16 Fevereiro 2017
“O texto do discurso de Francisco à revista La Civiltà Cattolica apresenta uma trama de afirmações-chave, com base nas quais é possível compreender de modo mais profundo as intenções do magistério de Francisco e a sua relação com a tradição e com o pensamento teológico.”
A opinião é do teólogo leigo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant'Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 11-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A leitura do discurso do dia 9 de fevereiro à revista La Civiltà Cattolica – embora partindo do contexto próximo de uma “celebração intrajesuítica”, que, como tal, já assume um valor nada secundário e, de fato, bastante significativo – oferece-nos à consideração um texto que aparece entre os mais límpidos e incisivos do pontificado de Francisco, no modo de conceber o papel da “pesquisa teológica” e de configurar o papel que uma revista – ou um grupo de intelectuais – pode desempenhar para a vida da Igreja.
Com efeito, se o lermos com atenção, o texto apresenta uma trama de afirmações-chave, com base nas quais é possível compreender de modo mais profundo as intenções do magistério de Francisco e a sua relação com a tradição e com o pensamento teológico. Gostaria de dividir a minha análise em quatro partes, conforme a estrutura do próprio discurso (as duas primeiras serão expostas neste post, enquanto as segundas aparecerão no posterior).
O início do discurso, que é mais marcado pela ocasião da celebração da revista dos jesuítas, no entanto, oferece uma primeira oportunidade para uma palavra inspirada e potente, quando Francisco diz:
Eis: permaneçam em mar aberto! O católico não deve ter medo do mar aberto, não deve buscar o abrigo de portos seguros. Especialmente você, como jesuítas, evitem se agarrar a certezas e seguranças. O Senhor nos chama a sair em missão, a ir ao largo e não a se aposentar para acalentar certezas. Indo ao largo, encontram-se tempestades e pode haver vento contrário. No entanto, a santa viagem se faz sempre na companhia de Jesus, que diz aos seus: “Coragem, sou eu, não tenham medo!” (Mt 14, 27).
Permanecer “em mar aberto” é uma espécie de mandamento fundamental para os católicos deste momento. As tempestades e o vento contrário, totalmente possíveis, não devem deprimir, mas sim multiplicar a coragem e a força.
É interessante que, aos “ventos contrários”, unem – não de hoje – aqueles que “remam contra”:
Vocês estão na barca de Pedro. Ela, às vezes, na história – hoje como ontem – pode ser sacudida pelas ondas, e não é de se admirar disso. Mas também os próprios marinheiros chamados a remar na barca de Pedro podem remar em sentido contrário. Isso sempre aconteceu.
Também é muito significativa a abordagem da relação entre a revista e os papas, que a cada 1.000 números da revista se encontraram com o Colégio dos Escritores:
Quantas coisas aconteceram em 167 anos de vida da revista e contadas nos seus 4.000 cadernos! A cada milésimo fascículo, vocês se encontraram com o papa: Leão XIII, Pio XI, Paulo VI celebraram os anteriores. Agora, ei-los aqui comigo.
Essa sequência papal – Leão XIII, Pio XI, Paulo VI e Francisco – marca um século e meio de desenvolvimento e de pesquisa, e ajudam a identificar a mudança dos estilos e dos temas, embora na continuidade de uma relação estrutural e fecunda. E, depois de saudar com grande favor a inauguração de “edições em diversas línguas” da revista, ele identifica a especificidade da missão:
E qual é essa missão específica? É a de ser uma revista católica. Mas ser uma revista católica não significa simplesmente defender as ideias católicas, como se o catolicismo fosse uma filosofia. Como escreveu o fundador de vocês, Pe. Carlo Maria Curci, a Civilta Cattolica não deve “parecer como coisa de sacristia”. Uma revista só é realmente “católica” se possui o olhar de Cristo sobre o mundo e se o transmite e o testemunha.
Essa cuidadosa distinção entre “defender ideias católicas” e possuir, compreender e comunicar o “olhar de Cristo sobre o mundo” qualifica esse discurso em toda a sua relevância, eu diria quase “epocal”, como a saída de um modelo do século XIX de autoconsciência católica.
Para isso, o Papa Francisco ilustra o seu modo de conceber a Civiltà Cattolica:
Eu gosto de pensar na Civiltà Cattolica como uma revista que seja, ao mesmo tempo, “ponte” e “fronteira”.
Para explicar o que ele entende por essa dupla imagem, ele recorre a três palavras-chave, em torno das quais constrói a sequência do seu discurso.
O ataque da apresentação da primeira palavra é fulminante:
A primeira palavra é Inquietação. Faço-lhes uma pergunta: o coração de vocês conservou a inquietação da busca? Só a inquietação dá paz ao coração de um jesuíta. Sem inquietação, somos estéreis. Se vocês quiserem habitar pontes e fronteiras, devem ter uma mente e um coração inquietos. Às vezes, confunde-se a segurança da doutrina com a suspeita pela busca. Para vocês, não seja assim. Os valores e as tradições cristãs não são peças raras a serem trancadas nos cofres de um museu. Que a certeza da fé, em vez disso, seja o motor da busca de vocês.
A paz é gerada apenas na inquietação e assim também a fecundidade. Mas este é um critério decisivo para a “doutrina segura”, que nunca deve suspeitar da busca. Entre busca audaz e sã doutrina existe uma relação diretamente, não inversamente, proporcional. Essa afirmação, na boca do bispo de Roma, é uma grande profecia e uma grande esperança. E não apenas para a oficialidade da Civiltà Cattolica.
Depois de lembrar Pedro Fabro como “padroeiro” dessa palavra, Francisco faz uma segunda pergunta:
Uma fé autêntica implica sempre um profundo desejo de mudar o mundo. Eis a pergunta que devemos nos fazer: temos grandes visões e impulso? Somos audazes? Ou somos medíocres e nos contentamos com reflexões de laboratório?
A exigência de audácia não é eventual, mas estrutural para a fé e a Igreja. Isso determina um impacto fecundo sobre o modo de abordar as questões mais candentes do nosso tempo:
Que a revista de vocês tome consciência das feridas deste mundo e identifique terapias. Que seja uma escrita que tenda a compreender o mal, mas também a derramar óleo sobre as feridas abertas, a curar. Fabro caminhava com os seus pés e morreu jovem de fadiga, devorado pelos seus desejos pela maior glória de Deus. Caminhem com a inteligência inquieta de vocês, que os teclados dos seus computadores traduzem em reflexões úteis para construir um mundo melhor, o Reino de Deus.
Identificar as feridas, sugerir as terapias, compreender o mal, derramar óleo sobre as feridas abertas para curar: essa função identifica o “trabalho sobre as teclas dos computadores” como uma contribuição decisiva para a construção de um “mundo melhor”. A fisionomia do pensamento católico, permanecendo muito fiel à sua melhor tradição, assume um perfil surpreendente e consolador. Mas também as próximas duas palavras (incompletude e imaginação) reservam ainda mais do que uma agradável surpresa, como veremos no próximo post.
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Discurso do papa à Civiltà Cattolica: a audácia e a inquietação como bênção. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU