12 Janeiro 2017
“Assim como a água, o medo se tornou um produto de consumo e foi assujeitado à lógica e às regras do mercado. Depois, foi transformado em mercadoria política, em moeda útil para conduzir o jogo do poder.”
A opinião é do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, falecido no último dia 9 de janeiro, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 10-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O medo faz parte da condição humana. Poderíamos até conseguir eliminar uma por uma a maioria das ameaças que geram medo (era justamente para isto que servia, segundo Freud, a civilização como uma organização das coisas humanas: para limitar ou para eliminar totalmente as ameaças devidas à casualidade da Natureza, à fraqueza física e à inimizade do próximo): mas, pelo menos até agora, as nossas capacidades estão bem longe de apagar a “mãe de todos os medos”, o “medo dos medos”, aquele medo ancestral que decorre da consciência da nossa mortalidade e da impossibilidade de fugir da morte.
Embora hoje vivamos imersos em uma “cultura do medo”, a nossa consciência de que a morte é inevitável é o principal motivo pelo qual existe a cultura, primeira fonte e motor de cada e toda cultura. Pode-se até conceber a cultura como esforço constante, perenemente incompleto e, em princípio, interminável para tornar vivível uma vida mortal. Ou pode-se dar mais um passo: é a nossa consciência de ser mortais e, portanto, o nosso perene medo de morrer que nos tornam humanos e que tornam humano o nosso modo de ser-no-mundo.
A cultura é o sedimento da tentativa incessante de tornar possível viver com a consciência da mortalidade. E, se por puro acaso, nos tornássemos imortal, como às vezes (estupidamente) sonhamos, a cultura pararia de repente, como compreenderam tanto Joseph Cartaphilus de Esmirna, o incansável buscador da Cidade dos Imortais idealizado por Jorge Luis Borges, quanto por Daniel, o herói da possibilidade de uma ilha de Michel Houellebecq destinado a ser clonado e reclonado infinitamente.
Joseph Cartaphilus verificou pessoalmente que Homero, tendo se dado contra da própria imortalidade e sabendo “que, em um tempo infinito, a cada homem acontecem todas as coisas” e que, portanto, por essa mesma razão, seria “impossível [...] não compor, ao menos uma vez, a Odisseia”, está destinado a voltar a ser troglodita. E Daniel compreende que, uma vez apagada a perspectiva do fim do tempo e assegurado o caráter infinito da existência, “só o fato de existir já é uma chaga” e a tentação de renunciar à prerrogativa da clonagem adicional indo rumo a “um nada simples, uma pura ausência de conteúdo”, torna-se irresistível.
Foi precisamente a consciência de ter que morrer, da inevitável brevidade do tempo, da possibilidade ou probabilidade de que as visões permaneçam irrealizadas, os projetos, incompletos, e as coisas, não feitas que impulsionaram os homens a agir, e a imaginação humana, a alçar voo. Foi essa consciência que tornou necessária a criação cultural e que transformou os seres humanos em criaturas culturais. Desde o seu início e ao longo de toda a sua longa história, o motor da cultura foi a necessidade de preencher o abismo que separa o transitório do eterno, o finito do infinito, a vida mortal da imortal; o impulso para construir uma ponte para passar de um lado para outro do precipício; o instinto de permitir que nós, mortais, tenhamos incidência sobre a eternidade, deixando nela um sinal imortal da nossa passagem, embora fugaz.
Tudo isso, naturalmente, não significa que as fontes do medo, o lugar que ele ocupa na existência e o ponto focal das reações que ele evoca sejam imutáveis. Ao contrário, todo tipo de sociedade e toda época histórica têm os seus próprios medos, específicos desse tempo e dessa sociedade. Se é incauto divertir-se com a possibilidade de um mundo alternativo “sem medo”, em vez disso, descrever com precisão os traços distintivos do medo na nossa época e na nossa sociedade é condição indispensável para a clareza dos fins e para o realismo das propostas.
Os nossos progenitores, quando tinham sede, bebiam a sua dose cotidiana de água dos córregos, dos rios, dos poços, até mesmo das poças... Nós compramos em uma loja uma garrafa de plástico selada, cheia de água, carregamo-la durante todo o dia conosco, aonde quer que vamos, e às vezes bebemos um gole. É isso hoje que “faz a diferença”, a mesma diferença que existe entre os medos contemporâneos e os dos nossos antepassados. Em ambos os casos, a diferença é a comercialização. Assim como a água, o medo se tornou um produto de consumo e foi assujeitado à lógica e às regras do mercado. Depois, foi transformado em mercadoria política, em moeda útil para conduzir o jogo do poder. A quantidade e a intensidade do medo nas sociedades humanas não refletem mais a gravidade objetiva ou a iminência do perigo, mas a abundância de ofertas no mercado e a intensidade da promoção (ou propaganda) comercial.
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Os medos que o poder transforma em mercadoria política e comercial. Artigo de Zygmunt Bauman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU