06 Outubro 2016
Em ambas as dioceses o Papa fez saber como quer que se coloque em prática o capítulo oitavo da Amoris Laetitia, o da comunhão aos divorciados recasados. Seus porta-vozes aprovados: os bispos argentinos e seu cardeal vigário.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada por Chiesa.it, 04-10-2016. A tradução é de André Langer.
Causou grande rumor em todo o mundo a carta de encômio escrita pelo Papa Francisco aos bispos argentinos da região de Buenos Aires, elogiados pela maneira como souberam dar a justa interpretação da Amoris Laetitia – ou seja, a do próprio Francisco, a única autêntica, porque, disse, “não há outras” – sobre o ponto crucial da comunhão aos divorciados recasados.
Mas, na realidade, ainda não está claro que valor tem o texto dos bispos argentinos. O documento está assinado de modo genérico “Os bispos da Região” e não aparece publicado em nenhum órgão oficial de sua diocese. Foi inicialmente distribuído ao clero bonaerense – que o vazou – e só em um segundo momento apareceu na agência on-line AICA, da Conferência Episcopal da Argentina, com a advertência de que “cada bispo em sua diocese tem de fato autoridade para precisá-lo, ampliá-lo ou delimitá-lo”.
Enquanto isso, também em Roma, na diocese da qual Francisco é bispo, há diretrizes muito oficiais sobre como interpretar e aplicar a Amoris Laetitia. Elas foram divulgadas pelo cardeal vigário do Papa, Agostino Vallini, que as leu solenemente no dia 19 de setembro na catedral de São João de Latrão.
Neste caso não houve, pelo que se sabe, carta de encômio do Papa. Mas, é impensável que o cardeal vigário de Roma tenha oficializado estas diretrizes sem que o titular supremo da diocese as tenha lido primeiro e aprovado.
Portanto, hoje sabemos com certeza qual é a interpretação da Amoris Laetitia que o próprio Francisco autoriza em sua diocese.
É, de fato, a interpretação que se lê nas 17 páginas do texto assinado pelo cardeal Vallini, publicado na íntegra no sítio oficial do Vicariato de Roma.
São diretrizes que repassam as principais passagens da exortação pós-sinodal.
Estas são especialmente amplas no que diz respeito ao fatídico capítulo oitavo, que diz respeito aos divorciados recasados “vinculados por uma precedente união sacramental”.
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A primeira indicação que o cardeal vigário Vallini dá é “colocar à disposição um serviço de informação e de assessoramento em vista de uma verificação da validade do matrimônio”, servindo-se dos novos procedimentos, mais rápidos, que o Papa introduziu nos processos canônicos de nulidade.
Mas, se “não se pode ir pela via processual porque o matrimônio foi celebrado validamente e fracassou por outros motivos, pelo que então a nulidade matrimonial não pode ser demonstrada nem declarada”, abrem-se os percursos traçados pela Amoris Laetitia.
O primeiro passo, que deve ser levado a cabo – disse o cardeal – é “um longo ‘acompanhamento’ que siga o princípio moral do primado da pessoa sobre a lei”.
Na sequência, Vallini prossegue textualmente da seguinte maneira, nos pontos quinto e sexto do capítulo quarto da sua relação:
“O passo seguinte é um ‘responsável discernimento pessoal e pastoral’ (AL 300). Alguns exemplos: acompanhar com colóquios periódicos, verificar se a consciência de ‘reflexão e de arrependimento’ amadurece, uma abertura sincera do coração com a finalidade de reconhecer as próprias responsabilidades pessoais, o desejo de busca da vontade de Deus, amadurecendo nela”.
“Nisto todos os sacerdotes têm a importantíssima tarefa, bastante delicada de levar a cabo, de evitar o ‘risco de mensagens equivocadas’, a rigidez ou o laxismo, para contribuir para a formação de uma consciência de verdadeira conversão e sem ‘renunciar a propor o ideal pleno do matrimônio’ (Al 307), segundo o critério do bem possível”.
“Este discernimento pastoral de cada pessoa individualmente é um aspecto muito delicado e deve ter em conta o ‘grau de responsabilidade’ que não é igual para todos os casos, o peso dos ‘condicionamentos ou fatores atenuantes’, pelo que é possível que, em uma situação objetiva de pecado – que não seja subjetivamente culpado ou que não o seja de modo pleno – se possa encontrar um percurso para crescer na vida cristã, ‘recebendo para isso a ajuda da Igreja’ (AL 305)”.
“O texto da exortação apostólica não vai além, mas na nota 351 lê-se: ‘Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos’. O Papa utiliza o condicional, portanto, não diz que se deve admitir aos sacramentos, embora não o exclua em alguns casos e com algumas condições [o sublinhado está no texto da relação, ndr]. O Papa Francisco desenvolve o magistério precedente em sintonia com a hermenêutica da continuidade e do aprofundamento, e não da descontinuidade e da ruptura. Afirma que devemos percorrer a ‘via caritatis’ de acolher os penitentes, ouvi-los atentamente, mostrar-lhes o rosto materno da Igreja, convidá-los a seguir o caminho de Jesus, fazer com que amadureçam na reta intenção de abrir-se ao Evangelho. Devemos fazer isso prestando atenção às circunstâncias de cada pessoa individualmente, à sua consciência, sem comprometer a verdade e a prudência que ajudarão a encontrar o caminho justo”.
“É da maior importância estabelecer com todas estas pessoas e cônjuges uma ‘boa relação pastoral’. Ou seja, devemos acolhê-las com calor, convidá-las para abrir-se para participar de alguma maneira da vida eclesial, nos grupos de famílias, para que desenvolvam algum serviço, por exemplo, caritativo ou litúrgico (coro, oração dos fiéis, procissão do ofertório). Para levar a cabo estes processos é mais do que nunca valiosa a presença ativa de casais de agentes de pastoral, o que beneficiaria muito o clima da comunidade. Estas pessoas – disse o Papa – ‘não têm que sentir-se excomungadas, mas podem viver e amadurecer como membros vivos da Igreja’ (AL 299)”.
“Não se trata de chegar necessariamente aos sacramentos, mas de orientar estas pessoas para que vivam formas de integração na vida eclesial. Mas, quando as circunstâncias concretas de um casal o tornam factível, isto é, quando seu caminho de fé foi longo, sincero e progressivo, é preciso propor viver em continência; mas se esta escolha é difícil de praticar para a estabilidade do casal, a Amoris Laetitia não exclui a possibilidade de ter acesso à penitência e à eucaristia. Isto representa uma certa abertura, como no caso em que há a certeza moral de que o primeiro matrimônio era nulo, mas não há provas para demonstrá-lo em sede judicial; mas não no caso em que, por exemplo, se ostenta a própria condição como se fizesse parte do ideal cristão, etc.”.
“Como devemos entender esta abertura? Certamente, não no sentido de um acesso indiscriminado aos sacramentos, como acontece às vezes, mas de um discernimento que distinga adequadamente caso por caso. Quem pode decidir? Pelo teor do texto e da ‘mens’ de seu Autor, não me parece que haja outra solução que a do foro interno. Efetivamente, o foro interno é a via favorável para abrir o coração às confidências mais íntimas, e se se estabeleceu uma relação de confiança com um confessor ou um guia espiritual, é possível iniciar e desenvolver com ele um itinerário de conversão longo, paciente, formado por pequenos passos e sucessivas verificações”.
“Por conseguinte, só pode ser o confessor quem, em um determinado momento, em sua consciência, após muita reflexão e oração, assuma a responsabilidade perante Deus e o penitente e peça que o acesso aos sacramentos aconteça de maneira reservada. Nestes casos, o caminho do discernimento não termina (AL 303: ‘discernimento dinâmico’) com a finalidade de alcançar novas etapas rumo ao ideal cristão pleno”.
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“Uma certa abertura”, portanto, existe na Amoris Laetitia em relação ao magistério anterior, defende o cardeal vigário com o evidente assentimento do seu superior direto. No entanto, não se trata, observa, de uma abertura indiscriminada.
No que diz respeito ao acesso aos sacramentos dos divorciados recasados “o Papa utiliza o condicional” – destaca o cardeal – porque esse é “factível” apenas em alguns casos determinados e bem ponderados, ou seja, depois de um “caminho de fé longo, sincero e progressivo” que leve ao propósito do casal divorciado e recasado de “viver em continência”.
E se os dois vivem, efetivamente, como irmão e irmã, nada muda em relação à Familiaris Consortio, de João Paulo II, que nesta condição já admitia a comunhão sacramental.
Mas, e se a continência “se revela difícil de praticar para a estabilidade do casal”? É neste ponto que intervém a novidade introduzida pelo Papa Francisco, que também neste caso – observa o cardeal vigário – “não exclui a possibilidade de ter acesso à penitência e à eucaristia”.
Mas, novamente, não de maneira indiscriminada. Só quando o confessor, após examinar a fundo o caso individualmente, o autorizar. De fato, Vallini escreve fazendo referência ao pensamento do Papa: “Pelo teor do texto e pela ‘mens’ de seu Autor, não me parece que haja outra solução que a do foro interno”.
Com outras palavras: “Só pode ser o confessor quem, em um determinado momento, em sua consciência, após muita reflexão e oração, assuma a responsabilidade perante Deus e o penitente e peça que o acesso aos sacramentos aconteça de maneira reservada”.
Tendo em conta que tampouco nestes casos termina “o caminho do discernimento”, que deve continuar com a finalidade de “alcançar novas etapas rumo ao ideal cristão pleno”.
Não assombra, portanto, que ao ouvir estas indicações do cardeal vigário, alguns sacerdotes da diocese de Roma tenham lamentado que fossem “muito restritivas”. Porque, efetivamente, o cardeal submeteu o “sim” à comunhão aos divorciados recasados ao acatamento destas, e muitas, condições, que fazem com que seja aplicável apenas em raríssimos casos, além da situação de “viver em continência”.
Com a advertência, além disso, de que a possível autorização deve ser concedida apenas “no foro interno” e que o acesso aos sacramentos deve realizar-se “de maneira reservada”.
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De tudo isso podemos concluir duas observações.
A primeira é que o Papa Francisco deu, até agora, via livre não a uma, mas a duas interpretações da Amoris Laetitia aprovadas pessoalmente por ele: a dos bispos argentinos da região de Buenos Aires e a de seu vigário para a diocese de Roma.
A via argentina facilita mais o acesso aos sacramentos dos divorciados recasados; a romana, muito menos.
Por conseguinte, podemos deduzir que para o Papa Francisco a interpretação da Amoris Laetitia exposta pelo cardeal Vallini com todos os selos de aprovação da oficialidade é o patamar mínimo abaixo do qual não se pode descer, a não ser que se traia sua vontade.
Ao passo que a argentina, mais “aberta”, é a solução que lhe agrada mais. Tanto é assim que a premiou com uma carta de apoio, apesar de que se trata apenas de um esboço para posteriores integrações e aplicações em nível diocesano; talvez, inclusive, por isto seu título de mérito.
A segunda observação é que os fatos são, muitas vezes, mais fortes que as palavras. Por conseguinte, todas as condições e as precauções recordadas, por exemplo, pelo cardeal Vallini podem ser arrasadas – e na realidade o são já em muitos lugares – por comportamentos práticos que vão além das mesmas.
Uma vez que a Amoris Laetitia abriu a porta, é difícil que a comunhão aos divorciados recasados fique confinada ao “foro interno” e se realize “de maneira reservada”.
Na autorizada publicação Il Regno, o presidente dos teólogos moralistas italianos Basilio Petrà chegou a teorizar como “não necessário” o confiar-se a um presbítero e ao foro interno sacramental, isto é, à confissão, para “discernir” se um divorciado recasado pode ter acesso à comunhão.
Petrà escreveu: “O fiel iluminado poderia chegar à decisão de que no seu caso não há necessidade de confissão”.
E explicou: “[De fato], é inteiramente possível que uma pessoa não tenha a adequada consciência moral e/ou não tenha liberdade de agir diversamente e que, embora esteja fazendo algo que objetivamente é considerado grave, não esteja pecando gravemente em sentido moral e, portanto, não tenha o dever de confessar-se para acessar à eucaristia. A Amoris Laetitia, no n. 301, alude claramente a esta doutrina”.
É como dizer: cada um é livre para agir por si mesmo.
Matrimônio, paixão, ação, virtude e sacramento: a teologia depois da "Amoris laetitia". Artigo de Andrea Grillo"Ius in corpus" e "como irmão e irmã": a reviravolta da Amoris laetitia. Artigo de Andrea Grillo
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Buenos Aires e Roma. Para Francisco, são as dioceses modelo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU