07 Dezembro 2015
A escritora e freira Maria Valéria Rezende, 73, pede que Deus a livre de muitas coisas.
Por exemplo: de uma vida de "quem criou não sei quantos filhos, 20 anos de mesma casa, marido, trabalho". Militante da Juventude Estudantil Católica, a sobrinha-bisneta do poeta Vicente de Carvalho (um dos primeiros imortais da ABL) preferiu seguir, aos 24, as aventuras da vida eclesiástica.
A reportagem é de Anna Virginia Balloussier, publicada por Folha de S. Paulo, 05-12-2015.
Por ela rodou meio mundo, andou com Fidel por Havana velha (queria ouvir sobre como ela alfabetizava adultas na zona canavieira) e tomou café com Gabriel García Márquez.
Também quer resguardo da "literatura do chororô" feita "pelos mais jovens". Lamenta que parte da nova geração, aquela que bate no peito por desbravar Proust aos 40 anos ("li a obra completa quando tinha 16"), abuse da "erudição desnecessária, uma chatice".
"Não aguentava mais livro de jovem jornalista frustrado porque não consegue terminar romance sobre jovem jornalista que quer ser escritor."
Em seguida, ela pergunta se "escandalizaria" caso fumasse um cigarro (o filtro mais fraco) na porta de um hotel em SP –na madrugada, voou preocupada de João Pessoa (PB), onde deixou as "roomates", irmãs mais idosas da Congregação de Nossa Senhora.
Naquela noite de quinta (3), Rezende recebeu de uma atriz vestida de Mônica, da Turma da Mônica, o principal prêmio literário do país, o troféu Jabuti ("para amparar livros na estante") de melhor livro de ficção do ano, por "Quarenta Dias", em cerimônia no Auditório Ibirapuera. Levou ainda um prêmio de R$ 35 mil.
Todas as idades
"Joguei no bicho e ganhei no milhar", brinca sobre a estatueta com nome de animal.
Não é o primeiro Jabuti em sua carreira literária, iniciada aos 59 anos. Em 2009, seu "No Risco do Caracol" levou segundo lugar em obra infantil; em 2013, "Ouro Dentro da Cabeça" foi o terceiro melhor juvenil.
O triunfo de 2015, diz com ironia, "rendeu umas manchetes incríveis". Chamadas como "veterana desbanca Chico Buarque e Cristóvão Tezza" (dois concorrentes), lembra.
"A notícia continua sendo o Chico", afirma."Temos a mesma idade, e sou eu a veterana... Dou risada. Deve ser culpa do estagiário." (O músico tem 71, dois anos a menos.)
Para a escritora, a notícia não deveria ser nem Chico nem Maria Valéria. O que lhe interessa é o "povo invisível".
Ela foi atrás dele em Porto Alegre. Inventou um operário, Cícero, que seria o filho desaparecido de uma amiga manicure. E vagou por favelas e "buracos" gaúchos perguntando sobre esse homem que nem sequer existia.
Barbie
Dormiu sentada em escadaria de igreja, ao lado de um bêbado. Passou noite em pronto-socorro público. Por fim, a paulista de Santos radicada na Paraíba concluiu: "Os muito pobres e os muito ricos são iguais" em todos os cantos.
A experiência embasa seu romance narrado pela professora aposentada Alice, que vara a cidade atrás do tal rapaz. Ela registra a saga num caderno amarelado com capa da Barbie –a boneca vira sua interlocutora, sua "dear friend".
Alice calcula a duração da jornada, alçada ao título, pois a filha não arrancou "os dias já passados da folhinha do Sagrado Coração de Jesus, que a Tia Brites continua a me mandar todo Natal".
Duas questões centrais movem o livro. Há uns dez anos, a autora passou dois dias no hospital de João Pessoa apelidado de O Trauma. Uma amiga ligou desesperada (o marido se acidentara). Lá conheceu mais mulheres atrás de notícias do companheiro ferido, "descalças, de shortinho e bustiê, às vezes sem um tostão".
"Fiquei com o sentimento que poderia passar 40 dias ou 40 anos ali, que sempre haveriam mulheres como aquelas."
Seu livro também diz muito sobre uma frustração recorrente da sua geração, "a primeira que ousou" –estava na casa dos 20 anos na década de 1960, quando divórcio e amor livre deixaram de ser tabu.
Fala da "avó profissional", posto dado compulsoriamente a aposentadas, "como se não tivessem vida sobrando para viver". Caso de Alice, que se muda para Porto Alegre a pedido da filha.
No caderno de páginas amareladas, a personagem esconjura "toda essa gente que tomou conta de mim" e " grita e anda pra lá e pra cá e chora e xinga e gargalha e geme e mija e sorri e caga e fede e canta e arenga e escarra e fala e fode e fala e vende e fala e sangra e se vende e sonha e morre e ressuscita sem parar".
Maria não vai com as outras e faz o tipo mulher forte. Sobreviveu a um infarto na Flip de 2006, após falar na primeira mesa (conta que foi tirada de Paraty num jatinho). "Tem gente crente que meu ego inflou de tal maneira que espremeu meu coração", brinca.
Não tem problemas com celibato ("existe uma superestimação da vida sexual") nem em citar a antologia "Que Seja em Segredo", de Ana Miranda, com poemas passionais escritos por e para freiras nos séculos 17 e 18.
Ligada à Teologia da Libertação, na ditadura escondeu perseguidos, entre eles padres dominicanos. Seu próximo livro, "Outros Cantos", fala sobre militantes anônimos dessa época que lhe "dói demais".
Quarenta Dias
AUTORA Maria Valéria Rezende
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 37,90 (248 págs.)
Trecho extraído de 'Quarenta Dias'
Entrei neste apartamento –ainda não consigo dizer "em casa", tento, mas não há jeito– agora há pouco, exausta, carregando um furdunço no peito, sem saber onde despejar essa balbúrdia de imagens, impressões, sentimentos acumulados por quarenta dias, dei com o olho na Barbie e soube logo em quem vou descarregar tudo isso. Por sorte o caderno estava ali mesmo, perto da porta de entrada, na mesinha do telefone onde eu deixei desde que desfiz as malas, sem ter o que fazer com ele. Nem tranquei a porta, nem fui ao banheiro, nem bebi um copo d'água, muito menos pensei em telefonar a Norinha, a Elizete ou a quem quer que seja, aquela sensação de existir solta, no meio do mundo, sem nenhuma determinação alheia, mas exposta a tudo, uma conquista dura, persistindo como se eu ainda estivesse na rua, peguei o caderno, procurei uma caneta, joguei a bolsa e os sapatos por aí, desabei no sofá branco que eu detesto com você, Barbie, no colo, apoiada numa almofada roxa de babados que eu também detesto. [...] E aqui estou vomitando nestas páginas amareladas os primeiros garranchos com que vou enchê-las até botar tudo pra fora e esconjurar toda essa gente que tomou conta de mim e grita e anda pra lá e pra cá e chora e xinga e gargalha e geme e mija e sorri e caga e fede e canta e arenga e escarra e fala e fode e fala e vende e fala e sangra e se vende e sonha e morre e ressuscita sem parar.
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Freira que venceu Jabuti fala de seu livro e critica 'chororô dos jovens' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU