31 Janeiro 2017
O muro começou a ser construído sob a Administração de Bill Clinton, em 1994, e foi terminado com o ex-presidente George Bush em 2006. Já existem muros, arame farpado e cercas em um terço dos 3.180 quilômetros da fronteira sul dos Estados Unidos.
A reportagem é de Eduardo Febbro e publicada por Página/12, 29-01-2017. A tradução é de André Langer.
Donald Trump pôs um muro sobre a cabeça do México, um fardo adicional à sua economia e uma humilhação na alma. O Maior Mentiroso do Mundo exportou para o outro lado da fronteira a “guerra não linear”, a tática que copiou do inventor da versão mais atualizada do mundo moderno, o conselheiro do presidente russo Vladimir Putin, Vladislav Sourkov. Insultos e ofensas, tratados comerciais no chão, pressões para impedir os investimentos norte-americanos no México, obscenidades, murros e ameaças renovadas: Donald Trump executa o seu vizinho com várias lanças ao mesmo tempo.
O assédio ao México e a nauseabunda propaganda eleitoral se prolongaram em uma política de Estado. “O que fazer? O que fazer contra esse gringo?”, pergunta-se com os olhos inchados de raiva um policial, de nome Polanco, que é guarda noturno em um bairro rico da Cidade do México. Não é preciso ser mexicano para sentir a faca de Donald Trump removendo-se no estômago. Hoje, somos todos mexicanos, por dever e compromisso. O Muro de Trump entrou nas veias de cada mexicano. Percorre-as como um veneno para o qual a classe política, superada pela velocidade e a indecência dos acontecimentos, não encontrou antídoto.
O ex-chanceler mexicano Jorge Castañeda disse ao New York Times: “Peña Nieto é um presidente fraco, em um país fraco e em um momento fraco”. Mas a frase mais lembrada foi dita pelo escritor Juan Villoro: “Temos um presidente dos Estados Unidos que constrói um muro e um presidente do México que só fala com as paredes”.
As pessoas sentem a construção do muro, e a ideia de que seu custo seja assumido pelo México equivale a forçar uma pessoa condenada a pagar seu próprio funeral. “Já estávamos mal porque éramos dependentes em tudo. Agora, meteram a cabeça na lama”, disse Lucia, estudante da UNAM. Nas últimas horas, Peña Nieto e a Administração Trump assumiram um compromisso que evita que o México continue a estar sob os ultrajes públicos do sádico vizinho: ambos comprometeram-se a não falar em público sobre o muro. A imprensa, tão mansa com os dirigentes políticos, celebrava esse gesto como uma vitória. Mas é falsa. Dói à sociedade não apenas o sadismo político do presidente norte-americano, mas também a maneira como o Executivo se entregou à vergonha com os braços abertos.
A sequência do papelão oficial começou em agosto do ano passado, quando o hoje chanceler mexicano Luis Videgaray convenceu o presidente Peña Nieto a receber no México o então candidato dos republicanos. Trump serviu-se da ocasião para pisotear o México. Transformou sua visita em um ato de humilhação e em um investimento eleitoral. Essa crise forçou a saída de Videgaray do governo até que foi reincorporado como chefe da diplomacia com a missão de implementar uma estratégia de distensão. O chanceler apresentou-se como um “grande amigo” do genro de Trump, Jared Kushner, novo assessor do presidente.
Mas Videgaray voltou a meter o país nas garras do lobo. Foi ele quem organizou o encontro, nos Estados Unidos, entre Peña Nieto e Trump previsto para o dia 31 de janeiro e, depois cancelado, após as duas novas agressões do presidente estadunidense: primeiro, no mesmo instante em que Videgaray estava nos Estados Unidos negociando a visita, Trump assinou a ordem executiva que abre passagem para a construção do muro; em segundo lugar, Donald Trump publicou um encardido tuíte onde dizia: “se não pagarem (o muro), que não venham”.
Trump promete asfixiar o seu vizinho, provar com o México os mecanismos do que será sua diplomacia de bandidos com os mais fracos. 80% das exportações mexicanas vão para os Estados Unidos. Dos 12 milhões de migrantes que moram nos Estados Unidos, 5,6 milhões são ilegais. Em 2016, esses migrantes enviaram ao México remessas no valor de 25 bilhões de dólares (1,8% do PIB). “Basicamente, o muro é um insulto para o México e um horrível símbolo da ignorância”, disse o ex-congressista mexicano (PRD) e presidente do think thank Fundação Imagem do México, Agustín Barrios Gómez.
O descaramento fanfarrão de Trump deixou atônito o país inteiro. Barrios Gómez não entende como se pode chegar a esses extremos quando, assegura, na realidade, “a segurança nacional e a prosperidade norte-americana dependem diretamente de um México estável e cooperativo”. O presidente estadunidense ataca a ambos os princípios: a estabilidade e a cooperação. Sobre muros e divisões, o México é um congresso de sábios, mas agora a questão ultrapassou o admissível. Já existem muros, arames farpados e cercas nos 3.180 quilômetros da fronteira. Em um terço dessa extensão (1.50 quilômetros) há paredões, arame farpado, barrotes, sensores, equipes e patrulhas de vigilância, drones, além de milhares de norte-americanos civis excitados e armados que, em trajes militares, restauram suas amarguras caçando mexicanos.
Os muros começaram a ser construídos sob a Administração de Bill Clinton, em 1994, e terminados pelo ex-presidente George Bush, em 2006. As partes construídas se estendem ao longo de Estados como Baixa Califórnia/Califórnia, Sonora/Arizona e Chihuahua/Texas/Novo México. O muro não é uma ideia original: “a novidade é o ensinamento, o racismo, o ódio e a declaração de guerra implícita que o acompanham”, disse Matías Urriate, professor de matemática oriundo de Tijuana.
A sociedade busca e manifesta sua unidade para responder às necedades do sádico marquês. Cerca de 40 rádios do país decidiram colocar no ar, em uníssono e na primeira hora da tarde, uma música do grupo mexicano Caifanes – “Aqui não é assim”. O hashtag #to2unidos convocou milhões de pessoas para se somarem a essa forma de repúdio pacífico contra um analfabeto que ganhou a presidência da maior potência mundial e fez do México seu “inimigo nacional”, segundo escreve em seu editorial o jornal El Universal.
A música diz: “Segues caminhando / sobre velhos territórios / invocando forças / que jamais entenderás. / E vens de lá / onde o sol não sai / onde não há calor / onde o sangue nunca se sacrificou por um amor / mas aqui não é assim”. O coordenador da Rádio RMX, Gonzalo Oliveros, explicou que a música contém ao mesmo tempo “uma mensagem de unidade e de força”.
Várias multinacionais já iniciaram uma contra-ofensiva nos meios de comunicação. A cerveja Corona e outras cinco marcas fizeram um comercial em que zombam do slogan de campanha de Trump “Make America Great Again” (Faça a América Grande Novamente). Mediante o hashtag #AméricaesGrande, a Corona montou uma publicidade em que interpela Donald Trump dizendo-lhe mais ou menos que a América não é um país, mas um continente inteiro.
Trump e seu muro são hoje figuras obsessivas. Ninguém se levanta sem pensar nele, no muro e nos estragos que causaria no México a deportação massiva de indocumentados e outras categorias prometidas pelo presidente. O ex-presidente mexicano Ernesto Zedillo (de 1994 a 2000) publicou um artigo de opinião no jornal Washington Post onde assegura que “o México pode prosperar sem Trump”. Zedillo qualificou o muro como um projeto “extravagante, ofensivo e inútil” e reconheceu que, no futuro, não existe possibilidade alguma de que se chegue a qualquer acordo com os Estados Unidos “mediante o diálogo ou a negociação”.
Uma coisa que se quebrou na alma de cada mexicano. É um povo muito diverso, trabalhador e nobre, oprimido entre uma classe política e instituições corruptas, a violência dos narcotraficantes e a impunidade, a pobreza, o classismo de outras épocas, a desigualdade e, agora, o megalômano ameaçante de Trump que se erigiu em demiurgo e verdugo todo poderoso do país que está do outro lado da fronteira. “Trump intoxicou o seu país e agora a nós”, disse com resignação Patricia, uma empregada de banco que trabalha muitas vezes nos Estados Unidos.
O murou ainda não existe, mas é tão real que pode ser visto em cada sombra. O presidente inoculou seu veneno em duas sociedades ao mesmo tempo. Deste lado (do México), conseguiu ferir, pisotear, agravar, infundir medo e insegurança e, ao mesmo tempo, modificou a relação de forças entre os movimentos políticos. Em sete dias de mandato, Donald Trump destruiu a pouca legitimidade que restava ao presidente Peña Nieto, deixou em um tosco ridículo a diplomacia e seu chefe, Luis Videgaray, colocou fora de órbita a narrativa branda e nacionalista entoada pelos dirigentes políticos e a oposição e restaurou a imagem do principal opositor, Andrés Manuel López Obrador, duas vezes candidato à presidência e dirigente do Movimento de Regeneração Nacional (Morena).
Suas diatribes, suas posições, suas denúncias contra a inoperância política animaram e encheram um debate que nunca esteve à altura da magnitude do acontecido. Este líder da esquerda mexicana ressuscitou o patriotismo revolucionário arrulhado no coração de cada mexicano que tão bem souberam despertar presidentes como Lázaro Cárdenas ou Benito Juárez, ambos tenazes opositores às políticas de Washington durante o século XIX e XX.
A escabrosa tuitocracia de Donald Trump contra o México levou Obrador a pedir a Peña Nieto que apresentasse “com urgência à ONU a demanda pela violação dos direitos humanos”. O PRI parece ter perdido hoje sua pujança e sua dignidade. Ao longo de toda esta crise mostrou um modesto perfil que o líder do Morena aproveitou para se içar pouco a pouco como uma alternativa verossímil de frente com as eleições de 2018. Enquanto todos celebravam o pacto de silêncio ao qual chegaram na sexta-feira Trump e Peña Nieto relativo a não falar do muro, Obrador apontou para a evidência: “Já chegaram a um acordo. Imagine o que é um acordo para não tratar do tema do muro e da perseguição de migrantes. É um acordo no escuro, é a ignomínia”.
O líder do Morena apressa-se a realizar um giro pelos Estados Unidos contra a política migratória de Washington. Por enquanto, soube ler o momento de solidão essencial pelo qual passa o México com um poder prejudicado pelo presunçoso do lado e uma imprensa hegemônica que não batalhou e que se dobrou a uma espécie de mansidão pouco decorosa diante de semelhantes explosões. Não é por nada que o apelidaram de “Pepe”, referência a um peixe do sudeste mexicano que sabe ser muito rápido e difícil de pegar.
Antes de levantar seu ignominioso muro, Donald Trump lançou seus buldogues e escavadeiras contra o México. Seu populismo é uma doença mental que atravessa todos os tecidos. O México ainda não encontrou o antídoto para se proteger da invasão do mal. É melhor não deixar o México sozinho. O que está acontecendo ali se transladará para toda a América. As batalhas da dignidade, da soberania e do direito estão se travando nesta fronteira. São um molde nas mãos de um energúmeno louco. O México enfrenta com poucos apoios o primeiro movimento de uma guerra suja. Ou somos tomos mexicanos ou Trump nos riscará do mapa.
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Ou somos todos México ou Trump nos riscará do mapa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU