10 Fevereiro 2017
"Seja qual for as decisões tomadas pelo governo, elas terão implicações significativas em interpretações conflitantes de tais tradições. Inevitavelmente o governo irá endossar uma ou outra interpretação entre as tradições religiosas. Isso parece violar a Establishment Clause da Primeira Emenda, que diz: “o Congresso não pode fazer nenhuma lei com o estabelecimento de uma religião, ou com a proibição de seu livre exercício”", escreve Elizabeth Shakman Hurd, professora de ciência política na Northwestern University e autora de “Beyond Religious Freedom: The New Global Politics of Religion” (Princeton, 2015) e “The Politics of Secularism in International Relations” (Princeton, 2008), em artigo publicado por The Washington Post, 08-02-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
A ordem executiva do presidente Donald Trump contra imigração possui uma cláusula que supostamente protege minorias religiosas. Trump deixou claro que tem em mente principalmente os cristãos do Oriente Médio. Se implementada, pessoas que podem mostrar provas de estarem sendo perseguidas por serem cristãs estarão qualificadas para a entrar nos EUA.
A ordem também significa que os funcionários do setor imigratório terão de aprimorar suas habilidades teológicas – pois estarão encarregados de determinar quem pertence a qual religião. Muitos comentadores já observaram os problemas constitucionais na administração de um “teste religioso”. Mas os problemas práticos e teológicos são igualmente assustadores.
As definições americanas de membresia “real” em cada religião violariam a “Establishment Clause” [texto constitucional americano que veda ao Estado o estabelecimento de uma religião oficial]?
A ordem executiva diz que os Estados Unidos vão “priorizar os pedidos de refúgio feitos por pessoas com base em perseguição fundamentada na religião, desde que a religião da pessoa seja uma religião minoritária no país de nacionalidade do indivíduo”.
Na prática, isso significa que todo oficial da imigração deve saber como dizer se uma pessoa à sua frente é cristã ou membro de uma outra comunidade religiosa minoritária – ou se está simplesmente tentando fugir da perseguição por outros motivos. O Departamento de Segurança Nacional precisará emitir orientações para padronizar as decisões.
Para isso, o governo vai de apresentar respostas definitivas a questões religiosas de longa data. Por exemplo: Qual a religião de um filho com um pai muçulmano e uma mãe judia, posto que o Islã é herdado através do pai e o judaísmo se dá através da mãe? O batismo faz de alguém cristão, como alguns acreditam, ou isso requer boas obras e a fé em Jesus, como outros sustentam? Quem decide se uma pessoa pertence verdadeiramente a uma religião: o indivíduo ou a instituição? O xiismo na Arábia Saudita é uma religião minoritária – ou é, como sustenta o governo saudita, uma seita desviante da ortodoxia sunita? E quanto os que alegam uma religião, mas não pagam as taxas ou que não aderem à orientação de suas instituições centrais? E sobre as religiões sem instituições centralizadas?
O presidente da Câmara dos Representantes, Paul D. Ryan (republicano de Wisconsin) tem buscado garantir aos doadores que a ordem executiva não vai impor um “teste religioso”. Mas não tem com evitar: a burocratização das categorias religiosas não pode acontecer de outra forma. Com observam Ken Meier e George Krause, a burocracia precisa de uma “divisão de trabalho, pessoal de carreira com formação especializada e expertise (...) e regras e procedimentos explícitos”. As autoridades imigratórias precisam saber as fronteiras de cada religião para que possam decidir quem está dentro, e quem está fora.
O governo também terá de se envolver nas hierarquias religiosas e em suas disputas. Na maior parte das interpretações da “halacha”, ou lei judaica, o filho de uma mãe judia e de um pai não judeu é judeu. Se o mesmo filho é praticante do islamismo iemenita, isso não importa para a lei judaica: ele é judeu. Mas o que farão as autoridades americanas? Será que vão se submeter à halacha ou inclinar-se-ão a um teste baseado na prática, declarando que, devido à criança praticar o islã, ela é muçulmana e, portanto, não faz parte de uma minoria? Irão perguntar se ela é praticante? Se sim, qual? As perguntas ficarão limitadas à doutrina, com os limites que isso acarreta, ou incluirão outros aspectos da experiência religiosa que podem ser difíceis para os burocratas sobrecarregados de trabalho categorizarem – tais como os encontros com o Transcendente?
Seja qual for as decisões tomadas pelo governo, elas terão implicações significativas em interpretações conflitantes de tais tradições. Inevitavelmente o governo irá endossar uma ou outra interpretação entre as tradições religiosas. Isso parece violar a Establishment Clause da Primeira Emenda, que diz: “o Congresso não pode fazer nenhuma lei com o estabelecimento de uma religião, ou com a proibição de seu livre exercício”.
A Inglaterra já enfrenta esse problema. A perseguição religiosa é uma de suas categorias de asilo. Pôr isso em prática não tem sido nada fácil. Elizabeth Berridge explica que, na realidade, aplicação desse pensamento requer certas “decisões incrivelmente matizadas e difíceis a fim de garantir que reivindicações genuínas sejam aceitas e que as não genuínas sejam negadas”.
O jornal The Guardian informa que os requerentes de refúgio estavam sendo interrogados sobre a Bíblia para testar se as pessoas tinham de fato se convertido ao cristianismo, como alegavam. Para administrar testes assim e interpretar as respostas, os funcionários do setor de imigração solicitaram uma maior formação em assuntos religiosos, o que o governo está decidindo se disponibiliza ou não.
As Nações Unidas também se debate para definir “religião”. Helge Arsheim observa que frequentemente se pede que o Alto Comissariado para os Direitos Humanos defenda a liberdade religiosa e condene a difamação também religiosa – porém esse departamento nunca desenvolveu um modo juridicamente significativo para distinguir uma religião da outra, ou para separar questões religiosas em geral de outras preocupações sociais. Em vez disso, escreve Arsheim, quando se trata de religião, a ONU tem adotado “noções vagas, gerais de harmonia, paz, entendimento e diálogo”.
Pode ser perigoso o governo decidir sobre quem pertence a qual grupo religioso e qual grupo religioso recebe privilégios especiais – e isso, nos EUA, é inconstitucional. A religião não pode ser definida coerentemente para os propósitos dos legisladores e do governo americano porque os americanos possuem definições diferentes de religião. Tentativas oficiais de definir religião podem aumentar a tensão social. O governo acaba dividindo as religiões segundo a lei, empoderando algumas e deixando de fora outras. Isso favorece formas de religião autorizada por aqueles que estão em cargos de poder, e rebaixa os outros modos de ser e pertencer.
Com a nova ordem executiva, os funcionários do governo vão ter a autoridade de declarar quem conta como cristão, muçulmano ou ateu. As universidades estarão pressionadas a buscar funcionários da Segurança Nacional para lhes ensinar como verificar quem é autenticamente muçulmano ou cristão. O governo Trump pode centralizar estas tarefas em um Departamento Federal de Autenticação Religiosa.
É claro que o governo sempre estará emaranhado com a religião. Como observa o historiador Faisal Devji: “o Estado-nação é inescapável quando o assunto é o estabelecer e governar questões dentro e entre as comunidades religiosas”. Os estudiosos irão continuar debatendo os termos próprios das relações entre religião e Estado na ONU e alhures. Estes debates não serão facilmente resolvidos, nem deveriam ser.
Mas quando o nosso país foi fundado, um dos argumentos mais fortes era que o governo não tivesse a autoridade de determinar quem é ou não autenticamente religioso. Se o presidente Trump quer se afastar desta tradição, ele contará com um grande peso da Constituição, e da história americana, agindo contra ele.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ordem imigratória de Trump significa que burocratas terão de decidir quem é cristão “de verdade” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU