08 Julho 2016
O debate sobre os temas da ética e da bioética, na Itália, é confuso e, ao mesmo tempo, engessado em posicionamentos previsíveis. Por um lado, a tendência católica a a ética "prescritiva"; por outro, a reivindicação laica, que tende a identificar no consenso social a fonte dos critérios morais. Mas, se perguntarmos de onde um cidadão, crente e protestante, pode fazer derivar as suas convicções pessoais, devemos remontar à maneira pela qual cada um e cada uma de nós recebe a mensagem bíblica. Falamos a respeito disso com o pastor Fulvio Ferrario, professor de Teologia Sistemática na Faculdade Valdense de Teologia.
A reportagem é de Alberto Corsani, publicada no sítio Riforma, 05-07-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Três atitudes parecem consolidadas na "compreensão evangélica da existência cristã": o catolicismo, com a sua referência à lei natural; o biblicismo fundamentalista/evangélico; a "absolutização tardo-moderna do sujeito", que postula a liberdade como autonomia e autodeterminação. Que alternativa o protestantismo histórico pode propor?
Do ponto de vista da teologia evangélica, as três orientações mencionadas são portadoras de elementos decisivos de verdade, mas que não devem ser isolados.
A reivindicação católica da "natureza" indica uma precedência da realidade, eu diria, "externa" em relação a toda interpretação. Tal perspectiva, entendida na sua melhor exigência, pretende evitar que a realidade, como tal, seja sugada pela percepção que o sujeito tem dela. Isso seria perigoso. A catástrofe de tal posição, ao menos nas formas em que ela se apresenta frequentemente no debate atual, no entanto, é a separação entre natureza e cultura, a ideia de que "biológico" é, como tal, o que Deus quer; desse modo, é proposta uma ideologia estranhamente naturalista, confundindo-a com a própria natureza.
O chamado biblicismo nos lembra aquilo que importa no fim das contas: isto é, que a verdade sobre o mundo e sobre o ser humano está no Cristo testemunhado pela Escritura. Às vezes, as Igrejas se esquecem disso. Todas tomadas pela tentativa (aliás, muitas vezes irrealizável) de "falar a linguagem das mulheres e dos homens de hoje", elas colocam entre parênteses aquilo que só o Cristo bíblico nos pode dizer: isto é, que Deus perdoa o pecado e chama à obediência. Só que esses irmãos, às vezes, parecem acreditar que o testemunho bíblico coincide com a letra do texto da forma como eles o leem. Eles gostariam de evitar as abstrusidades interpretativas, mas, na realidade, propõem uma leitura delas altamente complexa, mas que quer evitar a discussão, identificando-se direta com a voz do Deus trino.
O laicismo está aí para nos lembrar que a fé cristã não é a única atitude existencial possível: ao contrário, na Europa de hoje, é minoritária. Isso significa que o testemunho só pode assumir a forma do diálogo. A revelação de Deus, além disso, está no Cristo vivo, não em uma série de afirmações de doutrina. E o Cristo pode ser testemunhado apenas na forma não violenta da escuta, da partilha, do diálogo. Aqueles que conhecem bem a Bíblia também sabem falar uma linguagem não bíblica, se necessário; por outro lado, um pouco de linguagem bíblica, bem utilizada, também faz bem aos "laicos".
De acordo com o Novo Testamento, nós, homens e mulheres, podemos ser "heterodirecionados" (ou pelo pecado ou pela justiça, Rm 6). Mas, então, que espaço de autonomia nos resta?
Para ser sincero, eu não gosto muito da palavra "autonomia". Eu não acho que o ser humano possa ser "lei-para-si-mesmo", que é o significado da palavra. O Novo Testamento considera que o ser humano está sempre e necessariamente dentro de determinados campos de força, que agem sobre ele. Por um lado, temos as "potências deste mundo", isto é, as forças anônimas, em certo sentido impessoais, mas sumamente reais, que querem decidir sobre a vida e a morte: os "mercados", por exemplo. Quem são? Onde vivem? Contudo, eles existem. Paulo, na sua linguagem mitológica, falava de "principados e potestades". Os Evangelhos sinóticos falam de "possessão demoníaca".
A chamada "autonomia" é escravidão em relação às potências que se escondem bem o suficiente a ponto de não serem reconhecidas. Pessoas sábias, e não por acaso judaicas, como Marx e Freud, nos explicaram isso muito bem. O que eles não querem saber é o que a Bíblia afirma: isto é, que a palavra de Deus liberta dessas potências. Ela não faz isso por mágica ou como um fármaco: a palavra quer ser ouvida. Portanto, eu falaria, como o grande Paul Tillich, de "cristonomia". Mas o discurso moderno da autonomia também tem um componente decisivo de verdade; e é que o Cristo que liberta não é uma ideologia nem um dogma (embora o dogma seja importante, mas vamos falar de novo sobre isso) que chega à sua cabeça como um porrete, mas Aquele que interroga e desafia você, que reina sobre você discutindo com você. Ele reina somente por graça, mas quer fazer isso com você. Eu não sei se é uma boa ideia, mas é a de Deus.
Lutero, na "Liberdade do cristão", afirma que "o cristão é senhor de todas as coisas", mas, ao mesmo tempo, é "servo muito zeloso em todas as coisas, submisso a todos". Talvez, a segunda frase investe sobre o campo ético, enquanto a primeira desenha uma condição existencial?
A liberdade cristã é a relação com Jesus, que liberta você de todas as formas de legalismo, incluindo o cristão e protestante. A escravidão "em relação à justiça", como diz Paulo, é exatamente a mesma coisa: o vínculo com Cristo, que tira da sua cabeça e, sobretudo, do seu coração a ideia estúpida com base na qual você teria o seu destino em suas mãos. Ou Cristo o tem nas mãos d'Ele ou alguma outra pessoa, não bem-intencionada.
No nosso agir cotidiano, somos chamados ao discipulado, determinado não pelo sujeito humano, mas pela graça de Deus. Em que ele consiste?
A esse propósito, eu gostaria de contar mais uma vez a minha emoção diante do túmulo de Johannes Rau (ex-presidente da República Federal Alemã e pregador leigo da Igreja da Renânia), que eu descobri em Berlim, perto de um célebre monumento à família Bonhoeffer. Na lápide, está escrito: "Este também estava com Jesus de Nazaré". No princípio, eu nem sequer prestei atenção. Depois, entendi se tratar de Mt 26, 71. A mulher que acusa Pedro, que nega e perjura. Mas a mulher diz a verdade; quer acusá-lo, mas, na realidade, anuncia o evangelho de Deus sobre Pedro. Ele (na sua "autonomia"!) é o traidor e o perjurador. Mas essa realidade, embora trágica, é absorvida em uma realidade maior: que Pedro, queira ou não, admita ou não, "estava com Jesus de Nazaré", porque Jesus estava com ele. O discipulado, no fim, está todo nessa palavra. Devo dizer que, entendida assim, a "sucessão petrina", ou seja, o fato de que a palavra da mulher também vale para mim, está no centro ou, melhor, é o centro da minha fé. E uma foto do túmulo de Rau, bem em cima da tela do meu computador, me lembra disso a todo o momento.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Estar com Jesus Cristo: isso é o discipulado. Entrevista com Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU