14 Setembro 2016
Um importante membro filipino da comissão contra abuso sexual clerical do Papa Francisco diz que a atmosfera do grupo é positiva e, apesar da falta de resultados visíveis, insiste que um progresso real está sendo feito, trazendo o que acontece nas Filipinas como um exemplo.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 10-09-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando nos países de língua inglesa surgiram os primeiros escândalos de pedofilia por padres, sobretudo nos Estados Unidos, muitos observadores de outras partes do mundo, incluindo o Vaticano, classificaram as revelações como um problema “anglo-saxão”.
No entanto, com o tempo chegou-se à consciência de que o abuso sexual é, de fato, um flagelo mundial, motivo pelo qual o Papa Francisco criou, logo após sua eleição, uma Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores para assessorá-lo em suas reformas.
Presidida pelo Cardeal Sean P. O’Malley, de Boston, a citada comissão foi estabelecida em 2014 e, hoje, conta com 15 membros: 7 mulheres e 8 homens, religiosos e leigos, todos peritos em suas áreas, incluindo psicólogos, advogados, sobreviventes de abusos e especialistas em direitos humanos.
Entre os que se juntaram ao grupo está o Dr. Gabriel Dy-Liacco, das Filipinas, psicoterapeuta e assessor pastoral para indivíduos, casais, famílias e grupos, entre os quais há vítimas e perpetradores de abusos sexuais. Formado pela Loyola University e pelo St. Luke Institute, ambos de Maryland, EUA, ele hoje vive nas Filipinas com a esposa e filhos.
Dy-Liacco esteve em Roma esta semana participando da assembleia geral da Comissão.
Até o momento, diz ele, os encontros foram “muito produtivos”, em especial porque o grupo como um todo pôde se conhecer, o que, considerando os países de origem dos membros e seus fundos culturais, demorou um pouco para acontecer.
“Um monte de ideias que levantamos em reuniões anteriores já se concretizaram”, afirma o religioso.
No começo, as tarefas foram divididas entre alguns grupos de trabalho:
• Criação de diretrizes.
• Cuidado às vítimas.
• Educação das famílias e comunidades.
• Formação de lideranças na Igreja.
• Preocupações espirituais e teológicas.
• Recursos canônicos e jurídicos.
Dy-Liacco trabalha em dois destes grupos: o de educação das famílias e no grupo focado na criação de diretrizes de ação, amplamente percebido pela própria Comissão como a principal prioridade. O sítio Crux o entrevistou no dia 8 de setembro em Roma.
Confira a entrevista.
Para quem as diretrizes irão valer? Quer dizer, elas irão se aplicar somente às conferências episcopais, ou também aos movimentos religiosos, associações leigas e instituições de ensino?
Nós estamos desenvolvendo um modelo universal a ser proposto ao Santo Padre para todas as instituições, organizações e grupos, como um padrão mínimo para as suas próprias diretrizes. Qualquer coisa que seja uma instituição católica oficial ou que seja católica em sua identidade estará incluída aqui.
As diretrizes servirão como um modelo a toda e qualquer instituição ou organização que tenha “católico” em seu nome ou que sejam católicos em sua identidade: movimentos tais como os Casais com Cristo, Focolares, todos, não somente padres e religiosos/as, mas também leigos e instituições de ensino.
Fale um pouco do que está sendo feito nas Filipinas, em que a Comissão já começou a trabalhar.
Depois que o Papa Francisco e o Vaticano anunciaram a nomeação dos demais membros para a Comissão, incluindo eu próprio, o presidente da Conferência dos Bispos, Dom Socrates Villegas, entrou em contato comigo e me pediu uma oficina – não apenas uma oficina teórica, mas também prática que ajudasse concretamente na construção de um sistema de salvaguarda de alta qualidade.
Esse momento formativo ocorreu em agosto do ano passado. Parte da oficina serviu para os participantes começar a elaboração de seu próprio sistema jurídico.
Naquele momento, os bispos decidiram – por causa da distribuição desigual dos recursos nas dioceses – que iriam concentrar as verbas e que a Conferência Episcopal estaria na coordenação geral. Assim se criou um departamento para a salvaguarda anexada ao bispo presidente, o que significa que é um órgão permanente, o qual jamais será destituído por um bispo ou conselho. A pessoa nomeada reporta-se diretamente ao presidente da Conferência dos Bispos e ao conselho permanente.
Os bispos têm feito também várias coisas práticas. Uma delas é uma carta pastoral que contam com algumas orientações sobre o que farão, incluindo a cooperação total com as autoridades civis.
Eles também têm um sentimento de urgência, de haver um sistema em pleno funcionamento. Porém querem fazê-lo de forma correta, portanto iniciaram-se programas de formação com advogados e canonistas, em parceria com a faculdade de Direito Canônico de uma universidade beneditina local que temos.
Estão também sendo identificados recursos para as vítimas, porque não há muitos recursos para as vítimas de abuso sexual clerical em particular, embora existam muitas vítimas de outros abusos, tais como incesto, tráfico humano e trabalho infantil. Todavia, não temos muitas pessoas com formação nesse sentido, ou dispostas a receber para trabalhar com as vítimas de abusos sexuais.
Por que não?
Um dos motivos é a relação cultural e fortemente mediada entre a sociedade civil e o clero aqui nas Filipinas. Assim, um monte de terapeutas tem dificuldades de trabalhar com eficácia junto às vítimas por causa das histórias que ouvem.
Temem que este trabalho vá afetá-los pessoal ou espiritualmente. Precisamos primeiramente identificar pessoas que estejam prontas para isso, aquelas que estão dispostas a realizar este trabalho com formação.
Portanto, estamos atualmente identificando e criando recursos para atuar com as pessoas que sejam especialistas no trabalho com as vítimas de abuso sexual clerical ou religioso. Há duas pessoas que conheço que estão dispostas a atuar nessa área: eu próprio e um colega, mas visto que a nossa clínica nas Filipinas trabalha com os perpetradores, não seria uma boa ideia misturar os dois grupos.
Como percebe o ritmo da reforma e a conscientização de que existe este problema dos abusos nas Filipinas?
O ritmo está sendo realista. Ele poderia ser mais rápido... Eu gostaria que fosse mais eficiente. Porém, começamos em agosto de 2015 com nada. Algumas dioceses que possuem recursos seguiram em frente e passaram a trabalhar em seus processos, programas e diretrizes, pegando modelos de outros países e designando pessoas para criar os seus sistemas práticos.
Tem algum plano para envolver os filipinos à espera da concretização destes planos?
Eu estou ciente desta necessidade. Já parei para pensar sobre como proceder nesse sentido. Aqui estamos falando dos movimentos leigos, como Casais com Cristo, Encontro Matrimonial e o Movimento da Família Cristã, os quais contam com milhões de pessoas trabalhando nas paróquias de todo o mundo. É por isso que nós [da Comissão para a Tutela dos Menores] temos um grupo de trabalho focado na educação das famílias e comunidades.
Um dos inúmeros desafios parece ser os padrões diferentes de reposta institucional, que variam dependendo de onde se encontra o padre que comete o abuso: ele pode ser considerado culpado nos EUA, mas ir para a Índia e continuar livre...
Um dos objetivos é definir o que constituiria uma resposta unificada, uma resposta católica que seja reconhecida por ter um padrão mínimo ao se manifestar sobre os casos de abuso sexual, e que sejam reconhecidos da mesma maneira por pessoas em outros lugares, aplicando-se os mesmos procedimentos e usando os mesmos princípios.
O obstáculo aqui é a falta de treinamento e formação. Existem dois momentos em nosso trabalho na Comissão: o primeiro é auxiliar o Santo Padre, e o segundo é auxiliar as igrejas locais em projetar, desenvolver e implementar os respectivos sistemas de salvaguarda. É aqui onde teremos condições de implementar um plano e uma ideia de resposta universal.
Quanto à formação e ao treinamento, hoje temos implementadas 48 oficinas ao redor do mundo, com vários membros da Comissão sendo convidados a se fazerem presentes em muitas jurisdições. É assim que trabalhamos: respondemos aos convites.
Visto que vocês precisam ser convidados pelos países ou instituições, poderíamos interpretar este fato como um índice de conscientização?
Sim, é um sinal de que se precisa de ajuda e de que há um problema.
Entretanto, nas bases a resposta nas Filipinas parece ser discreta...
Acho que você está certo, e até aqui a minha percepção de como os escândalos de abuso são tratados na imprensa, até mesmo nas mídias sociais, refletem isso. Várias acusações, de três ou quatro vítimas, foram feitas nos últimos 18 meses por pessoas que estão vivendo fora das Filipinas receberam uma resposta pública pequena, muito embora estiveram na capa da maioria dos principais jornais.
Isso não significa que as pessoas não estejam cientes do problema, que elas não estão preocupadas ou que não querem que se faça algo. Elas apenas não querem falar sobre o tema em público, querem que as coisas sejam feitas, mas que não chamem a atenção.
Os elementos mais dinâmicos da comunidade católica em muitas partes do mundo são os expatriados filipinos. Existe um sentimento crescente no sentido de que vocês precisam dar uma resposta séria neste tocante porque, de alguma forma, o país está servindo de exemplo?
Sim. Tem um sentimento muito profundo nesse sentido tanto entre a hierarquia quanto entre os fiéis. Por exemplo, o movimento Casais com Cristo, que conta com milhões de membros no mundo, criou uma estrutura formativa mais formal para enviar casais missionários a outros países. Eis um dos ambientes em que gostaríamos de inserir tais protocolos, fazendo da salvaguarda uma parte integrante das obras missionárias.
Os filipinos possuem um respeito e um cuidado profundos pela vida, e em particular pelas crianças.
Por isso, este tipo de trabalho encontra-se muito próximo dos nossos corações e temos bastante ciência da necessidade de formarmos pais seguros, mestres seguros, pessoas seguras. Posso falar sem medo que, para todo católico filipino praticante, o modelo de segurança é o próprio Cristo. Nós levamos isso muito a sério. Cristo confiou-nos a proteção dos menores. E a nossa resposta a este chamado ou mandamento, como queira chamar, é como alguém que diz “pule” e nós respondemos: “A que altura?”.
As pessoas estão bem cientes da responsabilidade para com o resto da Igreja.
De volta à Comissão para a Tutela: qual a atmosfera no grupo quanto ao que se fez até agora?
Pondo de lado todas as dinâmicas e os desafios do grupo, penso que a atmosfera é positiva. Quando nos encontramos pela primeira vez em 2015, houve uma confusão que já era esperada. Não tínhamos certeza sobre como as coisas funcionariam, mas elas foram se moldando aos poucos. Todo mundo parece ter um sentido sobre qual precisa ser a direção, embora existam algumas diferenças quanto à forma como iremos implementar as ideias. Não estamos numa empresa internacional com a presença de um CEO que diz que é desse modo, ou de outro, que iremos fazer as coisas.
E que direção é esta?
Fazer da Igreja um modelo de salvaguarda dos menores, e ser proativo no cumprimento deste objetivo, de maneira que no futuro as pessoas vejam a Igreja e qualquer estrutura física dela e enxerguem um lugar capaz de dar segurança. E é por isso que estaremos ajudando os grupos de fora da Igreja a dar esta segurança.
Porque nem sempre foi assim…
Isso mesmo. E sabemos que esta é a verdade, e que precisamos fazer algo para mudar.
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Assessor papal diz que resposta institucional a pedofilia na Igreja está se tornando “concreta” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU