06 Junho 2016
A Amoris laetitia promove uma integração mais sensível dos sujeitos ligados pela forma civil, até a possibilidade de uma plena comunhão. Sobre as consequências dessa evolução deveremos meditar e trabalhar por décadas. Mas, agora, a sorte está lançada, e podemos, finalmente, nos libertar da obsessão de ter que repetir a doutrina de Pio IX para ainda sermos católicos.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo casado, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 01-06-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "com a Amoris laetitia, dá-se a superação da "forma canônica" como critério único do juízo pastoral e moral. Não se supera, obviamente, a forma canônica, mas a sua pretensão de exclusividade. O choque entre forma canônica e forma civil, que tinha se delineado no início do século XIX, que depois tinha explodido a partir de meados do século, e que durou até as primeiras décadas do século XX, deixou um rastro teológico e pastoral por todo o século para encontrar um início de solução apenas com a Amoris laetitia. Que, de fato, reconhece "outras formas" nas quais a comunhão eclesial pode ser vivida".
Eis o texto.
Uma bela ocasião – um presente inesperado – me abriu um aspecto da Amoris laetitia que, embora já considerado por outras vias, agora me aparece sob uma nova luz e em toda a sua relevância. Refiro-me à feliz ocasião (a) da descoberta surpreendente (b) do reforço do que já se sabia (c) e do novo aprofundamento assim realizado (d).
a) A feliz ocasião de um presente
Tudo começou com um presente: uma pessoa me deu um presente totalmente inesperado. E, a partir do presente, compreendi como a pessoa me conhece, porque captou em cheio, como raramente acontece. Ela me deu uma cópia do "Denzinger" original, o manual de dogmática positiva, o de 1854. Obviamente, isso logo teve um impacto sobre a minha curiosidade. Que correu ao frontispício e, depois, ao índice sistemático (na sua forma primeira e muito jovem) para chegar ao último título dos 100 parágrafos de que se compõe. Para a minha grande surpresa, descobri que o último texto citado na coleção de "símbolos e definições em matéria de fé e costumes", realizada pelo pioneiro Henricus Denzinger, relata, justamente no número 100, algumas frases do discurso do Papa Pio IX do dia 27 de setembro de 1852, "que dizem respeito ao matrimônio civil".
b) O "fim" do Denzinger original
É de grande relevo considerar o conteúdo dessas afirmações. Trata-se, obviamente, de uma forte denúncia contra o Estado moderno, contra o desprezo que ele reserva à doutrina da Igreja, contra a redução do casamento civil apenas a um contrato, contra a instituição do divórcio e contra a competência atribuída aos tribunais seculares nessa matéria.
A seguir, é afirmado um princípio, que será decisivo na sequência da experiência histórica eclesial, ou seja, que "entre fiéis não podem haver matrimônio que, ao mesmo tempo, não seja também sacramento, e que, por isso, qualquer outra união entre homem e mulher diferente do sacramento, incluindo também aquela regulada pela lei civil, nada mais é do que torpe e mortal concubinato". Daí decorre, por fim, a competência exclusiva da Igreja em campo matrimonial.
Com essas palavras, de aberto confronto entre Igreja e Estado liberal no plano da "competência jurídica" sobre o matrimônio, encerra-se a coleção do Denzinger da época. Isso é surpreendente e bastante instrutivo. Nas décadas seguintes, as coisas se agravariam ainda mais: o Sílabo, dez anos depois, em seguida, a brecha da Porta Pia, o fim do poder temporal, para chegar ao primeiro grande documento que, em 1880, sob o sucessor de Pio IX, Leão XIII, sancionaria o início do "magistério do matrimônio", ou seja, a Arcanum divinae sapientiae.
c) O teor da autocrítica de Francisco
Só tendo bem presente esse horizonte histórico dramático, que marcou não apenas as grandes escolhas da Igreja Católica da segunda metade do século XIX, mas que também lançou a sua longa influência por mais de um século, até mesmo após o Concílio Vaticano II, é que podemos compreender o valor da "autocrítica" que Francisco teve a coragem e a honestidade de desenvolver nos números 35-37 da Amoris laetitia.
Se lermos essas palavras à luz daquelas de quase 170 anos antes, compreendemos o seu peso específico e o valor de reviravolta que elas propõem à tradição eclesial. Reporto-as integralmente, com os devidos grifos:
35. Como cristãos, não podemos renunciar a propor o matrimônio, para não contradizer a sensibilidade atual, para estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo dos valores que podemos e devemos oferecer. É verdade que não tem sentido limitar-nos a uma denúncia retórica dos males atuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa. De nada serve também querer impor normas pela força da autoridade. É-nos pedido um esforço mais responsável e generoso, que consiste em apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimônio e a família, de modo que as pessoas estejam mais bem preparadas para responder à graça que Deus lhes oferece.
36. Ao mesmo tempo devemos ser humildes e realistas, para reconhecer que às vezes a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar reação de autocrítica. Além disso, muitas vezes apresentamos de tal maneira o matrimônio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação. Também não fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos seus primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimônio abstrato demais, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são. Essa excessiva idealização, sobretudo quando não despertamos a confiança na graça, não fez com que o matrimônio fosse mais desejável e atraente; muito pelo contrário.
37. Durante muito tempo, pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos dificuldade em apresentar o matrimônio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira. Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las.
d) O fim de um "paradigma" de pensamento e de práxis
O que a Amoris laetitia inaugura não é uma novidade absoluta. Por um lado, o documento desenvolve, com boa continuidade, as consequências de algumas análises que já estavam presentes na Familiaris consortio João Paulo II, mas das quais esse documento não tinha sabido ou podido tirar as necessárias conclusões.
Assim, por outro lado, a Amoris laetitia supera os limites da Familiaris consortio, recuperando uma "liberdade de manobra" que a Igreja tinha tido até o Concílio de Trento, isto é, até quando não sentiu a necessidade de "institucionalizar" o matrimônio, mediante a demanda de "forma canônica".
O que acontece, com a Amoris laetitia, é a superação da "forma canônica" como critério único do juízo pastoral e moral. Não se supera, obviamente, a forma canônica, mas a sua pretensão de exclusividade. O choque entre forma canônica e forma civil, que tinha se delineado no início do século XIX, que depois tinha explodido a partir de meados do século, e que durou até as primeiras décadas do século XX, deixou um rastro teológico e pastoral por todo o século para encontrar um início de solução apenas com a Amoris laetitia. Que, de fato, reconhece "outras formas" nas quais a comunhão eclesial pode ser vivida.
A Familiaris consortio já não pedia mais que os sujeitos em segunda união se separassem, sob certas condições, e, portanto, reconhecia a positividade relativa da "forma civil". A Amoris laetitia promove agora uma integração mais sensível dos sujeitos ligados pela forma civil, até a possibilidade de uma plena comunhão. Sobre as consequências dessa evolução deveremos meditar e trabalhar por décadas. Mas, agora, a sorte está lançada, e podemos, finalmente, nos libertar da obsessão de ter que repetir a doutrina de Pio IX para ainda sermos católicos.
Um amigo me deu um belo presente. Esse livrinho precioso, que tem 162 anos, me fez compreender que grande presente a Igreja se permitiu dar, a partir da inventividade com que o Espírito Santo guiou dois Sínodos dos bispos rumo a uma nova fronteira, não sem as boas intuições e a generosa disposição de um bispo de Roma que não tem nada a ver com toda essa história europeia.
Essa foi a sua grande liberdade e a sua nova autoridade. Mas foi, acima de tudo, uma graça. De fato, não é nenhum mérito ter nascido americano. Assim como não é nenhuma culpa ter nascido europeu. Só no diálogo podemos ainda progredir, aprendendo a descobrir na experiência diferente do outro não um espaço a ser ocupado e reduzido, mas um tempo para caminhar e para mudar. À luz do Evangelho e da experiência dos homens.
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Descobrindo a "Amoris laetitia": o Denzinger de 1854 e a tradução da "forma canônica". Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU