Por: Ricardo Machado | Edição João Vitor Santos | 22 Agosto 2016
Imagine ter um sócio que está sempre pronto para dividir as despesas. No entanto, na hora do lucro, ele some com os dividendos. Depois, aparece forte e potente enquanto você está quase falido e exaurido do trabalho. Para o economista Carlos Octávio Ocké-Reis, é esse o molde da relação entre o estatal e o privado na área da Saúde. “Em resumo, o mercado parasita o Estado, socializa seus custos”, dispara. Ocké-Reis explica que o mercado de planos de saúde no Brasil tem uma articulação estrutural com o Estado. “No predomínio de relações capitalistas, o Estado age para favorecer as condições de rentabilidade das ‘operadoras’ por meio do fundo público (subsídios), resolvendo em parte a pressão dos custos e preços crescentes — comum ao setor de serviços.”
Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, o economista demonstra como o Estado se faz prisioneiro nessa relação, constituindo um dilema: “ou estatiza o sistema (radicalizando seu papel intervencionista), ou mantém a forma privada de atividades socialmente importantes, aplicando mecanismos de subvenção estatal (incentivos governamentais)”. Para Ocké-Reis, o que não se pode perder de vista são os avanços na constituição do SUS, estreitamente atrelado a conquistas cidadãs inauguradas com a Constituição de 1988. Segundo ele, do atual momento político e econômico do país emergem falsos problemas e soluções. “Tendo como pano de fundo um programa econômico ultraliberal, pretende-se promover um ataque à Constituição, apoiando-se na ideologia do estado mínimo: o problema é o tamanho do SUS e as vinculações constitucionais”, alerta. E tensiona: “Em compensação, não há medidas para penalizar os mais ricos, achatar as desonerações fiscais dos empresários ou para reduzir os juros”.
Foto: Centro Brasileiro de Estudos em Saúde
Carlos Octávio Ocké-Reis é economista, Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, doutor em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e pós-doutor pela Yale School of Management (New Haven, EUA). Ainda é pesquisador visitante nas universidades de York (York, Inglaterra), Columbia (Nova York, EUA) e Mannheim (Mannheim, Alemanha). Suas produções se concentram na área da economia política de saúde, regulação do mercado de planos de saúde e sistemas comparados de saúde. Em 2005, foi premiado na área da Economia da Saúde com o trabalho “A Reforma Institucional do Mercado de Planos de Saúde: Uma Proposta para Criação de Benchmarks”, organizado pelo Ministério da Saúde, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, IPEA e The Department for International Development (DFID/UK).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a relação entre o Sistema Único de Saúde - SUS e os planos privados de saúde? Como um modelo impacta no outro?
Carlos Octávio Ocké-Reis - Em resumo, o mercado parasita o Estado, socializa seus custos. Existe, entretanto, uma questão teórica mal compreendida: o mercado de planos possui uma articulação estrutural com o Estado. No predomínio de relações capitalistas, o Estado age para favorecer as condições de rentabilidade das “operadoras” por meio do fundo público (subsídios), resolvendo em parte a pressão dos custos e preços crescentes - comum ao setor de serviços.
Importante notar que o estado funciona de tal modo porque se trata de socializar o custo de reprodução da força de trabalho, em especial dos trabalhadores do mercado formal ligados ao polo dinâmico da economia. Desse modo, por razões políticas de legitimidade, o Estado seria prisioneiro do seguinte dilema: ou estatiza o sistema (radicalizando seu papel intervencionista) ou mantém a forma privada de atividades socialmente importantes, aplicando mecanismos de subvenção estatal (incentivos governamentais).
IHU On-Line – O atual ministro da Saúde, Ricardo Barros [1], retoma o discurso de aumentar a “eficiência” do SUS. Mas o que está em jogo nesse discurso?
Carlos Octávio Ocké-Reis - Na prática, o desmonte do SUS e a privatização do sistema, onde todo esforço para melhorar as condições de saúde dos trabalhadores e das famílias brasileiras ficará à deriva, prejudica os recentes avanços obtidos no combate à desigualdade. Pior: na atual conjuntura, uma visão fiscalista, que prega o fomento do mercado de planos de saúde como solução pragmática para desonerar as contas públicas, é sustentada por setores golpistas e economicistas do governo interino e ilegítimo de Michel Temer. Isso, na verdade, é uma bobagem, uma vez que boa parte da clientela da medicina privada usa largamente o SUS. Darei apenas três exemplos: oncologia, transplante e diálise (para não falar do programa de AIDS, do banco de sangue ou da urgência-emergência).
IHU On-Line - Em que medida as limitações do SUS são derivadas da gestão? E em que medida decorrem do subfinanciamento em saúde pública?
Carlos Octávio Ocké-Reis - Como todo povo brasileiro, sou contra a corrupção e o desperdício, devemos combatê-los. Mas boa parte dos problemas de gestão decorrem do seu estrangulamento financeiro, em especial no tocante ao financiamento dos recursos humanos - dimensão fundamental para a melhoria da qualidade da atenção à saúde. Isso não significa desconhecer eventuais problemas relativos ao modelo assistencial, bem como à alocação de recursos. Entretanto, eficiência entendida como garantia da eficácia e da segurança das ações e serviços de saúde exigiria mais recursos financeiros e organizacionais – e não menos.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS? De que forma ela poderia contribuir com o trabalho realizado pelo SUS?
Carlos Octávio Ocké-Reis - Continua prevalecendo uma espécie de laissez-faire [2] regulatório. Considerando o envelhecimento populacional, torna-se cada vez mais necessário regular o preço, a cobertura e qualidade dos planos empresariais, que são a maioria do mercado, em particular quando assistimos ao processo de concentração, centralização e internacionalização do mercado de serviços de saúde. Em outras palavras, junto com a melhoria do SUS, é necessário reduzir o gasto das famílias e dos empregadores com bens e serviços privados de saúde, mas para realizar tal tarefa é necessário fortalecer a capacidade regulatória do Estado. Foi um absurdo internacionalizar o mercado hospitalar sem antes mesmo definir o seu quadro regulatório.
IHU On-Line – Na prática, qual o impacto econômico do SUS no orçamento da União, principalmente comparando-o com os recursos destinados ao serviço da dívida pública?
Carlos Octávio Ocké-Reis - Sem contar com os subsídios destinados ao mercado, que alcançam aproximadamente 0,5% do Produto Interno Bruto - PIB, o gasto público total em saúde atingiu 4% do PIB em 2015, menos da metade do que o governo atualmente destina para o pagamento dos encargos financeiros da União. Nessa linha, a Proposta de Emenda Constitucional – PEC 241 [3] do governo interino é uma verdadeira ameaça ao SUS.
Tendo como pano de fundo um programa econômico ultraliberal, pretende-se promover um ataque à Constituição, apoiando-se na ideologia do Estado mínimo: o problema é o tamanho do SUS e as vinculações constitucionais. Em compensação, não há medidas para penalizar os mais ricos, achatar as desonerações fiscais dos empresários ou para reduzir os juros. O ajuste fiscal acaba se concentrando nas despesas que garantem os direitos sociais como meio de criar superávits primários crescentes, visando à diminuição da dívida pública, um “austericídio”, como disse o professor Delfim Netto [4].
IHU On-Line – Em seu livro SUS: o desafio de ser único (Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012), o senhor faz um retrato do Sistema Único de Saúde desde 1989. Como ele se caracteriza no Brasil pós-redemocratização? Qual a importância e a necessidade deste serviço ser universal?
Carlos Octávio Ocké-Reis - Em plena recessão, diante de doenças transmissíveis, não transmissíveis e dos agravos decorrentes de causas externas, a miopia neoliberal e seu terrorismo fiscal acabarão impondo pesados custos catastróficos às famílias. É uma cópia perversa do modelo dos Estados Unidos. A Constituição Federal de 1988 definiu a saúde como “dever do Estado” e “direito do cidadão”. Pela letra da lei, todo cidadão pode utilizá-lo de acordo com suas necessidades sociais, independentemente da capacidade de pagamento, inserção no mercado de trabalho ou condição de saúde. Entretanto, diferente do esquema beveridgiano [5] e similar ao modelo americano, após o fim do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social - INAMPS [6], o sistema brasileiro se travestiu em um mix paralelo e duplicado, em que o setor privado estabeleceu, como dissemos anteriormente, uma relação parasitária com o SUS e com o padrão de financiamento público.
Observe os subsídios destinados ao consumo de planos privados de saúde, que alcançaram 10,5 bilhões de Reais em 2013. Isto é, desde seu nascimento predominou um subfinanciamento crônico, quando na verdade precisávamos de mais recursos para preencher os pressupostos constitucionais do SUS. Na ordem do dia a aprovação da PEC 01-D/2015, que pode ampliar essa magnitude no contexto da atual regra constitucional (Emenda Constitucional 86).
IHU On-Line – Como é possível superar o paradigma do lucro nos planos e seguros de saúde privados? É possível regular o mercado? Como?
Carlos Octávio Ocké-Reis - Considerando os pesados interesses econômicos, eu apontaria seis desafios para reformar as instituições deste mercado: 1) alterar o artigo 199 da Constituição (transitar da livre iniciativa para o regime de concessão); 2) regulamentar o preço, cobertura e qualidade dos planos coletivos em uma perspectiva mutualista (seguro social); 3) fortalecer a ANS para superar a “autorregulação” econômico-financeira dos planos de saúde, sob pena de macular os critérios prudenciais exigidos para o funcionamento do mercado; 4) reduzir ou eliminar a renúncia de arrecadação fiscal em prol do financiamento público do SUS; 5) disciplinar legalmente os limites da filantropia, do liberalismo e do empresariamento na prestação médico-hospitalar; e 6) planejar a incorporação de tecnologia tendo como base a integralidade e as necessidades da saúde pública.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a relação do Estado com a classe médica? Os sindicatos médicos têm agido mais no sentido de colaborar ou de inviabilizar a universalidade do SUS? Que tensionamentos estão em jogo?
Carlos Octávio Ocké-Reis - Não podemos satanizar os médicos. Eles e os profissionais de saúde precisam receber melhores salários e condições de trabalho no setor público. A Lei de Responsabilidade Fiscal foi feita por tecnocratas, não dosaram seus efeitos colaterais na área social. Em contrapartida, parece urgente disciplinar a inserção dos médicos no interior do mix público/privado: a dupla militância, às vezes tripla, resulta em menos qualidade e relações predatórias com o SUS.
O médico Aloysio Campos da Paz Júnior [7], fundador da Rede Sarah, chegou a sugerir que quem trabalhasse no setor privado não poderia trabalhar no setor público, por exemplo, nos hospitais universitários. Agora, observe como o programa Mais Médicos fortalece a atenção primária (prevenção), reorienta o modelo assistencial e a formação profissional (necessidades de saúde da população) e democratiza o acesso dos serviços SUS às populações mais vulneráveis. Isso fustiga o poder econômico, e por isso mesmo, é abertamente combatido pelo ministro privatista da saúde Ricardo Barros, que propôs a aberração dos planos “populares” (sic) de saúde.
IHU On-Line – O SUS é viável economicamente? Por quê? Como fazer?
Carlos Octávio Ocké-Reis – É preciso entender, a um só tempo, a saúde como determinante para fomentar o mercado interno, para reduzir as desigualdades e para melhorar a qualidade de vida dos brasileiros. Afinal, não há dúvida acerca do papel indutor das políticas de saúde sobre o emprego, a produção, a renda e a inovação tecnológica. Veja o alto valor agregado do setor de biotecnologia. A natureza redistributiva do SUS parece igualmente evidente (desconcentradora de renda), bem como suas implicações sobre a produtividade do trabalho, o bem-estar social e o crescimento econômico.
Menos claro, entretanto, é compreender seu caráter anticíclico no atual quadro recessivo da economia brasileira: seja combatendo o desemprego, seja melhorando as condições de saúde da força de trabalho, ou ainda, sedimentando terreno para retomada de um ciclo de desenvolvimento inclusivo e sustentado. Como esse “programa mínimo” está fora da agenda dos golpistas, fica claro que, se o impeachment for aprovado no final do mês no senado, sofreremos uma tremenda regressão dos direitos sociais, uma verdadeira tragédia em pleno século XXI.
Notas:
[1] Ricardo José Magalhães Barros (1959): é político, engenheiro civil e empresário brasileiro. Foi Deputado Federal e prefeito de Maringá. Atualmente é ministro da Saúde. Foi nomeado em 12 de maio de 2016 ministro da Saúde pelo presidente Michel Temer, após o afastamento da presidente Dilma Rousseff em razão do processo de impeachment. Também é vice-presidente nacional do Partido Progressista - PP e Presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Desenvolvimento Econômico. (Nota da IHU On-Line)
[2] Laissez-faire é hoje expressão-símbolo do liberalismo econômico, na versão mais pura de capitalismo de que o mercado deve funcionar livremente, sem interferência, apenas com regulamentos suficientes para proteger os direitos de propriedade. Esta filosofia tornou-se dominante nos Estados Unidos e nos países da Europa durante o final do século XIX até o início do século XX. (Nota da IHU On-Line)
[3] A Proposta de Emenda Constitucional – PEC 241, de autoria do Executivo, na gestão do governo interino de Michel Temer, estabelece um limite para os gastos públicos e prevê o congelamento de gastos públicos por 20 anos. Conforme especialistas no setor de Saúde, pode resultar na redução de 12 bilhões de reais em repasses para a área, nos próximos dois anos. Para saber mais sobre a PEC 241, acesse a entrevista com Grazielle David, intitulada PEC 241/16: Uma afronta à saúde, aos direitos sociais e à Constituição, publicada nas Notícias do Dia de 11-07-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. (Nota da IHU On-Line)
[4] Antônio Delfim Netto (1928): economista, professor universitário e político brasileiro. Foi membro da Equipe de Planejamento do Governo Paulista de Carlos Alberto de Carvalho Pinto em 1959, Membro do Conselho Consultivo de Planejamento (CONSPLAN), órgão de assessoria à Política Econômica do Governo Castelo Branco em 1965 e do Conselho Nacional de Economia no mesmo ano. Foi secretário de Fazenda do Governo Paulista de Laudo Natel nos anos de 1966 e 1967, nomeado ministro da Fazenda nos anos de 1967 a 1974 e embaixador do Brasil na França entre 1974 e 1978, nomeado ministro da Agricultura em 1979 e do Planejamento de 1979 a 1985. Deputado Constituinte por São Paulo de 1987 a 1988 e Deputado Federal por São Paulo desde 1988. Em junho de 2016, foi intimado pela Polícia Federal, pela delegada da Operação Lava Jato, para prestar esclarecimentos aos investigadores sobre por que recebeu, segundo seu sobrinho, R$ 240 mil em dinheiro vivo entregues pelo "departamento de propina" da maior empreiteira do país em 22 de outubro de 2014 no escritório do advogado e sobrinho do ex-ministro Luiz Appolonio Neto, na capital paulista. (Nota da IHU On-Line)
[5] Princípio baseado na teoria de William Henry Beveridge (1879 —1963). Ele foi um economista e reformista social britânico. Elaborou em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, o Report on Social Insurance and Allied Services, conhecido como Plano Beveridge, visando libertar o homem da necessidade. Propôs que todas as pessoas em idade de trabalhar deveriam pagar uma contribuição semanal ao Estado. (Nota da IHU On-Line)
[6] Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – INAMPS: foi uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Previdência e Assistência Social (hoje Ministério da Previdência Social), e foi criado pelo regime militar em 1974 pelo desmembramento do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que hoje é o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). O Instituto tinha a finalidade de prestar atendimento médico/dentário aos que contribuíam com a previdência social, ou seja, somente aos contribuintes de toda forma e seus dependentes. (Nota da IHU On-Line)
[7] Aloysio Campos da Paz Júnior (1934-2015): médico pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRGS, integrou a primeira equipe médica do Hospital Distrital de Brasília em 1960, implantando a Unidade de Traumato-Ortopedia. Em 1961, assumiu a Direção do então Centro de Reabilitação Sarah Kubitschek. Realizou Pós-Graduação em Ortopedia e Reabilitação na Oxford University - Inglaterra em 1963/1964 e Doutorado em Ortopedia e Traumatologia na Universidade Federal de Minas Gerais em 1966. Em 1975, criou o “Plano para desenvolvimento de um programa regional de ortopedia e reabilitação” que originou o Instituto Nacional de Medicina do Aparelho Locomotor - SARAH. Coordenou também o Comitê de Saúde da Assembleia pré-Constituinte Comissão Affonso Arinos. Em 1982, iniciou a expansão do Centro de Reabilitação Sarah Kubitschek com a fundação de uma nova unidade hospitalar em Brasília. (Nota da IHU On-Line)
[8] Mais Médicos: programa de Estado lançado em 2013, cujo objetivo é suprir a carência de médicos nos municípios do interior do país e nas periferias das grandes cidades do Brasil. O formato da "importação" de médicos de outros países foi alvo de duras críticas de associações representativas da categoria, sociedade civil, estudantes da área da saúde e inclusive do Ministério Público do Trabalho. Confira as publicações do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. (Nota da IHU On-Line)
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Parasitismo do privado no público. Molde da relação do estatal com o privado na área da saúde. Entrevista especial com Carlos Octávio Ocké-Reis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU