03 Setembro 2016
“Pelo que foi exposto até aqui, uma política climática apropriada aos desafios da humanidade, não deveria apenas reduzir a presença de combustíveis fósseis na matriz energética, mas evitar que se siga ampliando a fronteira extrativa. (...) Não faz sentido continuar explorando e menos ainda extraindo; o modelo de extração exacerbada é insustentável e necessita-se transitar o mais rápido possível para cenários pós-extrativistas”, escreve José De Echave, economista da ONG CooperAcción, especializada em temas da mineração, em artigo publicado por CooperAcción, 24-06-2016. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Brota o questionamento sobre a relação entre a mudança climática e o modelo extrativista que se expandiu nas duas últimas décadas, provocando controvérsias, conflitos e ataques aos direitos humanos em todo o mundo.
“Para impedir que a temperatura global aumente em dois graus centígrados, as emissões de gases de efeito estufa devemos reduzir entre 40% e 70% até 2050 e eliminar quase completamente até 2100. Caso não mudarmos o modelo, os riscos são a escassez de alimentos e de água, o deslocamento de populações e grandes conflitos”. Desta maneira, Rajendra Pachauri, diretor do Painel Intergovernamental de Especialistas sobre a Mudança Climática, começava a sua participação na COP 20 de Lima.
“A natureza tenta nos dizer que necessitamos de um modelo econômico radicalmente diferente”, destaca, por sua vez, a pesquisadora canadense Naomi Klein. A necessidade de ajustar drasticamente os paradigmas do crescimento econômico parte em grande medida da constatação de que o crescente uso dos recursos naturais defronta-se com limites físicos e claras restrições ecológicas.
Portanto, cabe interrogar-se sobre a relação entre a mudança climática e o modelo extrativo, uma das atividades produtivas que esteve em franco processo de expansão nas duas últimas décadas em várias regiões do mundo e que provoca controvérsias, conflitos e ataques a direitos. Na sequência, apresentamos alguns dos elementos para a análise a partir da experiência de setores extrativos, como a mineração e os hidrocarbonetos, com acento na experiência da América Latina e do Peru.
Eduardo Gudynas define o extrativismo como um caso particular de extração de recursos naturais que leva em conta pelo menos três dimensões básicas: volume de recursos que se extrai, intensidade da extração e destino dos recursos.
A menção ao volume não faz alusão apenas ao mineral extraído, mas também aos outros materiais extraídos, a água consumida, a energia utilizada, etc.; em suma, tudo o que se conhece como a “mochila ecológica” (1). A intensidade faz alusão ao tema da ecotoxicidade (geração de contaminantes, uso de substâncias tóxicas, emprego de explosivos, efeitos negativos sobre espécies em risco, emissão de gases de efeito estufa, etc.). Finalmente, quanto ao destino, a referência central é se a produção é predominantemente para mercados externos.
Considerando estes critérios, está claro que um número significativo de países viu, nas últimas décadas, a implantação, em seus territórios, de modelos extrativistas. A América Latina e países como o Peru são bons exemplos desta tendência, que não necessariamente se apresenta sob o mesmo esquema: em alguns países, viu-se um modelo extrativista que se define como clássico – caracterizado pelo controle majoritário das empresas transnacionais e com um Estado que assume o papel de garantir um clima favorável para os investimentos; e em outros, um modelo que se define como neoextrativista –, que se caracteriza por uma maior presença do Estado, buscando capturar a renda extrativa, através do controle direto da produção, maiores impostos, royalties, etc.
No entanto, apesar das diferenças, os diferentes extrativismos apresentam aspectos em comum: ataques aos direitos de populações, principalmente de povos indígenas e comunidades camponesas; conflitos sociais em ascensão em consequência da expansão de atividades extrativas; impactos irreversíveis em ecossistemas; economias dependentes ao extremo da renda extrativista, etc.
De diversas maneiras. O modelo extrativista, que se expressa em leis específicas de promoção da mineração, dos hidrocarbonetos e de outros tipos de extração, busca impulsionar processos que têm como orientação central explorar o máximo possível no prazo mais curto de tempo possível.
Sejam recursos renováveis ou não renováveis que se quer extrair, a lógica do crescimento exacerbado, que está no coração do sistema econômico, expressa-se em toda a sua dimensão no modelo extrativista. Para conseguir este objetivo, o país e os territórios precisam se adequar, por meio de leis que buscam favorecer um clima para que os investimentos fluam e que ao mesmo tempo enfraqueçam as regulações ambientais e sociais; deslocamento forçado de populações; ataques a eco-regiões: por exemplo, estima-se que já se perdeu 20% da Amazônia e que 20% adicional está seriamente deteriorada.
Fica claro que o modelo extrativista tem um grande impacto em ecossistemas que, em um cenário de mudança climática, estão destinados a exercer um papel determinante para neutralizar a deterioração ambiental do planeta. Parte importante do território que a América Latina ocupa é um bom exemplo destas tendências: há regiões no mundo que têm gás, há outras que têm petróleo ou que possuem recursos minerais e inclusive importantes reservas de água doce. No entanto, talvez a única região no mundo que tem tudo isso junto é a que se situa no pé da montanha andino-amazônica na América do Sul.
O último relatório do IPCC (2014) indica que desde meados da década de 1970 a temperatura aumentou na América do Sul e Central entre 0,7º C e 1º C, o que já repercute nos ciclos hídricos, na saúde das florestas, sobretudo as amazônicas, nas fontes de água, no retrocesso dos glaciares, etc. Até 2100, a temperatura poderá aumentar em até 4º C na América Central e até 6,7º C na América do Sul, com impactos que continuarão a se agravar.
Dessa maneira, fica claro que a pressão extrativa foi enorme neste subcontinente e seguramente continuará sendo, apesar das flutuações recentes dos preços internacionais das principais commodities. A história das economias latino-americanas mostra o peso das atividades extrativas, tanto em épocas de bonança como de crise. “O extrativismo expressa-se sob esquemas depredadores, com altos impactos ambientais e sociais, violações de direitos das pessoas e da Natureza e variados efeitos sobre a economia, a política e a cultura do país” (2). Os últimos 20 anos foram um claro exemplo desta tendência.
Além disso, isto ocorre em territórios que são identificados como vulneráveis à mudança climática. Por exemplo, o Peru é um dos países mais vulneráveis do planeta devido à sua grande variedade de climas, de pisos ecológicos e de biodiversidade.
Este país apresenta sete das nove características reconhecidas pelas Nações Unidas que aumentam a vulnerabilidade diante da mudança climática: zonas costeiras baixas; zonas áridas e semiáridas; zonas expostas a inundações, secas e desertificação; ecossistemas montanhosos frágeis; zonas propensas a desastres; zonas urbanas com alta contaminação atmosférica; e economias dependentes em grande medida dos ingressos gerados pela produção e uso de combustíveis fósseis.
No entanto, no marco do modelo econômico vigente no Peru desde os anos 1990, as atividades extrativas – especialmente a mineração e em menor medida a pesca e os hidrocarbonetos – são consideradas cruciais para o esquema de crescimento econômico, as exportações, o investimento privado e a arrecadação tributária. Atualmente, após mais de 20 anos de expansão do modelo extrativista, o governo do Peru mantém a mesma aposta e apresenta uma carteira de investimentos na área da mineração composta por 52 megaprojetos para os próximos anos, que, conjuntamente, chegam a US$ 61,3 bilhões.
Neste contexto, convém perguntar-se sobre as implicações do auge extrativo sobre o cuidado do meio ambiente, as emissões de gases de efeito estufa, o desmatamento e, evidentemente, a mudança climática. Estas perguntas se colocam, além disso, tendo em conta os custos econômicos da degradação ambiental: o Banco Mundial estimou, há alguns anos, que a degradação ambiental no Peru representa 3,9% do PIB.
Os maiores custos estão associados à saúde e ao abastecimento de água, à contaminação atmosférica, aos desastres naturais, à exposição ao chumbo, à degradação do solo e ao desmatamento. Sobre este último ponto, cabe assinalar que na Amazônia peruana já foram desmatados mais de nove milhões de hectares e todos os anos são desmatados outros 150 mil hectares.
Quanto aos custos associados à mudança climática no Peru, um estudo da Comunidade Andina de Nações (CAN) projeta uma perda equivalente a 4,4% do PIB para 2025. De maneira similar e sobre a base de projeções sobre a elevação da temperatura e das variações nas precipitações, um estudo do Banco Central de Reserva do Peru (BCRP) estima que em 2050 a perda passa dos 20% do PIB. De modo que está claramente estabelecido que os custos da mudança climática em um país como o Peru são de grande magnitude.
Pelo contrário, baseado em um estudo do Ministério do Ambiente do Peru, estima-se que os custos das medidas de mitigação e de adaptação necessários não teriam chegado nem a 0,5% do PIB em 2013. Em consequência, a adoção imediata de medidas de mitigação e de adaptação à mudança climática é rentável não apenas do ponto de vista social, de sustentabilidade ambiental e de bem-estar das futuras gerações de peruanos – e do planeta –, mas também a partir de uma perspectiva financeira.
No entanto, os planos de adaptação e mitigação seguem sendo ambíguos, com poucos exemplos de metas concretas. Além disso, nos países que pretendem continuar apostando no modelo extrativista, não há uma real avaliação de risco quando se aprovam projetos produtivos que atentam contra ecossistemas vulneráveis. Por exemplo, no Peru, a Estratégia Nacional frente à Mudança Climática não estabelece metas precisas a serem cumpridas nem prazos definidos e os indicadores não são passíveis de serem verificados por entidades independentes – nacionais e estrangeiras – e tampouco podem ser monitorados pela sociedade civil e pelas comunidades atingidas diretamente, inclusive os povos indígenas. Portanto, este tipo de estratégia carece da força necessária para conduzir a política geral dos países e enfrentar o verdadeiro desafio que a crise climática impõe.
Neste contexto, é impostergável adequar os processos produtivos para atingir a meta de estabilizar o clima. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas propõe uma série de medidas para atingir esta meta: aumento da eficiência energética, maior penetração da energia renovável, tecnologia de captura e armazenamento, racionalização do sistema de transporte.
Pelo que foi exposto até aqui, uma política climática apropriada aos desafios da humanidade, não deveria apenas reduzir a presença de combustíveis fósseis na matriz energética, mas evitar que se siga ampliando a fronteira extrativa. Para impedir uma elevação da temperatura do planeta acima dos dois graus centígrados, está comprovado que não se deveria tocar nos 70% das reservas comprovadas de gás, petróleo e outros combustíveis fósseis (3). Com outras palavras, conta-se largamente com mais reservas em combustíveis fósseis do que na realidade se pode utilizar, caso se queira evitar um aquecimento do planeta para níveis incapazes de serem manejados. Não faz sentido continuar explorando e menos ainda extraindo; o modelo de extração exacerbada é insustentável e necessita-se transitar o mais rápido possível para cenários pós-extrativistas.
Notas:
(1) Citando outros autores, Eduardo Gudynas menciona que para cada tonelada de cobre obtida extraem-se 500 toneladas de outros materiais.
(2) HONTY, Gerardo; GUDYNAS, Eduardo. Cambio Climático y Transiciones al Buen Vivir. Alternativas al desarrollo para un clima seguro. Centro Latinoamericano de Ecología Social (Claes). Montevideo, 2014.
(3) Caso se queira evitar um aquecimento global maior do que 2º C dever-se-ia emitir apenas 565 gigatoneladas de CO2; no entanto, as reservas comprovadas de gás, petróleo e carvão representam 2.795 gigatoneladas.
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Mudança climática e modelo extrativo. Artigo de José De Echave - Instituto Humanitas Unisinos - IHU