avaliação sobre essa medida?
Eu considero uma regressão social na concepção da educação profissional e tecnológica. Mas acho que primeiro temos que procurar compreender o quadro no qual se institui esta reforma, pontuando-a como desdobramento do golpe midiático, parlamentar e institucional vivido no país em 2016. A concepção de uma educação profissional tecnológica plena e integrada é uma concepção de direito social. E todo o quadro instituído neste golpe em curso é de ataque aos direitos sociais. A gente vê claramente isso em outras medidas correlatas como o congelamento [do gasto público] por 20 anos, a própria reforma trabalhista, a reforma da Previdência, a lei da mordaça na educação... Isso evidencia que de fato há um quadro de acirramento da luta de classes num momento em que as elites buscam suprimir políticas plenas. Então, por exemplo, quando saem nos grandes jornais e redes de televisão notícias sobre o itinerário formativo do ensino técnico-profissional, os atores falam que querem ir imediatamente para o mercado de trabalho. Ou seja, já embute uma terminalidade precoce no processo educacional.
É nesse contexto que se dá essa proposição de itinerário formativo, com dois argumentos que, a meu ver, são falsos e contraditórios: a flexibilidade e o protagonismo juvenil, e a escola de tempo integral. A reforma começa discutindo uma espécie de concepção curricular e esquece que o grande problema que nós temos na educação brasileira é a falta de estrutura: professores, laboratórios, bibliotecas, equipamentos, ou seja, condições de funcionamento. A segunda questão, que é da falsidade desse argumento, é dizer que os alunos terão protagonismo de escolher. Ora, na verdade, a grande maioria das escolas brasileiras, convivendo com os quadros de dificuldade que têm, não terão condição de ofertar esses itinerários formativos. No caso específico da formação profissional – que exige equipamentos, laboratórios, espaços de trabalho –, nessas escolas sem condição estrutural, não terá como haver uma oferta de qualidade, e muito menos como escola de tempo integral. Ainda mais num quadro contraditório em que o mesmo contexto político acaba de aprovar por 20 anos o congelamento dos investimentos.
O contexto é de um governo curto, que assume após um impeachment, com a intenção de aprovar um conjunto de reformas estruturais, como a da Previdência e o congelamento dos gastos públicos. Mas por que uma reforma do ensino médio seria estratégica para esse governo, a ponto de ser instituída com tanta pressa, por medida provisória?
Eu diria que nós vivemos um quadro em que o governo que foi instituído pelo golpe tem uma tarefa específica, mas nem por isso está desligado dos interesses mais gerais das classes rentistas. A tarefa específica deste governo é preparar o terreno com rapidez e radicalidade, se aproveitando desse quadro de desmobilização que foi, inclusive, induzido com muito apoio midiático, parlamentar e até institucional. Ou seja, o governo aí colocado não tem nenhum compromisso com o diálogo social, por isso ele está atacando frontalmente os direitos. No momento vivemos num país onde, até na mais alta Corte, se diz claramente que “a legalidade está questionada, a regra é que não existem mais regras”. O capital impõe a retirada do máximo possível de direitos sociais e de políticas públicas.
A reforma da Previdência e a reforma trabalhista são claras em relação a isso. Você pergunta: não é surpreendente colocar também uma reforma de ensino médio? Visto de uma maneira superficial, seria surpreendente, mas se nós aprofundarmos o quadro de conquistas de direitos, vamos ver que temos ainda uma grande quantidade de jovens estudantes brasileiros, ou jovens trabalhadores, na idade do ensino médio que não estão na escola. Essa grande parcela da população demanda política pública de inclusão na escola. Mas se avançar a política de conclusão do ensino médio, você terá também que fazer investimento na universidade pública, e isso esbarra no contexto geral de corte dos gastos públicos. Isso se nós pensarmos no ensino médio realmente como etapa final de educação básica, porque eu acho que uma das grandes questões dessa reforma ao instituir o itinerário de formação técnico-profissional é suprimir esse caráter que a LDB trazia do ensino médio como etapa final da educação básica. Ou seja, ao formar o técnico profissionalmente precoce, induzindo à entrada imediata no mundo do trabalho, tenta-se reduzir a demanda pela educação superior.
Isso é novidade no país?
Não. Se regressarmos a 40 anos atrás, no contexto da Lei 5692, ou ainda mais para trás, vamos ver que, de fato, do ponto de vista da redução dos gastos públicos, interessa empurrar para o mercado de trabalho uma grande parte da classe trabalhadora. Agora, para que mercado de trabalho? Um mercado de trabalho no qual o país não tem um projeto de soberania, mercado para o trabalho simples, precário. Claro que, além da questão imediata, o governo tem pressa porque sabe que rapidamente esses argumentos vão cair. A crise no país se acirra, então ele tem que ser rápido, aproveitar enquanto ainda há no Congresso e na mídia condição que permite avançar na retirada de direitos. Agora, o grande drama disso é que, exatamente por não reconhecer os grandes problemas da educação pública brasileira, essa reforma está fadada ao fracasso naqueles argumentos que ela usa. O jovem vai ter flexibilidade de escolha? Não, ele vai escolher o que a escola oferecer. E não há nenhuma perspectiva de melhoria das condições estruturais das escolas.
A integração entre a educação profissional e a educação básica, entre conhecimentos do mundo do trabalho e conhecimentos gerais, foi sempre uma bandeira dos grupos progressistas ligados à educação. O texto dessa reforma traz a educação profissional como um itinerário formativo a ser escolhido pelo estudante. Por que não é a mesma coisa?
A reforma simplesmente faz terra arrasada da experiência educacional brasileira, como se o ensino médio que nós temos no país fosse de uma qualidade ruim e inadequada, como se precisasse mudar tudo. E aí, foca-se no currículo. Nós sabemos que temos muitos problemas na educação média brasileira e esses problemas decorrem das condições estruturais que eu já mencionei. Mas a própria população sabe que nós temos excelentes exemplos de como o ensino médio funciona bem na educação brasileira. Não é uma questão só de defesa de concepções progressistas ou não: há o reconhecimento social, por exemplo, da experiência de ensino médio integrado feito nos antigos e atuais Cefets e nos atuais institutos federais. Eu tenho sempre um olhar muito acurado quando sou apresentado a dados de avaliação [educacional]. Mas os próprios defensores da reforma muitas vezes mencionam o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] e o Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, na sigla em inglês], que é referência internacional, para avaliar a educação. Neles, os estudantes do ensino médio dessas escolas públicas têm resultados espetaculares. A média dos estudantes da rede federal no Pisa supera a própria média da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico]. Esses são dados pouco conhecidos e divulgados. E vale dizer que esses institutos e Cefets praticam o ensino médio integrado. Por que não se trabalha com esse exemplo?
Essas boas experiências estão calcadas numa concepção de formação humana e integral que, inclusive, está nas diretrizes curriculares para o ensino médio vigente, que não foram revogadas mas não tiveram suporte estrutural para implantação até hoje. Essa é a concepção que diz que a educação básica deve dar ao cidadão a condição de compreender o mundo em que vive e atuar neste mundo com vista à sua transformação. Isso requer um currículo que integre conteúdos que permitam conhecer não só a dinâmica de uma profissão específica, mas também os processos sociais de organização, as leis dos sujeitos sociais, os processos produtivos – não na sua superficialidade prática, mas com conhecimento de ciência e tecnologia que permita compreender as relações e as diferenças sociais, a história dos países e sua relação no contexto mundial, ou seja, elementos culturais.
E a reforma não caminha nessa direção?
Não. A perspectiva é que, ao fatiar o ensino médio em diferentes itinerários, nós teremos um empobrecimento das escolas públicas com a redução dos conteúdos e da formação. Quem pagará com isso? A formação das camadas populares, dos pobres, dos trabalhadores. Quanto aos ricos e aos filhos dos ricos, os pais farão pressão para que as escolas privadas continuem oferecendo um currículo amplo, com a perspectiva de um processo formativo para além de um mero itinerário imediato e com uma continuidade, inclusive, no ensino superior. Faltaria verificar e valorizar esses bons exemplos que já estão na escola pública, inclusive para desmistificar essa história de que o ensino público não funciona. Ora, a nossa experiência está mostrando que o melhor ensino médio do país é feito em escolas públicas e que adotam o ensino médio integrado.
Quais são as principais consequências dessa reforma para a educação profissional?
Primeiro, é uma retomada da dualidade estrutural. É uma formação profissional precoce, que opera com uma terminalidade. Esse tipo de formação é essencialmente prática, operacional – aí nós vamos entender um dos artigos da reforma, que é a flexibilização total no que se refere aos profissionais que trabalharão como professores na educação profissional pelo estabelecimento do notório saber. E, por fim, isso talvez também explique a pressa dessa reforma: é que, no campo específico da educação profissional, ela está prevendo a utilização de parte do fundo público do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação] pela iniciativa privada para [oferta de] educação profissional a distância, mediante parcerias com organizações sociais, fundações de direito privado etc. Não é por acaso que se destacam entre os principais apoiadores da reforma a Confederação Nacional da Indústria, o Sistema S, o movimento Todos pela Educação, as fundações empresariais, como Unibanco, Lemann e Instituto Ayrton Senna.
É necessário resistir para evitar a dualidade estrutural, é necessário resistir contra a perda da qualidade e o empobrecimento do currículo. Aliás, aqui não se trata só da educação profissional: está-se dizendo que foi recuperada a obrigatoriedade da educação física, arte, sociologia e filosofia na votação no Senado, mas isso é falso. O Senado usou um artifício dizendo que é obrigatório ter conteúdos curriculares nessas temáticas, mas isso não quer dizer que vá ter um professor de educação física, um de artes... Esses conteúdos vão ser desenvolvidos em qualquer disciplina, de qualquer maneira. É necessário resistir ao empobrecimento do currículo e do profissional docente. Dizer que qualquer professor serve para a educação profissional é dizer que os que vão se formar precisam só de uma operacionalidade prática. Não é que não seja importante a experiência do mundo do trabalho, pelo contrário, nós defendemos a necessidade da união entre teoria e prática. E isso inclui a teoria do aprendizado e da reflexão, que é aquela de que nós, profissionais da educação, nos apropriamos quando fazemos um curso de licenciatura. Mas a reforma diz que, se é para formar um trabalhador operacional, basta repetir a experiência e a prática. Enfim, é necessário resistir a esse incentivo à privatização e à perda de direitos sociais e perspectivas para os adolescentes e jovens das classes populares do Brasil que frequentam a escola pública e que serão os principais prejudicados pela implementação dessas medidas de agressão social.
Essas experiências públicas exitosas que você citou, que hoje são de ensino médio integrado, poderão ser ameaçadas por essa mudança na legislação? Você falou também na necessidade de resistir. Como fazer dessas escolas espaços de resistência?
Essa reforma tem, inclusive, um problema que inicialmente é terminológico. Ela estabelece uma denominação do itinerário formativo como “formação técnico-profissional”. Na legislação brasileira, inclusive na LDB, o termo que nós temos é “educação profissional e tecnológica”. Se esta reforma segue adiante – porque, inclusive, dadas as próprias contradições da inexistência de recursos para investimento, eu já ouvi comentários de que ela será implementada somente a partir do final de 2017 ou mesmo no ano que vem –, num primeiro momento nós teremos um conflito de natureza organizativa. Porque toda a parte da legislação brasileira que está nos parágrafos da LDB que se referem à educação profissional e tecnológica não foi mudada, continua lá e isso inclui o ensino médio integrado. A reforma mexeu especificamente nos artigos da LDB que tratam do ensino médio, estabelecendo aí um itinerário formativo chamado formação técnico-profissional.
Então, nós teremos uma orientação, pelo menos, confusa. Por conta da experiência positiva dessas escolas, é importante falar: nós temos uma regulamentação e uma prática vigentes, vamos segui-las. Obviamente, sabemos que não se trata só de definir que orientação legal seguir, depende da política de financiamento e se a gestão apoiará essas iniciativas. Então, acho que pela perspectiva de resistência, uma das estratégias mais fundamentais será a das redes públicas de divulgarem essas experiências junto à sociedade no sentido de buscar a sua defesa. Não dá simplesmente para a reforma dizer: então o ensino médio integrado está extinto. Não, ele continua vigente, regulamentado na LDB.
Ainda sobre o modelo do ensino médio integrado, principalmente na rede federal: em entrevista para uma reportagem anterior da Poli sobre essa mesma reforma, o representante do Ministério da Educação reconheceu o êxito, mas afirmou que essa experiência não é replicável em massa para o país. Qual a sua avaliação sobre isso?
Eu acho que os dados do último decênio no país refutam categoricamente esse argumento do MEC. Poucos anos atrás – me reporto ao ano de 2002 – nós tínhamos a rede federal praticamente situada nas capitais do país e nas grandes cidades que eram polos do desenvolvimento industrial dito de ponta. E o argumento era que essas escolas, aparelhadas com laboratórios e preparadas com um corpo docente estável, não teriam condição de sobrevivência nem público demandante em cidades de médio e pequeno porte. Havia, na época, argumentos que justificavam que essa experiência das escolas técnicas era limitada aos grandes centros. Mas no último decênio no país nós vimos um movimento de capilarização da rede federal, que pulou de algo em torno de 100 instituições para aproximadamente 600 em 2016. E são escolas pequenas, situadas em pequenas e médias cidades do país, com uma procura social muito grande e com inserção na discussão do desenvolvimento e da cidadania desses espaços.
Então, o MEC deveria olhar para sua própria experiência, que mostra que esse modelo é sim replicável - evidentemente, se pensamos numa política na qual as redes estaduais também se insiram. É claro que não podemos pensar o país apenas com política da União. Temos que rever a questão do pacto federativo para trazer o compromisso da União, inclusive, com a educação pública de nível médio nos estados. As redes estaduais têm capilaridade. O modelo é replicável se forem oferecidas às escolas estaduais condições similares à da rede federal, ou seja, laboratório, um professor estável, carreira. É essa condição que permite que essa experiência seja exitosa, não é se a escola é federal ou estadual. O argumento do MEC se centra meramente na avaliação de que a União não poderia ampliar as escolas para torná-las todas federais. Mas a própria experiência mostra que sim, que esse seria, de fato, um caminho em busca da excelência na educação básica.
Referindo-se ao itinerário da educação profissional, o artigo 6º da lei que institui a reforma fala em considerar “vivências práticas de trabalho no setor produtivo” e em conceder “certificados intermediários de qualificação para o trabalho”. Já o artigo 8º permite que os sistemas de ensino firmem “convênios com instituições de educação a distância”, incluindo o ensino técnico ofertado “em outras instituições de ensino credenciadas”, sem diferenciar público e privado. Eu queria que o senhor comentasse esses dois aspectos específicos da reforma.
Em primeiro lugar, essa possibilidade que a lei traz, de oferecer um itinerário formativo chamado educação profissional com essa especificidade, visa dar conta de uma coisa que subjaz a essa concepção, que é o aspecto aligeirado, prático, imediato da formação profissional. Essa concepção de valorização de experiência estabelece a possibilidade de parcerias, que podem ser com empresas privadas, com organizações sociais, etc, com aproveitamento de crédito e garantia de parte do recurso do Fundeb. Torna esse itinerário formativo muito vinculado ao mercado de trabalho, muito operacional e ainda com a possibilidade de financiamento público. Aí está a explicação relativa ao aspecto financeiro da reforma. Sem dúvida nenhuma isso é um elemento agravante tanto da qualidade da formação profissional exercida como da gestão dos recursos públicos.
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'É necessário resistir ao empobrecimento do currículo' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU