20 Janeiro 2017
“A confusão que Carlo Caffarra lamenta como resultado da Amoris laetitia parece brotar abundantemente demais do ímpeto argumentativo com a qual o cardeal defende as escolhas do século XIX de uma ‘doutrina do matrimônio’ identificada com a história da contraposição entre Igreja e Estado, recorrendo de forma visível às frágeis teorias maximalistas que a Veritatis splendor introduziu imprudentemente no magistério eclesial.”
A opinião é do teólogo leigo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 19-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o teólogo, "não estou preocupado com uma exortação apostólica que aceita dialogar prudentemente com a “liberdade de consciência”. Estou preocupado com um cardeal que fala como se a “consciência livre” fosse simplesmente um erro a ser combatido. Como se os nossos calendários pudessem voltar atrás em um século. Como se, no lugar do Papa Francisco, estivesse o Papa Pio IX. Como se a nostalgia por aquilo que é pré-moderna pudesse ser a salvação da Igreja e do homem. Como se as exortações apostólicas devessem ter, acima de tudo, o objetivo de confirmar os cardeais nos seus preconceitos. Como se o ataque mais feroz contra Francisco pudesse assumir a forma cômica da insinuação à la Magister: “Mas será que este papa é um kantiano?”.
"Excluir o bem possível em razão do bem máximo - conclui Andrea Grillo - não é uma exigência da Revelação ou da razão, mas sim um grave mal-entendido do primado da realidade sobre a ideia".
A tentativa com a qual Carlo Caffarra tentou justificar racional e teologicamente a carta com que ele e outros três cardeais expressaram as suas dubia sobre a Amoris laetitia parece bastante fraca e, em certos aspectos, realmente incompreensível. A confusão que Caffarra lamenta como resultado da Amoris laetitia parece, em vez disso, brotar abundantemente demais do ímpeto argumentativo com a qual o cardeal defende as escolhas do século XIX de uma “doutrina do matrimônio” identificada com a história da contraposição entre Igreja e Estado, recorrendo de forma visível às frágeis teorias maximalistas que a Veritatis splendor introduziu imprudentemente no magistério eclesial.
A entrevista, que também se detém sobre detalhes secundários, encontra o seu centro e o seu foco em duas afirmações-chave. A primeira está ligada a uma retomada da Veritatis splendor; a segunda, ao papel de uma compreensão “antimodernista” da consciência, que seria absolutamente necessária para permanecer na tradição católica, e da qual Caffarra, justamente, não encontra vestígios na Amoris laetitia.
Mas vejamos esses pontos um por um, porque merecem uma análise tão atenta quanto crítica.
O primeiro texto que eu gostaria de citar propõe uma rápida mas eficaz releitura de um dos conteúdos fundamentais da Veritatis splendor. Permito-me destacar em negrito as passagens que, depois, eu desejo comentar:
“Um dos ensinamentos fundamentais do documento (Veritatis splendor) é que existem atos que, por si mesmos e em si mesmos, independentemente das circunstâncias em que são feitos e do objetivo a que o agente se propõe, podem ser qualificados como desonestos. Negar esse fato pode envolver o fato de negar sentido ao martírio (cf. nn. 90-94). Todo mártir, de fato, poderia ter dito: ‘Mas eu me encontro em uma circunstância... em tais situações para as quais o grave dever de professar a minha fé ou de afirmar a intangibilidade de um bem moral não me obriga mais’. Pense-se nas dificuldades que a esposa de Thomas More causava ao seu marido já condenado na prisão: ‘Você tem deveres para com a família, para com os filhos’. Portanto, não é só um discurso de fé. Mesmo que eu use apenas a reta razão, vejo que, negando resistência de atos intrinsecamente desonestos, nego que existe uma fronteira além da qual os poderosos deste mundo não podem e não devem ir. Sócrates foi o primeiro no Ocidente a compreender isso. A questão, portanto, é grave, e sobre isso não se podem deixar incertezas. Por isso, permitimo-nos pedir que o papa esclareça, pois há bispos que parecem negar tal fato, referindo-se à Amoris laetitia. O adultério, de fato, sempre se insere nos atos intrinsecamente maus. Basta ler o que Jesus diz a respeito, ou São Paulo e os mandamentos dados a Moisés pelo Senhor.”
A concatenação argumentativa é claramente sofística: parte-se de um pressuposto (magisterial) de atos intrinsecamente maus. Eles são demonstrados – racionalmente – a contrario, ou seja, raciocinando sobre o “martírio”, para concluir com o falso silogismo: se existem atos intrinsecamente maus, e se o adultério é intrinsecamente mau, então não há circunstâncias subjetivas que possam torná-lo um “bem”, em caso algum.
Essa estrutura argumentativa está repleta de implicações históricas que são escondidas e que tornam vazio o raciocínio. Tudo depende de uma falta de história: dizer “intrinsecamente mau” significa isolar objetivamente um caso e torná-lo impermeável a qualquer elemento temporal e subjetivo: circunstâncias, intenções, condições, sentimentos. Mas, como aparece bem na conclusão, à falta de história corresponde, infalivelmente, uma falta de cuidado na leitura do texto bíblico. Para Caffarra, “basta ler” o que dizem Jesus, Paulo e os mandamentos a respeito.
Não existe mais nenhuma hermenêutica histórica das ações, nem dos textos, nem das intenções, nem das circunstâncias. Tudo é deslocado para o plano de uma “doutrina objetiva”, que não permite nenhuma consideração das “circunstâncias subjetivas”. É evidente que, nessa estruturação abstrata e violenta, não há nada pior do que o “discernimento” desejado pela Amoris laetitia. Ou, melhor, o único discernimento possível seria aquele que exclui, não aquele que integra. Mas falar do matrimônio e da Escritura sem profundidade histórica e sem trabalho hermenêutico levanta uma dúvida e, talvez, até mesmo mais de uma.
O segundo texto que eu gostaria de levar em consideração põe em campo o “desafio decisivo”. É útil lê-lo na sua íntegra, para desmascarar o seu pano de fundo preconceituoso. C. Caffarra aborda, aqui, a questão da consciência, que há 40 anos é o seu “cavalo de batalha”. Escutemo-lo nesta longa argumentação:
“Eu considero que este é o ponto mais importante de todos... É o lugar onde nos encontramos e nos deparamos com o pilar da modernidade. Comecemos esclarecendo a linguagem. A consciência não decide, porque ela é um ato da razão; a decisão é um ato da liberdade da vontade. A consciência é um juízo em que o sujeito da proposição que o expressa é a escolha que eu estou prestes a fazer ou que já fiz, e o predicado é a qualificação moral da escolha. Portanto, é um juízo, não uma decisão. Naturalmente, todo juízo razoável é exercido à luz de critérios, caso contrário não é um juízo, mas outra coisa. Critério é aquilo com base no qual eu afirmo o que afirmo e nego o que nego. Neste ponto, é particularmente iluminadora uma passagem do ‘Tratado sobre a consciência moral’ do bem-aventurado Rosmini: ‘Há uma luz que está no homem, e há uma luz que é o homem. A luz que está no homem é a lei de Verdade e a graça. A luz que é o homem é a reta consciência, porque o homem se torna luz quando participa da luz da lei de Verdade mediante a consciência confirmada naquela luz’... Ora, diante dessa concepção da consciência moral, opõe-se a concepção que erige como tribunal inapelável da bondade ou malícia das próprias escolhas a própria subjetividade. Aqui, para mim, está o choque decisivo entre a visão da vida que é própria da Igreja (porque é própria da Revelação divina) e a concepção da consciência própria da modernidade... Há uma passagem da Amoris laetitia, no número 303, que não é claro. Ele parece – repito: parece – admitir a possibilidade de que haja um juízo verdadeiro da consciência (não invencivelmente errôneo; isso sempre foi admitido pela Igreja) em contradição com aquilo que a Igreja ensina como referente ao depósito da divina Revelação. Parece. E, por isso, colocamos a dúvida ao papa.”
A noção de “consciência” se torna o espaço onde Caffarra move guerra contra o “pilar da modernidade”. E aqui, na verdade, não esperaríamos ler o que está escrito. Porque a caricatura que Caffarra propõe da modernidade é muito grave, assim como também é grave a caricatura A que ele força a Revelação divina. Como dizia Blondel, “Em um prego pintado, eu posso pendurar apenas uma chave igualmente pintada”. A uma Revelação divina reduzida a uma “evidência objetiva de razão”, serve de “sparring partner” uma “consciência moderna” reduzida a arbítrio relativista e autorreferencialidade solipsista.
Garantir os direitos de Deus, C. Caffarra parece nos dizer de modo exigente, só pode ocorrer restabelecendo essa ordem de raciocínio. Caffarra não conhece a “liberdade de consciência”. Ou, melhor, só pode conhecê-la desfigurando-a. E é óbvio que ele não consegue mais entender não só o mundo, mas também uma Igreja que – há mais de 50 anos – dialoga abertamente com o mundo moderno e com a sua consciência livre. Se um “juízo verdadeiro da consciência” está em contradição com aquilo que a Igreja ensina, para Caffarra não há alternativa: a consciência deve reconhecer o erro e se submeter. A forma mais conhecida com a qual ouvimos e acompanhamos Caffarra até hoje foi a de “reconhecer a nulidade do vínculo”. Ontologizando o matrimônio de modo clerical e despudorado, tratamo-lo como advogados niilistas. Mas, em uma “sociedade aberta” – da qual Caffarra parece não ter tido ainda experiência –, se a disciplina eclesial é gerida com esse estilo abstrato e frio, constroem-se ficções e mistificações cada vez mais graves.
Eu não estou preocupado com uma exortação apostólica que aceita dialogar prudentemente com a “liberdade de consciência”. Estou preocupado com um cardeal que fala como se a “consciência livre” fosse simplesmente um erro a ser combatido. Como se os nossos calendários pudessem voltar atrás em um século. Como se, no lugar do Papa Francisco, estivesse o Papa Pio IX. Como se a nostalgia por aquilo que é pré-moderna pudesse ser a salvação da Igreja e do homem. Como se as exortações apostólicas devessem ter, acima de tudo, o objetivo de confirmar os cardeais nos seus preconceitos. Como se o ataque mais feroz contra Francisco pudesse assumir a forma cômica da insinuação à la Magister: “Mas será que este papa é um kantiano?”.
Diante dessas objeções, que, se avaliadas com equilíbrio, parecem ser francamente bastante grosseiras, a melhor resposta pode ser lida nos números 36-37 da Amoris laetitia, onde se diz:
36. … devemos ser humildes e realistas, para reconhecer que às vezes a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar reação de autocrítica. Além disso, muitas vezes apresentamos de tal maneira o matrimônio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação. Também não fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos seus primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimônio abstrato demais, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são. Essa excessiva idealização, sobretudo quando não despertamos a confiança na graça, não fez com que o matrimônio fosse mais desejável e atraente; muito pelo contrário.
37. Durante muito tempo pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos dificuldade de apresentar o matrimônio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira. Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho em meio aos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las.
Excluir o bem possível em razão do bem máximo não é uma exigência da Revelação ou da razão, mas sim um grave mal-entendido do primado da realidade sobre a ideia.
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"Mas será que este papa é kantiano?" Carlo Caffarra contra a consciência modernista. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU