Por: Patricia Fachin | 12 Outubro 2016
O argumento do governo federal de instituir um teto para os gastos públicos nas próximas duas décadas com a finalidade de equilibrar as contas públicas, dado que a despesa aumentou muito em relação à receita nos últimos anos, “é frágil” e “está pouco trabalhado”, diz Róber Avila na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line na última terça-feira, 11-10-2016, após a aprovação da PEC 241 na Câmara dos Deputados, por 366 votos a favor e 111 contrários. O economista explica que se analisado “na superfície, esse argumento está ok”, mas é preciso considerar que esse desequilíbrio é o reflexo de uma recessão. “A receita, nos últimos dois anos, despencou e isso fez com que aumentasse o déficit público, principalmente por conta da questão recessiva. (...) Então, essa análise de dizer que o déficit público aumentou, de fato é verdade, mas ele aumentou em grande medida porque as receitas públicas despencaram. Mas o argumento é falacioso e usado como uma justificativa para cortar direitos sociais que foram instituídos na Constituição de 88”.
Na avaliação do economista, num momento de recessão e crise econômica como o atual, a “forma de reverter esse processo é aumentar o gasto público, mas não para aumentar o salário dos juízes, e sim investir em saneamento básico, em construção de pontes, fazer a economia girar através do consumo. Na sequência, se o governo tem uma recuperação econômica em termos macroeconômicos, a arrecadação tende a subir e o governo faz uma poupança – o superávit primário – para pagar os gastos do passado”.
Outra alternativa possível diante desse quadro, defende, é fazer uma reforma tributária no país. Essa medida, explica, inverteria a proposta da PEC 241, possibilitando o aumento da receita e a não necessidade de cortar algumas despesas. “A tributação sobre a renda ainda é relativamente baixa no Brasil com relação a todos esses países. A tributação sobre dividendos no país também é zero, e isso só ocorre no Brasil e na Estônia. Ou seja, existe espaço para reestruturar a tributação e o déficit, mas ao invés de fazer uma reestruturação tributária sobre lucro e propriedade, preferiu-se reduzir os serviços públicos”. E conclui: “O Brasil é quem está atrás, porque no resto do mundo a receita tributária é progressiva e as pessoas que têm mais renda contribuem mais; isso é preconizado há mais de 300 anos pela literatura econômica, mas no Brasil se faz o contrário: os pobres pagam mais impostos do que os ricos”.
Róber Avila durante palestra, no IHU
Foto: João Vitor Santos | IHU
Róber Iturriet Avila é doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística – FEE e diretor sindical do Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do Rio Grande do Sul – Semapi.
Avila publicou na revista IHU On-Line, Nº. 491, o artigo Transição ecológica como caminho para estancar a crise econômica, resenha da obra de Gaël Giraud, Ilusão financeira: dos subprimes à transição ecológica (São Paulo Loyola, 2015). Também é autor do artigo O capital no século XXI e sua aplicabilidade à realidade brasileira, junto com João Santos Conceição, publicado na edição 234 do Cadernos IHU ideias.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como avalia a aprovação majoritária da PEC 241 na Câmara dos Deputados, por 366 votos a 111, na noite de segunda-feira, 10-10-2016?
Róber Iturriet Avila – Essa PEC 241 é uma Proposta de Emenda Constitucional, portanto, está propondo alterar a Constituição brasileira e, ao que tudo indica, será aprovada no segundo turno, já que tem que ser aprovada em dois turnos por 3/5 dos votos tanto da Câmara quanto do Senado. A tendência é que ela seja aprovada, e se isso acontecer, a Constituição de 1988 vai mudar no que tange à destinação dos recursos públicos e, por consequência, da oferta dos serviços públicos no país.
IHU On-Line - Os críticos à PEC 241 argumentam que ela irá desmontar o Estado social brasileiro ao reajustar os investimentos com educação e saúde de acordo com a inflação nas próximas duas décadas. Quais são suas críticas à PEC nesse sentido? De que modo ela desmontará o Estado social?
Róber Iturriet Avila – Hoje a União arrecada 19,8% das receitas tributárias do Produto Interno Bruto - PIB. O que observamos no período à frente - já que a emenda constitucional será válida por 20 anos – é que devido ao crescimento do envelhecimento populacional, a tendência é que, mesmo sendo aprovada uma reforma previdenciária e imaginando que não haja reposição acima da inflação nos próximos 20 anos para as aposentadorias, as despesas do INSS, que hoje são um pouco mais de 7,5% do PIB, crescerão para um pouco mais de 8%.
Ao mesmo tempo, essa emenda constitucional exige que não haja elevação real do gasto durante 20 anos, isto é, em um ambiente de crescimento e envelhecimento populacional em que as aposentadorias aumentarão o gasto, todos os outros gastos terão que ser reduzidos em termos percentuais em relação ao PIB. Além de estar prevendo uma manutenção do gasto real, de todos os gastos na esfera da União, frente à ampliação dos benefícios previdenciários, por exemplo, todos os outros benefícios terão que ser reduzidos. Os principais gastos, além da Previdência, na esfera da União, são saúde e educação, principalmente, além da conta com juros, mas essa não entra nessa despesa, porque ela não é uma despesa primária.
O que isso significa? Que haverá uma redução no gasto real per capita nos principais serviços – educação e saúde – nos próximos 20 anos, sendo que a União repassa boa parte desses recursos para os estados e municípios. Então, tanto na União quando nos estados e nos municípios, todos terão que ter uma redução compulsória dos gastos em termos per capita.
Se analisarmos do ponto de vista social, a aprovação da PEC é bastante temerária, porque o SUS, que é um dos principais serviços públicos que existe, foi estabelecido pela Constituição de 1988 e implementado alguns anos depois. Após a implementação do SUS, por exemplo, a expectativa de vida no Brasil aumentou mais de 10 anos e isso não foi por acaso, foi devido ao acesso universal à saúde, que antes não existia. Por exemplo, se analisarmos alguns dados mais antigos, de décadas atrás, o número de pessoas que morriam por doenças associadas a verminoses e parasitas era muito mais elevado. O acesso universal à saúde, à vacinação em massa, reduziu uma série de doenças de forma sistemática. Se observarmos os indicadores de desenvolvimento humanos no país, eles melhoraram muito depois da promulgação da Constituição de 1988.
Além disso, há outros fatores problemáticos. Um dos aspectos que gera certa indignação na população, de forma geral, são os altos salários de alguns cargos públicos. Se a PEC for aprovada, o teto do gasto será estabelecido e a definição do que será gasto vai ser feita pelo parlamento. O problema é que dentro do parlamento brasileiro existe uma pressão política grande, e aqueles atores que têm mais poder, tanto político quanto econômico, têm maior capacidade de influenciar o voto dos parlamentares. Portanto, o que poderá ocorrer, por exemplo, é que os salários do Judiciário – como têm ocorrido – não sofrerão perdas, porque esse setor tem uma capacidade forte de influenciar o voto dos parlamentares e tem poder político.
Já as outras despesas podem ser reduzidas, uma vez que o teto está estabelecido. E quais são essas outras despesas? São despesas relacionadas ao Exército, à infraestrutura no país, ao saneamento básico, a subsídios à aquisição de imóveis, subsídios à produção de alimentos, subsídios ao consumo de energia para as pessoas mais pobres, mas, principalmente, à saúde e educação. Portanto, a tendência é que esses principais gastos sofram uma redução.
IHU On-Line - Caso a PEC 241 seja aprovada, é possível fazer uma comparação de quanto os orçamentos para educação e saúde serão reduzidos em relação à metodologia de orçamento anterior?
Róber Iturriet Avila – É possível, mas é apenas uma estimativa, porque essa é uma variação de longo prazo. Temos que fazer várias estimativas, e uma delas diz respeito ao envelhecimento populacional que ocorrerá nesse período. O INSS aumentará a despesa, independentemente de querermos ou não, e provavelmente o número de aposentados vai aumentar. Hoje, em torno de 6,6% do PIB é gasto em educação e 4,1% do PIB é gasto em saúde, dando um total aproximado de 10,7% de gastos em saúde e educação. Tendo a implementação dessa PEC por 20 anos – hoje a receita da União é 19,8% do PIB -, e estimando uma taxa de crescimento de 2,5%, ao longo de todo esse período, e já estimando também o crescimento das despesas com a aposentadoria, como a variação do PIB não será repassada para os gastos sociais, provavelmente em 20 anos a arrecadação da União em relação ao PIB será em torno de 12%. Isto é, haveria uma perda de aproximadamente 8 pontos percentuais do PIB – o que é bastante.
Nesse meio tempo, as aposentadorias, que representam em torno de 7,5% do PIB, devem passar para 8,5% ou 9%, ou seja, se hoje a União tem um espaço de aproximadamente 12 pontos percentuais do PIB para fazer todas as despesas, em um futuro próximo, no final desses 20 anos, dando essas condições que falei, esse espaço será em torno de 4% ou 5% do PIB, e isso representaria uma redução de mais de 50% em termos percentuais do PIB para os demais gastos.
IHU On-Line - O governo argumenta que a instituição de um teto de gastos é necessária para tentar equilibrar as contas públicas porque, entre 2008 e 2015, a despesa cresceu 51% acima da inflação, enquanto a receita evoluiu 14,5%. Como avalia esse argumento? Há ou não essa necessidade de equilibrar as contas? O déficit público é ou não um problema? Como equacionar essa conta?
Róber Iturriet Avila – Esse argumento é muito frágil e, além disso, ele está pouco trabalhado. Se analisarmos a situação, de fato, na superfície, esse argumento está ok. O problema é que nos últimos dois anos o Brasil sofreu uma recessão importante, e quando tem uma recessão, a receita cai, e ela tende a cair mais do que a própria recessão, no caso brasileiro. Então, a receita, nos últimos dois anos, despencou e isso fez com que aumentasse o déficit público, principalmente por conta da questão recessiva.
Só que se analisarmos um pouco mais criteriosamente a origem desse déficit, veremos que justamente as despesas com pessoal, que é uma das principais críticas feitas ao governo, de 2010 para cá caíram em termos percentuais do PIB. O que aumentou foram os benefícios sociais, em parte devido às próprias aposentadorias, em parte devido às políticas sociais que foram adotadas, entre elas, as de transferência de renda e de acesso à moradia. Além disso, teve outra despesa, que não é bem uma despesa, mas que entra como despesa, que são os subsídios, principalmente às grandes empresas, e também as isenções no IPI, no IOF, na cesta básica e na folha de pagamento. Tudo isso aumentou e entrou como despesa, porque são subsídios, descontos e abatimentos de impostos, os quais poderiam ser revistos.
Então, essa análise de dizer que o déficit público aumentou, de fato é verdade, mas ele aumentou em grande medida porque as receitas públicas despencaram. Mas o argumento é falacioso e usado como uma justificativa para cortar direitos sociais que foram instituídos na Constituição de 88. Não acho legítimo implementar um programa que não passou pelo escrutínio eleitoral. Se tivesse um amplo debate com a sociedade e se chegasse à conclusão de que os direitos constitucionais estavam excessivos, e a população majoritariamente aprovasse isso, tudo bem a Constituição ser alterada. Mas não houve um debate amplo e os tecnocratas usam argumentos inválidos, mas parcialmente verdadeiros, para tomar medidas como essa.
IHU On-Line - O que seria um regime fiscal alternativo à PEC 241 e mais adequado para o Brasil neste momento ou um regime fiscal que permitisse a intervenção estatal mesmo diante de um momento de recessão, como o que se vive no Brasil?
Róber Iturriet Avila – Geralmente a recessão não dura para sempre, e a economia mais cedo ou mais tarde tende a se recuperar. Pensar uma alternativa depende da visão de mundo do analista. Eu defendo uma visão de que em momentos recessivos, quando o investimento privado cai, o consumo cai, a única variável capaz de reverter o quadro de recessão é ampliar os gastos governamentais. À medida que os gastos governamentais também caem, a economia tende a ir para uma espiral negativa e a recessão tende a se aprofundar. Então, defendo que em momentos de recessão, a forma de reverter esse processo é aumentar o gasto público, mas não para aumentar o salário dos juízes, e sim investir em saneamento básico, em construção de pontes, fazer a economia girar através do consumo. Na sequência, se o governo tem uma recuperação econômica em termos macroeconômicos, a arrecadação tende a subir e o governo faz uma poupança – o superávit primário – para pagar os gastos do passado.
Portanto, do ponto de vista macroeconômico, essa PEC também é problemática, porque ela faz com que haja redução da despesa em um momento de recessão e impede qualquer medida anticíclica uma vez que os gastos estão congelados por emenda constitucional.
IHU On-Line – Mesmo com o déficit público, é possível o Estado continuar tendo uma intervenção ampla?
Róber Iturriet Avila – Num momento recessivo como o que vivemos, as receitas governamentais caem, e isso faz com que aumente o déficit. A relação mais importante é a relação dívida X PIB, e se o PIB está caindo, essa relação aumenta. Já que vai se aumentar a relação dívida X PIB e o déficit por conta da recessão, deveria se aproveitar esse déficit para ampliar o crédito público e dinamizar a economia para, no futuro, poder poupar e reverter o gasto anterior. Não dá para jogar tudo na recessão, porque isso tem um custo social forte. Além disso, quem emite a moeda nacional é o próprio governo brasileiro, e o endividamento em moeda nacional não é tão problemático quanto o endividamento em moeda estrangeira.
A questão é o que vale mais: se endividar um pouco para não entrar numa recessão tão grande como a que estamos ou cortar todos os gastos e jogar a economia numa recessão mais forte? A primeira hipótese é melhor.
IHU On-Line – O que seria uma alternativa de regime fiscal à PEC 241?
Róber Iturriet Avila – Tenho defendido que é preciso uma reestruturação da tributação no país, porque mais de 50% das receitas tributárias vêm do consumo e não há paralelo no mundo com esse tipo de regime. Esse regime é adotado só em alguns países da América Latina. As receitas tributárias que incidem sobre a propriedade no Brasil são baixíssimas se comparadas à tributação de países liberais como os EUA, França, Alemanha ou Reino Unido. Todos esses países têm uma arrecadação tributária muito maior sobre a propriedade do que o Brasil. Além disso, a tributação sobre a renda ainda é relativamente baixa no Brasil com relação a todos esses países.
Então, é possível fazer uma reestruturação tributária mais justa do ponto de vista social e que tem um paralelo internacional, porque quase todos os países fazem isto: tributam renda e patrimônio e reduzem a tributação sobre o consumo. Isso tem um efeito arrecadatório importante, porque provavelmente aumentaria o consumo e favoreceria o crescimento econômico. A tributação sobre dividendos no país também é zero, e isso só ocorre no Brasil e na Estônia. Ou seja, existe espaço para reestruturar a tributação e o déficit, mas ao invés de fazer uma reestruturação tributária sobre lucro e propriedade, preferiu-se reduzir os serviços públicos.
IHU On-Line – A reforma tributária inverteria a proposta da PEC 241, aumentando a receita e diminuindo a despesa?
Róber Iturriet Avila – Exatamente. E isso seria mais justo do ponto de vista social e da justiça fiscal. E isso não é nenhum disparate, porque todos os países desenvolvidos do mundo adotam medidas como essa. O Brasil é quem está atrás, porque no resto do mundo a receita tributária é progressiva e as pessoas que têm mais renda contribuem mais; isso é preconizado há mais de 300 anos pela literatura econômica, mas no Brasil se faz o contrário: os pobres pagam mais impostos do que os ricos.
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Reforma tributária seria mais eficiente que a PEC 241. Entrevista especial com Róber Iturriet Avila - Instituto Humanitas Unisinos - IHU