10 Janeiro 2017
"A explicação da vitória de Trump enquanto fenômeno endógeno não é assim inteiramente satisfatória. A leitura rival centra-se em fatores exógenos ao partido, em particular na magnitude do "backlash" (repercussão negativa) provocado pelo declínio sustentado da renda que ocorre nos EUA e do sentimento resultante de impotência", escreve Marcus André Melo, que é professor titular de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e foi professor visitante na universidade Yale e no MIT, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 08-01-2017.
O autor analisa a chegada de Donald Trump à Casa Branca, prevista para 20/1, à luz de noções como populismo e iliberalismo.
Ao mesmo tempo em que reconhece as peculiaridades do percurso eleitoral do republicano, pondera que seu triunfo não anuncia o canto do cisne da política como a conhecemos.
Eis o artigo.
Alerta ao leitor: as chances de alguma previsão feita neste texto dar certo são de cerca de 50%. Isso equivale a jogar para o alto uma moeda. Segundo o conhecimento acumulado da ciência política, esse deveria ser o grau de confiabilidade de qualquer prognóstico sobre eventos políticos. A estimativa é de Philip Tetlock em "Expert Political Judgment" (avaliação política especializada; Princeton University Press), no qual reporta os resultados de estudo sobre 28 mil previsões feitas por cientistas políticos ao longo de quase duas décadas.
Posto isso, importa menos a chamada previsão –"a estimativa de ponto"– quanto a eventos futuros do que a própria plausibilidade intuitiva de nossas conjecturas. Podemos tentar estimar o risco associado a certos eventos, mas cumpre lembrar que a incerteza é refratária ao cálculo. Quando ela é muito elevada, como atualmente, só resta a imaginação política.
A temporada de previsões está aberta: há muita profecia e "quase-previsões", como chamo os exercícios de interpretação sobre a conjuntura que buscam identificar sua singularidade. Por definição, os atores imersos na conjuntura não divisam uma mudança estrutural.
A Coruja de Minerva, símbolo da sabedoria, só abre suas asas no início do crepúsculo, mas há quem queira avistá-la em pleno dia. Na realidade, muitos dos eventos políticos mais importantes dos últimos 40 anos não foram antecipados por ninguém.
A lista é longa: lembremos o colapso da União Soviética, a Primavera Árabe etc. Aos quais se somam agora o fenômeno Trump, o "brexit" e a ascensão do populismo.
Para algumas abordagens consagradas, o diagnóstico nunca foi outro senão o de crise: há cerca de um século o vaticínio é de crise do capitalismo, da democracia representativa, da representação política, do sistema partidário, do Estado de bem-estar social, e assim por diante. Esses recortes pouco agregam.
Onipresente no debate em torno de previsões e quase-previsões, o termo populismo tornou-se –para usar a expressão de Werner Müller– a forma canônica de se referir a alguém ou a alguma posição da qual não se goste por qualquer que seja a razão. Há um temor nas democracias em relação ao candidato populista à espreita.
Na ciência politica e disciplinas afins, o termo tem sido utilizado para designar situações e movimentos históricos tão díspares quanto os narodniks russos do século 19 (que defendiam o socialismo agrário e patrocinavam a ida de intelectuais e estudantes ao campo para viver como camponeses), o populismo agrário americano do mesmo século e as democracias de massa latino-americanas.
Há também no mercado de ideias um registro do populismo em uma chave positiva com forte influência na realpolitik.
Teóricos como Ernesto Laclau, que se tornou o ideólogo oficial do kirchnerismo, e Chantal Mouffe, inspiração para os partidos de esquerda Podemos, da Espanha, e o Syriza, da Grécia, fazem o elogio da "razão populista".
Em sua visão, o populismo é a forma efetiva de romper a hegemonia; é eficaz porque introduz o antagonismo como princípio central da prática política.
O populismo é entendido como forma não só de "construir identidades coletivas" como também de "construir o adversário".
O estabelecimento de dicotomias identitárias ("nós contra eles") é a estratégia para moldar a identidade do "campo popular".
A chamada "política do afeto e das emoções" é a nova chave teórica para justificar o cesarismo plebiscitário de líderes carismáticos.
Tributária da visão da política como uma dialética amigo-inimigo (a inspiração vem de Carl Schmitt, o jurista do regime nazista), essa concepção deixa entrever seu antipluralismo: os adversários políticos são inimigos, e a política mira a instauração de um projeto hegemônico. É assim que ações fiscalmente irresponsáveis são legitimadas como instrumentais à constituição de um "demos contra-hegemônico" ("demos" entendido nesta expressão de Laclau/Mouffe como corpo político) –pois, embora dinamicamente insustentáveis, demarcam o lugar dos que estão do lado popular e dos que estão longe dele.
Diametralmente oposta a essa interpretação é aquela que faz a crítica ao "populismo macroeconômico", ou seja, à condução da economia sob restrição orçamentária zero ou fraca. Populismo é aqui a qualificação da combinação de expansionismo fiscal e monetização de deficits. É o equivalente à demagogia fiscal.
Como se vê, o termo sofreu um alargamento conceitual desmedido. Tornou-se um "mot-valise", impreciso e talvez imprestável.
Com algum esforço e boa vontade, pode-se, afinal, identificar um núcleo duro comum às experiências populistas? Para Müller, os traços compartilhados seriam o caráter antissistema, o antipluralismo e o iliberalismo.
O caráter antissistema decorre da associação entre o populismo e as propostas de "rejeição de tudo o que está aí".
Partidos e candidatos antissistema não são exatamente novidade: algumas grandes agremiações, como os partidos comunistas de Itália e França, tinham essa característica histórica.
Já o antipluralismo se manifesta na suposta representatividade exclusiva de certas categorias ou grupos; não é à toa que a sigla extremista finlandesa se chama Partido dos Verdadeiros Finlandeses. Essa postura é refratária à ideia de competição política: apenas um grupo representa a nação, o que torna os demais ilegítimos. Joga-se o jogo até o momento em que se ascende ao poder, quando a tarefa passa a ser mudar as regras do jogo (ou, na sua versão maximalista, implantar o projeto).
Nessa visão, o incrementalismo social é perverso: só a reforma radical oferece a redenção. À questão "o que fazer quando há desacordo moral profundo?", a solução iliberal é transformar radicalmente o jogo ou, no limite, "virar a mesa".
Por sua vez, o iliberalismo se expressa na desvalorização da tradição liberal do império da lei. O constitucionalismo torna-se questão acessória frente ao ideal da soberania popular desimpedida. Em geral, as instituições de freios e contrapesos são as primeiras vítimas.
O Jobbik (Movimento por uma Hungria Melhor, de extrema-direita) se referiu à Suprema Corte local como "aristocrática". Mas quando ela foi domada pelo presidente Vicktor Orbán, a sigla logrou extrair daquela uma decisão proibindo a mídia de associar o Jobbik à extrema-direita.
Embora haja grandes afinidades eletivas entre autoritarismo e populismo, esse nexo não é perfeitamente claro. Casos históricos importantes, como o populismo agrário nos EUA, não estavam marcados por autoritarismo político aberto. O populismo é, antes de tudo, um produto de mobilização eleitoral.
Ele tampouco está associado a sistemas partidários fracos –tal descrição certamente não valeria para os casos americano, francês ou austríaco. Mas está florescendo em um contexto de enfraquecimento histórico dos partidos social-democráticos e liberais.
Isso se deve aos deslocamentos produzidos pela globalização e pela crise econômica em comunidades tradicionais, ao choque externo representado pela crise dos refugiados na Europa e à ação de grupos terroristas.
A ascensão de Trump representa de fato um fenômeno não antecipado. E não só porque ele é "outsider" na política e por suas bandeiras iliberais. A surpresa quanto à sua ascensão deve-se, entre os cientistas políticos, também ao fato de que ela se produziu em um modelo majoritário de democracia no que se refere às instituições eleitorais. A adoção do distrito eleitoral uninominal produz, como se sabe, o bipartidarismo. Os incentivos daí resultantes, por sua vez, levam os partidos à competição pelo centro do espectro ideológico e à moderação.
A representação proporcional, de forma contrária, encoraja os partidos a se alojar em nichos ideológicos, o que impede a "convergência para o eleitor mediano". O efeito, portanto, é simétrico ao das instituições majoritárias: os partidos extremistas nesse arranjo institucional tendem a prosperar. (Hans Kelsen foi o primeiro a ter essa intuição quando associou a ascensão do nazismo à adoção da representação proporcional, o que levou à criação do sistema eleitoral misto após a guerra.)
A peculiaridade de Trump foi seu sucesso em derrotar seus rivais moderados no seio do Partido Republicano. Isso porque partidos como a Frente Nacional francesa (de extrema-direita) não poderiam prosperar no arranjo institucional americano.
O argumento predominante entre cientistas políticos deu com os burros n'água na eleição de 2016. Conhecido como TPD (das iniciais de "The Party Decides", o partido decide, livro onde é desenvolvido, da University of Chicago Press), o raciocínio sustenta que o partido é sempre decisivo como ator institucional, o que obstaria a ascensão de um "outsider".
Se o melhor preditor para a escolha de candidatos em modelos sofisticados com série histórica longa são as preferências dos líderes partidários que controlam o processo das primárias, como a legenda pode ter falhado em deter a ascensão de Trump?
A explicação da vitória de Trump enquanto fenômeno endógeno não é assim inteiramente satisfatória. A leitura rival centra-se em fatores exógenos ao partido, em particular na magnitude do "backlash" (repercussão negativa) provocado pelo declínio sustentado da renda que ocorre nos EUA e do sentimento resultante de impotência.
Pela primeira vez, uma geração é menos afluente do que a anterior, e a mobilidade social vertical estancou. Em um quadro no qual as questões identitárias e de reconhecimento adquiriram, na agenda dos governos liberais, enorme centralidade em relação às redistributivas, o resultado parece ter sido uma brutal frustração coletiva.
Mais importante: esses grupos desapontados passaram também a assumir questões identitárias. A mais perigosa delas é o nacionalismo e a equiparação de homens brancos de baixa escolaridade a uma classe de perdedores da globalização.
Paradoxalmente, a ascensão de Trump poderia sugerir que a accountability (responsabilização) democrática vai bem: os eleitores estão, afinal, punindo os governantes pelo mau desempenho.
As elites liberais em torno do centro não produziram prosperidade e inclusão. O fracasso leva consigo a credibilidade de políticas e discursos fundados no conhecimento científico e técnico acumulado, abrindo a porta ao anti-intelectualismo visceral e ao protecionismo.
Não é infrequente na mídia a referência ao eleitor típico de Trump como oriundo de uma suposta minoria de rednecks (caipiras). Na realidade, ele integra a categoria que mais se aproxima do eleitor mediano nos EUA.
A forte reação desse segmento é, portanto, contra a convergência entre liberais de centro e republicanos moderados que tem produzido um quadro de rendas em queda e forte declínio relativo do país no cenário internacional. Quando as alternativas políticas para o eleitor se tornam indistinguíveis umas das outras, vicejam as opções extremas.
Mas a vitória republicana poderia ter sido prevista levando-se em conta apenas os fatores históricos, como desempenho da economia, popularidade e o chamado "efeito incumbente" (o efeito de um partido ou candidato estar no poder, que na conjuntura específica dos EUA seria negativo).
Isso não quer dizer que tenha ocorrido na eleição de novembro passado algum realinhamento histórico no sistema partidário, como em 1912, 1932 e 1972. Larry Bartels, por exemplo, mostra que houve agora grande estabilidade no índice de continuidade partidária que ele construiu com dados desde 1868 –esse indicador mede como os resultados refletem a distribuição partidária de votos em uma eleição, na comparação com as três anteriores, para todos os Estados.
Não houve virada histórica, apenas uma mudança interna no balanço de grupos no Partido Republicano: 89% dos democratas votaram na candidata Clinton, e 90% dos republicanos votaram em Trump. Ou seja: os partidos e a identificação partidária importam.
A eleição de Trump é insólita e tem consequências imprevisíveis por várias razões, mas não implica numa reestruturação do sistema político tal como o conhecemos.
A revolta contra as elites liberais na Europa mantém similaridade com a ascensão de Trump. As elites em torno do centro do continuum ideológico (social-democratas e liberais dos mais variados matizes) vêm sendo punidas pela incapacidade de produzir bem-estar e segurança.
Sob o sistema de representação proporcional, o jogo é outro: trata-se de partidos populistas, e não de indivíduos (Trump) ou movimentos (Tea Party) no interior de partidos. O choque causado pela combinação tóxica de intensificação brutal da imigração (e crise de refugiados) e prolongada crise econômica da zona do euro (com gravíssima crise fiscal em alguns países) teve seu preço.
Devido ao bom desempenho econômico, a Alemanha torna-se o baluarte do liberalismo social. O governo de coalizão (formado por social-democratas e democratas cristãos) é o último refúgio seguro do "embedded liberalism" (combinação de livre comércio no plano internacional e keynesianismo doméstico) do pós-guerra. Não arrisco previsão sobre se irá durar.
Os efeitos da globalização nos EUA e na Europa são o elemento comum subjacente à ascensão de partidos extremistas.
Esses ecos são simétricos nos países pobres e ricos. A despeito da estridência fora de lugar dos protestos antiglobalização em nações de renda média e baixa, os resultados da mundialização foram muito positivos nesses países, tirando centenas de milhões de pessoas da pobreza.
Nos países capitalistas avançados, seus efeitos positivos foram concentrados em certos setores (finanças, tecnologia de informação etc) e regiões específicas (cinturões metropolitanos), enquanto os negativos se fizeram sentir nas áreas industriais em declínio. De Pas de Calais a Marseille, das Midlands ao norte da Inglaterra, a frustração transformou regiões que outrora foram redutos comunistas, trabalhistas e socialistas em bolsões da Frente Nacional e do britânico (e eurocético) Ukip.
Como mostra Branko Milanovic, enquanto a desigualdade entre países tem se reduzido, a desigualdade intrapaíses se eleva, sobretudo nos EUA, no Reino Unido e na Alemanha, produzindo a "nova política da redistribuição".
As pessoas nas áreas perdedoras da globalização passam a defender o que aquele autor chama de "rendas de nacionalidade", o diferencial de rendimentos que auferem simplesmente por serem cidadãos de países ricos em relação aos cidadãos de países de fora da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Daí o nacionalismo e a xenofobia.
Crise Para os inimigos da democracia representativa, o diagnóstico é invariante: a crise de representação é permanente. Tal conclusão não acrescenta nada. Os indicadores utilizados para dimensionar o descolamento entre cidadãos e representantes não sugerem descontinuidades importantes, mas consolidação de tendências.
Tome-se a baixa filiação aos partidos políticos. Na realidade, na maioria das democracias, o pico de filiação ocorreu no final da década de 1950. A progressiva perda de confiança dos cidadãos nos representantes, por outro lado, deve ser vista com cautela, assim como a queda continuada na taxa de comparecimento às urnas.
A vida parlamentar vem se organizando há pelo menos três décadas em torno de "parties without partisans" (partidos sem partidários), na conhecida fórmula de Russell Dalton. Com a introdução do financiamento público dos partidos políticos no fim da década de 1950, as siglas se tornaram cartéis de representação. Há governo, mas ele age em um vazio normativo, como nota o cientista político Peter Mair. Ao fim e ao cabo, legendas importam decisivamente, o que a eleição de Trump só confirma.
Em vez de sinalizarem apatia política ou cinismo cívico, os indicadores citados acima podem ser melhor interpretados como o surgimento do que a cientista política Pippa Norris chamou de "critical citizens" (cidadãos críticos).
Nesse sentido, o que se observa são democratas insatisfeitos que aderem normativamente aos ideais da democracia liberal, mas que enxergam deficit no funcionamento das instituições. A ideia de que teria ocorrido forte descontinuidade nas atitudes quanto à democracia (maior tolerância a soluções autoritárias, por exemplo) deve ser encarada com ressalvas, como sustentou Ronald Inglehart no "Journal of Democracy".
Que parece ter havido retrocesso no avanço das democracias não há dúvidas. Em 2007, o escore agregado da Freedom House sofreu inflexão pela primeira vez desde 1990, iniciando-se novo padrão. Ou seja, os ganhos líquidos são negativos: houve mais países sofrendo queda do que melhorando seus escores no índice global.
Como notou a revista "The Economist", o liberalismo perdeu a maioria dos argumentos em 2016. Mas ele também foi posto à prova nas décadas de 1920 e 1960. Como princípio organizador das democracias históricas, entretanto, ele sempre mostrou resiliência.
O que não quer dizer que o mal-estar civilizatório produzido pela ascensão de Trump não seja enorme, inclusive no campo republicano e liberal europeu. Não parece razoável esperar uma reversão desses processos sem uma nova era de prosperidade ou sem uma solução para o choque da imigração e da ameaça de grupos terroristas. Para o historiador Pierre Rosanvallon, a resposta à crise do liberalismo no início do século 20 foi o Estado de bem-estar social. Na atual crise, se haverá solução ou que forma tomará, é temerário afirmar.
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Eleição de Trump é resposta à promessa liberal de inclusão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU