30 Junho 2016
“A decisão das urnas produzirá efeitos negativos imediatos não apenas sobre o Reino Unido. O aumento da incerteza antes mesmo de completado o processo tende a provocar uma redução dos fluxos internacionais de comércio e de investimento”, em artigo publicado por Paulo José Whitaker Wolf, doutorando em Economia no IE/Unicamp e Professor do Curso de Especialização em Relações Internacionais da Extecamp e Giuliano Contento de Oliveira, professor do IE/Unicamp e Coordenador de Curso de Especialização em Relações Internacionais da Exte-camp, publicado por CartaCapital, 30-06-2016.
Eis o artigo.
A comunidade internacional assistiu, com grande surpresa, à decisão dos britânicos de deixarem a União Europeia (UE) no referendo realizado no dia 23 de junho, isto é, de encerrar a relação iniciada em 1973, após longas e, por vezes, difíceis negociações.
De fato, os britânicos sempre se mostraram desconfortáveis com um projeto de integração regional em que os países concordam em transferir poderes soberanos das instituições nacionais para um conjunto de instituições supranacionais, mesmo obtendo importantes concessões dos demais países do bloco.
Ainda que as autoridades peçam pressa, o processo de saída de um país-membro da UE é bastante longo, como especificado pelo Art. 50 do Tratado de Lisboa, que rege o funcionamento do bloco desde 2010. Isso não deve acontecer, integralmente, antes de 2018, ao que tudo indica.
A decisão das urnas produzirá efeitos negativos imediatos não apenas sobre o Reino Unido. O aumento da incerteza antes mesmo de completado o processo tende a provocar uma redução dos fluxos internacionais de comércio e de investimento.
Não deixou de ser bastante sintomático o fato de, logo após o anúncio do resultado do referendo, a libra esterlina ter sofrido a sua maior desvalorização em relação ao dólar desde 1985, refletindo a inquietação dos mercados em relação ao futuro da economia europeia e britânica depois da saída.
Uma vez completado esse processo, a UE terá perdido um de seus mais influentes membros, a começar pelo fato de que o Reino Unido responde por mais de 14% do PIB comunitário – o terceiro maior, depois da Alemanha e da França.
Com a saída do Reino Unido, a UE estará inegavelmente mais pobre, o que tende a enfraquecer não apenas o seu dinamismo interno, mas também a sua influência nas relações internacionais.
A saída do Reino Unido deverá levar à maior reforma da UE desde sua fundação. É evidente que há uma insatisfação ampla em relação aos rumos do projeto de integração regional europeu, que se distanciou consideravelmente dos princípios fundamentais que o orientou no contexto do pós-guerra, sobretudo depois da crise com origem na zona do euro, mas com reflexos em todo o bloco.
Para evitar que a saída do Reino Unido leve a movimentos semelhantes em outros países do bloco, é necessário que a UE se aproxime dos cidadãos europeus e seja mais responsiva aos seus anseios, condição que exige o fortalecimento das políticas supranacionais e sua maior articulação com as políticas nacionais orientadas para o desenvolvimento e a redução das desigualdades entre os países-membros do bloco. Afinal, a pura e simples eliminação das fronteiras aos fluxos de comércio e investimento entre esses países não é capaz de viabilizar isso.
Entretanto, o fortalecimento das políticas supranacionais pressupõe, necessariamente, o fortalecimento das instituições da UE. Isso implica o aumento da legitimidade dessas instituições e, portanto, a redução do déficit democrático, isto é, o sentimento, amplamente compartilhado entre os cidadãos europeus, de que as decisões que afetam a suas vidas são tomadas por uma burocracia que não leva em conta a sua voz. Assim, as instituições da UE devem permitir uma maior participação dos cidadãos na tomada de decisões, a despeito dos avanços realizados pelo Tratado de Lisboa nesse sentido.
Além disso, o orçamento comunitário que financia essas instituições e cujos recursos provêm de taxas sobre a importação e sobre o valor adicionado, além de uma contribuição proporcional ao tamanho da economia de cada país-membro, é ainda muito reduzido, correspondendo a apenas 1% do PIB comunitário.
Ademais, ele deve estar sempre em equilíbrio, pois não é permitido à UE captar recursos no mercado mediante a emissão de títulos. Dessa maneira, para que as instituições da UE possam fazer frente aos desafios de um espaço tão heterogêneo por meio das políticas supranacionais, o orçamento comunitário deve ser ainda maior.
Por sua vez, o Reino Unido perde seu principal parceiro de comércio e de investimento e o seu au-xílio por meio das políticas supranacionais, como é o caso da Política Regional ou de Coesão. Segundo estudos do Tesouro britânico, o PIB do país apresentaria um crescimento de 3% a 6% menor com a saída do bloco. Para o FMI, esse impacto seria entre 1,5% e 9,5%.
A situação é ainda mais grave porque os britânicos não devem esperar concessões generosas de seus vizinhos nos moldes das obtidas pela Noruega e pela Suíça, por exemplo, ao menos não nesse momento.
O Reino Unido ainda passa a enfrentar o risco concreto de uma fragmentação interna. Do ponto de vista social, o referendo mostrou uma sociedade muito heterogênea, sendo que os mais ricos, os de maior escolaridade, os mais jovens e os que moram nos centros urbanos optaram pela permanência na UE, ao passo que os mais pobres, de menor escolaridade, os mais velhos e os que moram em regiões rurais optaram pela saída do bloco. É bastante provável que as tensões entre esses diferentes grupos sociais aumentem consideravelmente depois do resultado do referendo.
Já do ponto de vista político, vale lembrar que o Reino Unido é atualmente uma união política entre quatro países, isto é, a Inglaterra, o País de Gales, a Escócia e a Irlanda do Norte. O referendo mostrou que há uma divisão clara entre os eles. Enquanto 53,4% dos ingleses e 52,5% dos galeses optaram por sair do bloco, 38,0% dos escoceses e 44,2% dos norte-irlandeses optaram por esse caminho.
Isso demonstra que Edimburgo e, em menor medida, Belfast, já não se sentem mais representadas por Londres, aumentando a probabilidade de que elas escolham deixar a união e seguir, também, seu próprio caminho.
A Escócia demonstra a sua insatisfação com as diretrizes de Londres há tempos. Possuindo uma economia dinâmica, que, inclusive, conta com grandes reservas de petróleo no Mar do Norte, os escoceses teriam pouco a temer em deixar o Reino Unido e, em seguida, ingressar na UE. Um novo referendo sobre a questão tende, pois, a ocorrer.
A Irlanda do Norte, por seu turno, embora menos rica que a Escócia, pode optar por deixar o controle britânico, o que pode favorecer a aproximação e, depois, a reunificação à Irlanda, que já é membro da UE. As relações entre ambos os países, separados desde 1922 por divergências religiosas, melhorou consideravelmente nas últimas décadas.
Destarte, do ponto de vista da UE, a saída do Reino Unido abre dois possíveis caminhos, a saber:
1) ensejar a saída de países do bloco, especialmente daqueles que têm enfrentado imensas dificuldades para superar a crise iniciada em 2009;
2) tornar as relações entre os países integrantes da UE um pouco mais reforçadas, diante das históricas resistências que os britânicos assumiram para participar do processo de integração regional.
Do ponto de vista do Reino Unido, por seu turno, há a possibilidade de fragmentação da histórica região, com efeitos imprevisíveis sobre cada uma delas, do ponto de vista econômico e das relações internacionais.
Diante disso, pode-se afirmar que a saída do Reino Unido da UE é um verdadeiro revés civilizatório. Uma grande perda para os britânicos, para os europeus e para todos aqueles que acreditam na superação de divergências por meio da cooperação.
Lições importantes devem ser retiradas desse fato histórico e convertidas em ações concretas que viabilizem a construção de uma nova Europa baseada no princípio da união entre os povos e para a qual a velha Albion possa, um dia, retornar.
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Brexit, um revés civilizatório? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU