03 Dezembro 2016
Faltam quatro meses para o 50º aniversário da encíclica Populorum progressio, de Paulo VI, pedra angular do magistério social da Igreja, e começa na tarde do dia 1º de dezembro, na Pontifícia Universidade Gregoriana, um clico de palestras públicas intitulado “O desenvolvimento sustentável. Da Populorum progressio até hoje”, que se estenderá até maio de 2017.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada por Vatican Insider, 01-12-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os encontros, coordenados pelo jesuíta espanhol Fernando de la Iglesia Viguiristi, serão mensais e serão realizados às quintas-feiras, das 16h30 às 18h. Um dos professores, o padre Diego Alonso Lasheras, explica ao Vatican Insider: “Podemos considerar a encíclica como um documento profético. Bento XVI a definiu como ‘a Rerum novarum dos tempos modernos’. Paulo VI foi muito criticado, mas hoje existe todo um campo de pesquisa que explora a relação entre religião e desenvolvimento”.
A encíclica Populorum progressio, publicado no dia 28 de março de 1967 (datada de 26, Domingo de Páscoa), é um documento destinado a marcar a história do pontificado de Paulo VI, no rastro do discurso feito na ONU em outubro de dois anos antes: promove os direitos humanos de todos os povos subdesenvolvidos e fala da carência de solidariedade evangélica no Terceiro Mundo, especialmente na América Latina. Uma carência de solidariedade evangélica própria dos cristãos. O contexto em que a encíclica se insere é o dos anos 1960, os “sixties” caros aos estadunidenses, um período caracterizado pelo mito do crescimento ilimitado e pela conquista do espaço.
Referindo-se às grandes encíclicas sociais dos seus antecessores, Paulo VI afirma que “a questão social adquiriu dimensão mundial”, e é “urgente” uma resposta porque “os povos da fome interpelam hoje, de maneira dramática, os povos da opulência”; a Igreja “estremece diante desse grito de angústia e chama cada um a responder com amor ao próprio irmão”.
“Ser libertos da miséria, encontrar com mais segurança a subsistência, a saúde, um emprego estável; ter maior participação nas responsabilidades, excluindo qualquer opressão e situação que ofendam a sua dignidade de homens; ter maior instrução; numa palavra, realizar, conhecer e possuir mais, para ser mais: tal é a aspiração”, explica Paulo VI, “dos homens de hoje, quando um grande número dentre eles está condenado a viver em condições que tornam ilusório este legítimo desejo.”
A primeira parte do documento é dedicada ao “desenvolvimento integral”. Em um momento histórico em que a palavra “desenvolvimento” tinha se tornado moda, o papa adverte que o desenvolvimento não pode se reduzir ao mero crescimento econômico, mas deve ser pensado em termos de desenvolvimento integral, isto é, que promova todos os homens e o homem todo.
O desenvolvimento integral é uma vocação e um dever pessoal de avançar para uma condição cada vez mais humana, e isso inclui a eliminação das carências materiais e das estruturas opressivas que exploram os trabalhadores ou tornam as transações econômicas injustas.
A vocação ao desenvolvimento e ao dever de promovê-lo se torna manifesta no aumento da consideração pela dignidade de todos, na cooperação para o bem comum e no desejo de paz. O ideal de tender a uma condição cada vez mais humanas culmina no reconhecimento dos valores mais altos, a fé em Deus e a unidade na caridade de Cristo.
O papa reconhece que “as potências colonizadoras muitas vezes visaram apenas ao seu interesse”, denuncia o “lento ritmo do desenvolvimento” dos povos pobres diante do crescimento rápido dos povos ricas. E estigmatiza as oligarquias que, em certos países, gozam de “uma civilização refinada”, enquanto as populações são forçadas a condições de vida “indignas da pessoa humana”.
“Nesta confusão”, adverte o pontífice, “torna-se mais violenta a tentação, que talvez leve a messianismos fascinantes, mas construtores de ilusões. Quem não vê os perigos, que daí resultam, de reações populares violentas, de agitações revolucionárias, e de um resvalar para ideologias totalitárias?”
Paulo VI, depois, cita a contribuição positiva dos missionários, lembra o exemplo de Charles de Foucauld, esperando, em favor do desenvolvimento, “uma ação de conjunto com base em uma visão clara de todos os aspectos econômicos, sociais, culturais e espirituais”. A Igreja, “perita em humanidade”, não pretende “intrometer-se na política dos Estados”, mas quer oferecer uma “visão global do homem e da sua humanidade”.
O Papa Montini afirma que “a busca exclusiva do ter forma então um obstáculo ao crescimento do ser e opõe-se à sua verdadeira grandeza: tanto para as nações como para as pessoas, a avareza é a forma mais evidente do subdesenvolvimento moral”, e critica as “estruturas opressivas, quer provenham dos abusos da posse ou do poder, da exploração dos trabalhadores ou da injustiça das transações”.
Ele lembra que “propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário”, explicando que “bem comum exige por vezes a expropriação, se certos domínios formam obstáculos à prosperidade coletiva, pelo fato da sua extensão, da sua exploração fraca ou nula, da miséria que daí resulta para as populações, do prejuízo considerável causado aos interesses do país”.
Na encíclica, depois, critica-se o sistema que considera “o lucro como motor essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia”, assim como uma “mística exagerada do trabalho”, enquanto se reitera, por outro lado, que a economia deve estar a serviço.
Em uma passagem que será fonte de discussões e de polêmicas, refere-se à insurreição violenta contra a tirania. “Não obstante, sabe-se que a insurreição revolucionária – salvo casos de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país – gera novas injustiças, introduz novos desequilíbrios, provoca novas ruínas. Nunca se pode combater um mal real à custa de uma desgraça maior.”
O papa fala ainda dos programas de planejamento, alertando contra o “perigo de uma coletivização integral ou de uma planificação arbitrária” e da “tecnocracia de amanhã” que “pode ser fonte de males não menos temível do que o liberalismo de ontem”. Menciona a alfabetização, o papel da “família natural, monogâmica e estável”, a “grande tentação de frear o aumento demográfico por meio de medidas radicais”, reiterando que “o direito ao matrimônio e à procriação é um direito inalienável, sem o qual não há dignidade humana”. E também aborda o risco da tentação materialista: “Nunca será demais defender os países pobres desta tentação que lhes vem dos povos ricos”.
Por isso, deve ser promovido, explica o pontífice na segunda parte do documento, um “humanismo planetário” que permita um “desenvolvimento solidário” da humanidade, construindo “um mundo em que todos os homens, sem exclusão de raça, religião ou nacionalidade, possam viver uma vida plenamente humana, livre de servidões que lhe vêm dos homens e de uma natureza mal domada”.
Um instrumento para promover essa solidariedade é a instituição de um “fundo mundial” e “a reconversão de certos esbanjamentos que são fruto do medo ou do orgulho”.
Paulo VI também afirma que “a lei do livre comércio já não pode, por si mesma, reger as relações internacionais” e que, apenas no caso em que os contraentes “se encontram mais ou menos nas mesmas condições de poder econômico”, ela é “um estímulo ao progresso”. Enquanto que, se as condições são desiguais demais, “os preços ‘livremente’ estabelecidos no mercado podem levar a consequências iníquas”.
Montini não quer prever a abolição do mercado baseado na concorrência, mas dizer, contudo, que é preciso mantê-lo dentro dos limites que o tornam justo e moral e, portanto, humano. Obstáculos a serem superados para um desenvolvimento solidário dos povos também são o nacionalismo e o racismo.
Na terceira parte da encíclica, Paulo VI fala da caridade universal, cita o drama dos estudantes universitários que, indo aos países ricos para estudar, acabam “não raramente” perdendo os seus valores espirituais; recorda o drama dos trabalhadores imigrantes e pede que os empresários que operam nos países pobres favoreçam o crescimento de uma classe dirigente autóctone. O desenvolvimento é, portanto, “o novo nome da paz”.
O papa conclui recordando as suas palavras na ONU e pedindo uma autoridade mundial mais eficaz, capaz de intervir em favor do desenvolvimento e da luta contra a pobreza.
A Populorum progressio seria objeto de críticas, às vezes ferozes, por parte dos círculos econômicos conservadores e de ambientes capitalistas. O Papa Montini seria rotulado de “marxista”.
Observa o padre Lasheras: “Quando os papas falam de problemas sociais, são duramente criticados de ignorados até mesmo dentro da Igreja. A Rerum novarum de Leão XIII também não foi bem acolhida. Prefeririam que os papas não se ocupassem desses temas e dizem: ‘Que se ocupem de teologia e de moral, mas não dessas coisas, porque não estão bem informados sobre economia, finanças, trabalho...’”.
Como se vê, pensando na acolhida de certas passagens da exortação Evangelii gaudium ou da encíclica Laudato si’, nada de novo debaixo do sol.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"Populorum progressio", profecia ignorada e criticada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU