24 Outubro 2015
"Justiça e perdão são realidades heterogêneas. Entretanto, isto ocorre unicamente quando se tem uma concepção rigorosamente retributiva da justiça. O 'espírito do perdão' começa a aparecer na justiça quando esta é humanizada", frisa o filósofo.
Imagem: jopbj.blogspot.com.br |
O professor Xabier Etxeberria Mauleon entende que justiça, no caso penal, “se realiza quando se cumpre a pena ou castigo pelo delito, haja ou não transformação interior no delinquente”. Já o perdão se dá quando “implica uma transformação interior, tanto no ofendido que oferece o perdão como no ofensor que o recebe no arrependimento”. Logo, é algo mais complexo e para além do pragmatismo.
Mas essas estradas jamais se cruzam, nunca haverá ponto em comum? O professor acredita que se pode trilhar a estrada da justiça sem que se perca a essência do perdão. O destino desse caminho pode ser mais do que o ponto de inserção entre perdão e justiça. “O ‘espírito do perdão’ começa a aparecer na justiça quando é humanizada, quando com a pena não persegue unicamente o bem da ordem social senão que se preocupa com a restauração da vítima. E, também, quando não pretende unicamente castigar o delinquente. Assim, por um lado, evita castigos desumanos e, por outro, quer que se reabilite e tem em conta seus avanços para reduzir o castigo”, explica, ao apresentar a ideia de justiça restaurativa. “De todos os modos, se aspiramos a que a justiça e o perdão tenham um nexo mais intenso e interno, é necessário que a justiça como tal seja transformada para passar a ser justiça restaurativa”, completa.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Etxeberria também reflete sobre perdão e memória. “Ninguém pode perdoar em nome de outro. Se alguém matou o meu pai, eu posso perdoar ao assassino o dano que ele causou em mim. Mas o assassinato quem teria que perdoar é o assassinado — meu pai —, que já não está aqui para fazê-lo”.
Xabier Etxeberria Mauleon é doutor em Filosofia, catedrático emérito de Ética da Universidade de Deusto, Espanha, investigador da Pós-graduação do Centro de Ética Aplicada. Professor visitante e colaborador em universidades da América Latina. É membro de Comités de Etica Hospitalaria, de atenção a pessoas com de deficência. No país basco, participa em contextos e compromissos pela justiça, a favor das vítimas da violência e pela paz em processos de mediação e reconciliação entre grupos em conflito. Atua essencialmente sobre os temas: pela justiça, a favor das vítimas da violência e pela paz, com as pessoas com incapacidade intelectual, com os povos indígenas, e pela ética no exercício da profissão. Sua publicação mais recente é La educación para la paz reconfigurada: la perspectiva de las víctimas (Madrid, Catarata, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os nexos fundamentais entre justiça e perdão?
Mauleon durante o evento no IHU
Foto: Cristina Guerini / IHU
Xabier Etxeberria Mauleon - O primeiro nexo aparece ao relacionar as diferenças da justiça penal e do perdão. A justiça penal se realiza quando se cumpre a pena ou castigo pelo delito, haja ou não transformação interior no delinquente. O perdão, em contrapartida, realiza suas potencialidades quando implica uma transformação interior, tanto no ofendido que oferece o perdão como no ofensor que o recebe no arrependimento. Esta transformação, que se verifica nas condutas correspondentes, faz desnecessário o castigo. Isto supõe, em quem perdoa, que desativa suas emoções de ódio e ressentimento. Também alenta a possibilidade de que quem causou o dano se transforme, seja uma nova pessoa. E aquele que pede honestamente perdão, supõe que se reconheça com dor, como vítima sua, a quem vitimou, e que está em disposição não só de dizê-lo, mas de reparar o dano no que puder.
Segundo isto, pareceria que justiça e perdão são realidades heterogêneas. Entretanto, isto ocorre unicamente quando se tem uma concepção rigorosamente retributiva da justiça, a que reclama que se castigue sem exceção ao apenado com um dano igual em intensidade ao que ele causou. O “espírito do perdão” — que não o perdão como tal — começa a aparecer na justiça quando esta é humanizada, quando com a pena não persegue unicamente o bem da ordem social senão que se preocupa com a restauração da vítima. E, também, quando não pretende unicamente castigar quem cometeu um crime. Assim, por um lado, evita castigos desumanos e, por outro, quer que se reabilite e tem em conta seus avanços para reduzir o castigo.
Complementaridade entre justiça e perdão
Outro nexo importante entre justiça e perdão se dá quando se estabelece uma complementaridade entre eles. Por um lado, a justiça penal faz sua tarefa, de forma humana e baseada no respeito aos direitos humanos. Por outro lado, o criminoso que se submete a ela e sua vítima, apoiados no que seja preciso, realizam entre eles, voluntariamente e com autenticidade, encontros restaurativos inspirados no perdão. Assim, estes encontros conseguem o que nem a melhor justiça penal pode realizar. Deve-se esclarecer que estes encontros não “igualam” a vítima e quem cometeu o crime, pois ambos percorrem processos assimétricos: pede-se à vítima que afine moralmente seus sentimentos para com quem lhe fez o dano. Enquanto o criminoso tem que fazer um processo que lhe leve da autojustificação de seu delito — especialmente orgulhosa no que tem motivação política — à traumática confissão honesta de sua culpabilidade. Neste sentido, o ciclo completo do perdão é a mais radical negação da impunidade.
De todos os modos, se aspiramos a que a justiça e o perdão tenham um nexo mais intenso e interno — que o perdão esteja dentro dos processos de justiça —, é necessário que a justiça como tal seja transformada para passar a ser justiça restaurativa. Uma justiça que não consiste em igualar no delinquente o mal sofrido com o castigo e o mal cometido, senão em restaurar a todos os implicados no delito, com processos diferentes segundo sua situação. O qual se consegue através do protagonismo de todos eles, mas, especialmente, das relações entre a vítima e a pessoa que cometeu o crime(espaço específico do perdão), com a vigilância, garantia e amparo das instituições públicas. Estão ocorrendo interessantes avanços reflexivos e sugestões práticas nesta nova modalidade de justiça, mas nos resta ainda muito caminho a percorrer.
“Ninguém pode perdoar em nome de outro” |
|
IHU On-Line - Até que ponto é possível perdoar em nome daqueles que já se foram e que não podem testemunhar sobre a injustiça sofrida?
Xabier Etxeberria Mauleon - Propriamente falando, perdoa quem tem sofrido o dano injusto, a quem o causou e pelo que lhe tenha feito. Ninguém pode perdoar em nome de outro. Se alguém matou o meu pai, eu posso perdoar ao seu assassino o dano que ele causou em mim. Mas o assassinato quem teria que perdoar é o assassinado — meu pai —, que já não está aqui para fazê-lo. O mais que posso dizer a quem o matou, se é verdade, é que penso que, pelo que conhecia de meu pai, tinha uma profunda disposição para perdoar. O assassinato, além de quebrar a vida, quebra muitas possibilidades valiosas.
Isso não tira o valor ao assassino que se arrepende sinceramente. Este arrependimento expressado publicamente tem um efeito reparador ao assassinado: este não pode testemunhar a injustiça sofrida, mas quem o matou sim, ao reconhecê-la como tal, ao reconhecer o assassinado como sua vítima. No entanto, nada disso tira que, com seu ato destruidor da vida, bloqueou a si mesmo a possibilidade de que seu arrependimento fosse acolhido por quem mais possa interessar-lhe, sua vítima.
Pseudoperdão da anistia
O que passa a ser inadequado é que as autoridades públicas pretendam “perdoar por representação”. Isso através das chamadas “medidas de graça”, quando as consideram como medidas de perdão. Aqui me refiro especialmente à anistia. Esta, ao suspender a aplicação de uma lei penal durante um tempo a um determinado coletivo de pessoas que a violaram, faz com que não existam juridicamente criminosos e também que não existam juridicamente vítimas. Que isto se interprete como perdão — quando oficialmente não existe quem tem que perdoar — quando se faz em nome das vítimas sem contar com elas, quando se “perdoa” a quem cometeu delitos que oficialmente não cometeram (a anistia é um decreto de desmemória jurídica sobre tudo isso), não é só a maior perversão do que é o perdão, como também supõe uma revitimização das vítimas. Se talvez a anistia seja tolerável — não justificável — em situações-limite — algo do que duvido muito —, tem que ser como algo totalmente alheio ao que é o perdão.
Os indultos das penas já atribuídas trazem o esclarecimento dos fatos, que costumam se contemplar na aplicação da justiça transicional, nem devem ser considerados como perdão. Porque, de novo, isso suporia que as autoridades se arrogam a representação das vítimas. No entanto, caso sejam oferecidas em condições adequadas, podem ser aceitáveis em certas circunstâncias, expressando também, ainda que seja parcialmente, o espírito do perdão.
IHU On-Line - Em que medida a justiça e o perdão sedimentam uma cultura da paz fundamental em nosso tempo?
Xabier Etxeberria Mauleon - A cultura de paz deve remeter-se a uma concepção ampla e complexa de paz. Concepção que inclua a superação não só das violências diretas às pessoas, mas também das violências estruturais que se sofrem, especialmente as econômicas, e das violências de discriminação originadas nos preconceitos culturais. Neste sentido, a justiça social, a justiça distributiva de bens e recursos necessários para satisfazer nossas necessidades de modo tal que possamos potencializar nossas capacidades, é fundamental. Também a poderíamos chamar “justiça do reconhecimento”, que se concretiza em reconhecer efetivamente a todas as pessoas sua condição de dignidade, sua identidade diferencial, seja a nível pessoal, seja coletivamente, como grupo identitário.
A justiça diante do delito tem a pretensão mais básica, mas fundamental, de garantir uma ordem social na qual respeitemos mutuamente nossas liberdades. Quando castiga, pretende que isso sirva para prevenir novos delitos. Se em sua aplicação respeita os direitos humanos — se não se perverte expressando-se ela mesma como violência — colabora no fomento da paz e em que os cidadãos interiorizem elementos básicos da cultura de paz. Mas quando se expressa como mera justiça retributiva, ou como justiça pura e duramente preventiva, tem graves limitações: o enfoque retributivo pode manter um fundo de referência à vingança (à vítima se lhe oferece a satisfação fundamental de que se castiga quem cometeu o crime contra si); e o enfoque preventivo pode ser duramente utilitarista, castigar só em função da eficácia para a prevenção.
Cultura de Paz
A cultura de paz perante o delito deve aspirar a mais. Deve aspirar que a paz perante o delito se perceba como a plena restauração da vítima e, inclusive, como a recuperação do criminoso, pessoal e para a vida cívica. E é aqui onde o espírito do perdão, com seu ciclo completo de perdão que se oferece generosamente, pode servir de grande inspiração: por um lado, impelindo que se transforme a justiça penal com “ousadia prudente”; por outro lado, alentando iniciativas de perdão na sociedade externas em si à aplicação da justiça, que ofereçam frutos não fáceis de conseguir nesta.
“Se talvez a anistia seja tolerável em situações-limite, tem que ser como algo totalmente alheio ao que é o perdão” |
IHU On-Line - Nesse sentido, qual é a importância de uma educação para uma paz reconfigurada e compreendida em sua complexidade?
Xabier Etxeberria Mauleon - A cultura de paz se interioriza através da educação para a paz. Não só a que se fomenta nas escolas, também a que se expressa em lugares de educação não regulados, como em associações que incluem iniciativas educativas. Assim como a que se realiza sem pretendê-lo expressamente em âmbitos informais, como, especialmente, os meios de comunicação em todas suas variantes. Obviamente, sem que esqueça do relevante papel educativo da família, dos grupos informais de iguais, etc. A educação para a paz é complicada porque entre todos estes agentes educativos pode haver notáveis diferenças, quando não fortes contradições.
O ideal seria que todos os agentes, cada um desde o que é, fomentassem uma cultura de paz compreendida em sua complexidade. Uma cultura de paz que poderia formular-se, de outro modo, como a cultura que assume que a paz consiste em todos desfrutarem de todos os direitos humanos, tomados em sua interdependência e indivisibilidade.
Educação para a Paz
De qualquer forma, aqui gostaria de ressaltar uma questão concreta. Grãos de uma paz reconfigurada. Eu falaria também de uma educação para a paz reconfigurada. A clássica educação para a paz tem tido muito presente que se deve educar na aprendizagem da resolução ou manejo positivo dos conflitos. E se tem prestado especial atenção às violências dos violentos para enfrentá-las de modo tal que no futuro não tenham lugar. Reconfigurá-la, como proponho, seria dizer: centremos o processo educativo pela paz nas vítimas, não meramente para contemplar nelas o duríssimo e cruel efeito da violência. Senão para que sejam elas as que nos ensinem, para que sejam elas nossas educadoras mais relevantes. Porque será nelas onde compreenderemos decisivamente o que de verdade é a violência, e será também através do testemunho delas como melhor interiorizaremos em nós como temos que afrontá-la (entre outras coisas, não esquecendo as vítimas).
A educação para a paz reconfigurada a partir das vítimas dispostas a dar um testemunho moral não politicamente partidário de sua vitimização nos fará olhar para o futuro a partir do presente, mas assumindo ao mesmo tempo memorialmente o passado. Sei, por experiência, que neste testemunho acaba tendo lugar o perdão, por certo de modo eticamente muito afinado.
IHU On-Line - Como a perspectiva do testemunho das vítimas é importante enquanto referente epistêmico para construir critérios de justiça?
Xabier Etxeberria Mauleon - Ao perguntar-nos de que modo as vítimas são o referencial fundamental no qual os critérios de justiça nos são revelados, podemos distinguir dois momentos: o de seu “estar aí”, em sua condição de vítimas, diante de nós, à maneira de “testemunho mudo” enquanto não há palavra, mas muito expressivo na própria materialidade de sua vitimização (aqui entram todas as vítimas, também as assassinadas, especialmente as assassinadas); e o fato de estar nos contando, relatando não meramente o que lhes aconteceu, mas como o vivenciaram e o vivenciam e que aprendizagens têm extraído de sua experiência (aqui só cabe contemplar as vítimas sobreviventes).
Ver a vítima como vítima
A primeira coisa que necessitamos dizer é que, em ambos os casos, para que seja referencial epistêmico para nós, temos que ser capazes de percebê-las como vítimas. Isto parece muito básico e simples, mas é enormemente difícil. Às vezes, consideramos vítima entre as pessoas próximas de nós quem não o é (por exemplo, nos faz sofrer o fato de alguém ligado a nós estar na prisão, mas não é injustamente, porque se está atuando de acordo com os direitos humanos). Noutro sentido, custa-nos muito perceber como vítimas aquelas que nós fizemos ou que as pessoas próximas de nós fizeram, pois tendemos a considerar justificada a violência que se exerceu contra elas.
A melhor prova de que estamos dispostos a perceber todas as vítimas é quando percebemos as vítimas que nós temos feito. Em qualquer caso, vítima, no sentido moral, é quem sofre injustamente segundo o critério dos direitos humanos. Temos que estar dispostos a considerar existencialmente que, desde a perspectiva da solidariedade, todas as vítimas são de todos. E que, desde a perspectiva da não instrumentalização, nenhuma vítima é de ninguém.
Vítimas enquanto referentes epistêmicos
Somente com uma atitude assim as vítimas poderão ser referentes epistêmicos para que os critérios de justiça nos sejam desvelados. Estes critérios se revelarão para nós quando diante das vítimas estejamos em atitude de receptividade, de deixar-nos impactar por sua interpelação. Para o qual precisamos nos despir de todos preconceitos. Também, se revelarão inicialmente “em negativo”, na carência de justiça que se materializa em seus corpos e psique vulnerados. Diante disso emergirá em nós um espontâneo “não pode ser!”, muito emocional — cheio de indignação moral —, mas ao mesmo tempo muito carregado de razão e expresso como convicção: não pode ser a tortura, o assassinato, a marginalização, a exploração, a discriminação, etc. Depois terão de vir a argumentação e o diálogo, para dar forma precisa aos critérios e, especialmente, para que possam ser referências para nossos comportamentos cívicos e das políticas públicas. Mas é fundamental que os critérios não provenham da consideração abstrata do que é o ser humano, senão do impacto da vítima.
Quando a vítima sobrevivente emite um testemunho falado, é importante distinguir entre o que nele há de testemunho moral estrito, no qual ela tem uma autoridade especial que cabe reconhecer, e outras considerações legítimas que pode fazer. Mas é necessário situar entre as posições partidárias, com as quais se pode entrar em debate. Quando as vítimas intervêm no debate público, algumas decidem situar-se no terreno do testemunho estritamente moral, enquanto outras enlaçam sua experiência com propostas que cabem dentro do pluralismo político legítimo (que exclui reagir com violência à violência sofrida). Cada uma pode tomar a decisão que considere mais oportuna. Em qualquer caso, que as vítimas sobreviventes participem nos processos de educação para a paz, nos debates públicos sobre a justiça, etc. É algo a que têm direito e algo muito fecundo para a sociedade.
|
“A melhor prova de que estamos dispostos a perceber todas as vítimas é quando percebemos assim as vítimas que nós temos feito” |
IHU On-Line - Qual é a importância da memória no aprofundamento da democracia?
Xabier Etxeberria Mauleon - Respondo à pergunta especificando, primeiro, que vou me referir à memória das violências de motivação política que podem ter acontecido em uma sociedade, sejam provenientes do Estado, sejam contra o Estado. E especificando, em segundo lugar, que penso nesse tipo de memória que reassume a verdade empírica dos fatos com o correspondente juízo moral sobre eles, segundo os critérios dos direitos humanos. Uma memória que, portanto, desmonta as autojustificativas que se deram aos crimes.
Esta memória já é por si mesma parte da justiça e do reconhecimento devidos às vítimas. Mas, como sugere a pergunta, ajuda também no aprofundamento da democracia. Em primeiro lugar, por essa deslegitimização radical da violência, isto é, das dinâmicas antidemocráticas que se aninham sobre ela. Em segundo lugar, porque especifica muito vivamente um dos horizontes decisivos da democracia: ser um sistema de resolução pacífica dos conflitos, isto é, ser contrário ao sistema de resolução violenta que memoramos como negativo. Em terceiro lugar, porque sempre, entre os violentados que recordamos memorialmente, há pessoas que, sem serem elas violentadoras, têm entregado o melhor de sua vida — às vezes sua própria vida — para gestar a democracia ou consolidá-la.
Em quarto lugar, porque a memória nos ajuda a viver uma democracia que integra as gerações: quando está presente, não somente se decide pensando nas futuras gerações — por exemplo, em temas ecológicos — senão também pensando nas passadas, de uma maneira especial nas vítimas, oferecendo-lhes os reconhecimentos e reparações que se precisem. Por último, porque uma democracia que integra memorialmente as suas vítimas, que assume valores como estes, não é uma democracia meramente agregativa (na qual comanda o interesse particular que mais votos reúne), senão que é uma democracia que alenta um interesse público que transborda nossos interesses particulares. Obviamente, sempre sem ferir as liberdades, como nos recordam precisamente as vítimas que têm sofrido.
IHU On-Line - De que maneira o direito à memória se configura como um direito à defesa da vida?
Xabier Etxeberria Mauleon - Normalmente, o direito à memória, em uma comunidade política, se apresenta como um direito das vítimas. Sobretudo, direito das vítimas que foram assassinadas: o único reconhecimento que lhes podemos dar é através da memória social, histórica, judicial, assim como das iniciativas ligadas a ela. A única reparação que lhes podemos oferecer é a reparação memorial. Mas, também, a memória é direito das vítimas sobreviventes, pois também é em si reconhecimento e reparação delas e, também, é condição de possibilidade de outras modalidades de reparação. Por outro lado, a memória é condição do perdão: só se perdoa o que se recorda, ainda que nem todo recordar seja alentador do perdão.
Em meu contexto de reflexão e intervenção social não se costuma falar de memória como expressão de um direito à defesa da vida. A memória do passado violento, do aplastamento da vida, vivida pelas vítimas e seus achegados, pode incentivar-nos em uma dupla direção, segundo as emoções e as convicções que a configurem. Se está configurada pelo ódio e pelo ressentimento puros, não confrontados eticamente, arrastará à violência vingativa, quanto maior melhor, isto é, não só não expressará o direito à vida senão que o contradirá. Se está configurada pela lógica retributiva, que considera que a justiça se realiza quando quem violentou a vida deve sofrer uma violência similar, será uma memória que, por um lado, aceitará de bom grado o castigo penal — inclusive a pena de morte —, mas, por outro lado, considerará que com isso se previnam assassinatos futuros.
Estritamente falando, creio que unicamente a memória que se configura de modo tal que, sendo fiel aos fatos, os emoldura em sentimentos e convicções que arrastam o criminoso a sofrer moralmente pelo que fez e à vítima a oferecer uma oportunidade de regeneração a quem cometeu crime. Isto é, emoldura-os em dinâmicas próprias de perdão e arrependimento. Só essa memória é memória que expressa e realiza em sentido pleno o direito à defesa da vida.
“O direito à memória, em uma comunidade política, se apresenta como um direito das vítimas” |
|
IHU On-Line - Apesar dos avanços obtidos através da memória e da justiça, a intolerância e a violência ressurgem periodicamente. Como compreender esse paradoxo em um tempo tão avançado tecnicamente e indigente em termos éticos?
Xabier Etxeberria Mauleon - Os avanços técnicos, por si, são avanços no âmbito dos meios. Ainda que quando são muito espetaculares e impregnam toda nossa vida, tendem a converter-se em fins, a ser considerados fonte de sentido. Então se faz depender, tanto a plenitude da vida pessoal como o desenvolvimento social, de nossa mera tecnologização. Mas, repito, os avanços técnicos são meios, meios enormemente potentes. Como tais, podem servir tanto para a justiça como para a injustiça, para a tolerância como para a intolerância. Concretamente, nunca podemos exercer factualmente tanta violência como agora, precisamente porque a técnica faz possíveis violências antes impossíveis.
Técnica
Isto reclama que a técnica, em sua orientação a fins, esteja comandada pela ética, pelos valores morais, pelos critérios de justiça. Para mim, é difícil fazer uma valorização a respeito, se agora temos menos valores que antes em relação à atividade violenta. Podemos pensar que há um universalismo dos direitos humanos, nos quais inserimos os avanços na justiça e memória, que é compartilhado por uma porcentagem muito importante da humanidade e que antes não se dava. Um universalismo que é um forte antídoto contra a violência. Mas também é certo que essas enormes violências que começaram com a primeira guerra mundial antes não existiam; ainda que caiba a pergunta se não existiam porque os humanos não dispunham de uma potente tecnologia para matar.
De qualquer forma, o que nos importa é destacar, por um lado, que devemos trabalhar intensamente pelo enraizamento dos direitos humanos em todas as coletividades políticas e nos cidadãos concretos. Direitos convenientemente inculturados quando se precise. E, por outro lado, que temos de ser conscientes de que hoje em dia a referência aos valores de paz é cada vez mais necessária e urgente porque as possibilidades de destruição se multiplicam indefinidamente devido à eficácia da tecnologia.
IHU On-Line - Qual é a peculiaridade da justiça de transição na Espanha e na Europa como um todo?
Xabier Etxeberria Mauleon – Talvez, a Europa seja o lugar onde tivemos mais situações transicionais, mais do que na América Latina. Por um lado está a transição da ditadura militar à democracia em países como Grécia, Portugal e Espanha. Por outro lado, está a transição da ditadura comunista à democracia, nos Estados da Europa Oriental. Por último, em escala menor, têm surgido situações transicionais diante do final de expressões terroristas diversas, especialmente do IRA [1] na Irlanda e da ETA [2] na Espanha.
Da ditadura à democracia
Pensando nos dois primeiros tipos de transição e vistos com o olho de um analista social, poderia se dizer que o que há dominado para definir como se realizava a transição (quanta justiça retributiva se impunha e quanto “perdão-esquecimento” se assumia) tem sido a relação de forças que existia entre expoentes do regime que fenecia e da democracia que emergia: quanto mais força tinham os do antigo regime, mais (falso) perdão e esquecimento oficial — instigador do esquecimento social — havia. Os mesmos analistas distinguem três modelos de transição.
Colapso
Em primeiro lugar, temos o modelo colapso, no qual cai o antigo regime por derrotas ou pressões externas, militares ou de outro tipo (caso da Grécia e, em boa medida da Alemanha Oriental). Isto significa que o poder antigo fica muito debilitado, o que, em teoria, permite ao novo transmitir mais justiça penal e realizar mais expurgos administrativos. Assim tem sido, mas sempre dentro da “moderação”.
Negociação
Em segundo lugar, temos o modelo negociação, próprio de situações nas quais há equilíbrio de poderes entre o poder que é destituído e o poder que será insituído, com o que a repressão sobre o que sai acaba sendo simbólica.
Transição
Em terceiro lugar, temos o modelo transição, no qual líderes transformados que provêm do poder antigo e que conseguem pactos com líderes do novo poder (o caso mais representativo é a Espanha) conduzem o passo do poder ditatorial ao democrático: dado o caráter pactuado de todo o processo, onde todos encontram um acordo compartilhado para a saída jurídica é na anistia geral.
|
“O esquecimento das vítimas das ditaduras nos processos de transição tem sido fortíssimo” |
Apagamento das vítimas
Como se vê, o esquecimento das vítimas das ditaduras nos processos de transição tem sido fortíssimo. Elas praticamente não têm existido no processo. A justiça transicional, no que tem de justiça, tem sido muito escassa, e no que tem de esquecimento sem nenhum tipo de condições que o moralizem minimamente, tem sido elevadíssima. Obviamente, se alega uma razão moral para justificar tudo isso: que tal estratégia era necessária para que acontecesse a paz e a democracia, que se não se assumisse se prolongava a violência estrutural dos Estados.
No entanto, isto desde hoje, essa suposta necessidade extrema é mais que duvidosa. O que funcionou foi o esquecimento cômodo da vítima, que nem sequer a tivessem seriamente em conta para fazer o “cálculo estratégico”. Esquecimento favorecido em muitos casos pelo amplo tempo que durava a ditadura, que havia favorecido que as vítimas massivas dos primeiros tempos tivessem morrido ou se tivessem calado totalmente pelo terror.
O que mudou nas situações transicionais com ocasião do fim do terrorismo de ETA e IRA tem sido precisamente a emergência e a participação social de suas vítimas. Estabeleceram-se negociações nas que a justiça transicional estava latentemente presente. E no final do IRA há justiça transicional, mas ao mesmo tempo atenção às vítimas. No final da ETA, fracassadas as negociações anteriores, ninguém — salvo eles mesmos — contempla uma justiça transicional. Só está a via da justiça penal ordinária, que alguns gostariam que se completasse com aproximações à justiça restaurativa.
Mais justiça penal. Melhor democracia?
O que têm de moralmente arruinante os dois primeiros tipos de processos transicionais, comparando às experiências reais que se teve (incluamos já aqui a América Latina), é que não necessariamente, à primeira vista, fazer mais justiça penal parece desembocar em uma melhor democracia. Isto deve nos ensinar duas coisas: em primeiro lugar, que democracias tranquilas que se acomodam no esquecimento das vítimas se acomodam em uma injustiça da qual devem prestar conta e remediar dentro do possível. Em alguns casos, os descendentes dessas vítimas, como na Espanha os “netos”, alçam voz para recordar-nos isso. Em segundo lugar, temos que aprender que não basta o mero fazer justiça retributiva para que não haja impunidade e advenha uma democracia e uma paz positiva. Temos que ser conscientes de que fazer uma justiça penal afinada (o espírito do perdão pode ajudar muito) e, além disso, muitas outras coisas mais, nas quais não vou entrar neste momento, relativas à conscientização cidadã.
“Um universalismo que é um forte antídoto contra a violência” |
|
IHU On-Line - A partir de uma perspectiva dos milhares de refugiados que aportam na Europa a cada ano, quais são os desafios que se apresentam na construção de um referencial de justiça e paz na União Europeia?
Xabier Etxeberria Mauleon - A chegada massiva de refugiados com demanda de asilo à Europa, especialmente da Síria e Iraque, mas não só, está sendo um fato político maior para os europeus. A nós, que queremos remeter-nos aos direitos humanos indivisíveis e interdependentes como sinal de identidade compartilhada, mais além das identidades nacionais ou englobando-as, nos questiona o modo como realmente os respeitamos: ainda tratamos de cumprir com uma moldura nacional, com uma moldura europeia, ou com uma moldura internacional quando se precisa?
Inicialmente, as reações diversas da maioria dos responsáveis políticos dos Estados têm mostrado que ainda tendemos a cumprir com uma moldura prioritariamente nacional, como “justiça nacional”. O que se traduz em resistência a aceitar refugiados que compliquem com nossos padrões de vida, nossa repartição interna de bem-estar, nossas identidades culturais tradicionais. Isto é, nossas condutas têm mostrado que seguimos sem ter uma disposição adequada a favor da justiça global. Essa justiça, que teria de nos impulsionar a fazer o que estivesse em nossas mãos para remediar as carências graves e as violações massivas de direitos humanos que sofrem grandes setores das populações de qualquer parte do mundo, algumas dessas muito próximas a nós geograficamente.
Certamente, por trás do impacto das notícias visuais dos meios de comunicação, que têm permitido aproximar-nos à grande crueldade da fuga dos refugiados e aos obstáculos que institucionalmente lhes colocamos, houve, em setores relevantes da população civil e em instâncias de governo menores, como as prefeituras, uma reação espontânea a favor da acolhida dos refugiados. Esta reação tem impulsionado um setor de responsáveis públicos a abrir ainda mais as possibilidades de acolhida, ainda que de forma tímida. Isso nos mostra que, desde a sociedade civil organizada, podemos ter ainda incidência, nestes tempos no qual parece que tudo está regido pelas grandes dinâmicas estruturais do mercado globalizado.
Acolhida mesquinha
No entanto, por outro lado, estas pequenas luzes ainda estão acompanhadas de grandes sombras. A disposição para maior acolhida aos refugiados continua sendo mesquinha. O reconhecimento do direito de asilo que assiste aos refugiados segundo o direito internacional dos direitos humanos ainda continua sem ser efetivo. Paradoxalmente, abrir mais a mão para que entrem mais refugiados de zonas de conflito implica fechá-la com mais dureza aos imigrantes de motivação econômica que vêm especialmente da África.
Violência da Fome
É certo que o direito internacional não os ampara como ampara a quem foge da violência da perseguição e da guerra. Mas não é algo similar fugir da violência mortífera da fome? Em teoria, se é consciente de que o que nos reclama a justiça com alcance internacional pede uma colaboração firme para melhorar as coisas, segundo a escala dos direitos humanos e respeitando-os, no ponto de saída, para que finalize a guerra na Síria, Iraque ou Afeganistão, para que haja desenvolvimento econômico-social na África. Inclusive reconhecendo que não é fácil tomar iniciativas eficazes e adequadas, nossos esforços continuam sendo muito pequenos e com frequência contraditórios, motivados pelos egoísmos nacionais. Necessitamos a confluência de uma sociedade civil muito ativa a favor desta justiça internacional e de líderes políticos que transbordem suas perspectivas de curto prazo e nacionalistas. Tomara consigamos que as tímidas esperanças que emergem da sociedade civil se consolidem e se expandam.
IHU On-Line - No caso das populações indígenas remanescentes na América Latina, como se pode falar em justiça e perdão frente à situação de calamidade em que continuam vivendo?
Xabier Etxeberria Mauleon - Respondo tua pergunta distinguindo entre o momento presente, isto é, o momento no qual os opressores dos povos indígenas estão vivos, e o momento passado, no qual podemos nos remontar até a conquista e a colonização. E distinguindo também entre opressões feitas por estritas iniciativas de pessoas concretas (por grupos de pessoas com a correspondente liderança) e opressões feitas através das estruturas econômicas, políticas e religiosas afetando negativamente as comunidades indígenas.
|
“Não se faz saúde indígena só removendo os doentes até a capital, é fundamental as ações básicas nas malocas” |
Reconhecer o indígena
Diante deste panorama, em conjunto, aos que oprimem ou marginalizam e discriminam os povos indígenas, o que lhes corresponde é tomar as iniciativas que dependem deles para que se realize a justiça, tanto em seu nível distributivo como penal humanizado. Essas iniciativas devem incluir expressão de reconhecimento dos indígenas como vítimas deles, dor sincera pelo dano que lhes causou e disposição efetiva à reparação. Como se vê, dimensões de arrependimento que têm de se expressar em geral publicamente.
Por outro lado, neste fazer justiça frente à injustiça, há que reconhecer aos povos indígenas seu direito ao autogoverno, proclamado na Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas. [3] Este direito significa que eles têm de ser não só receptores da justiça, senão protagonistas dela diante das injustiças que têm sofrido em coordenação com o Estado quando se precise. Obviamente, sempre alentados ambos pela intenção honesta de respeitar o que pedem os direitos humanos, que são universais, mas que realizam esta universalidade em inculturações abertas a pluralidades legítimas.
Perdão
Como fazer conexão com o perdão? A quem corresponde pedir perdão com sinceridade e autenticidade é, evidentemente, aos violentos. Há neste ato uma obrigação moral, tanto em seu nível pessoal como cívico. Aos povos indígenas corresponde perdoá-los. Há que reconhecer, com respeito empático que inibe todo forçamento social ao perdão, que não tem obrigação pública de perdoar, que não tem mais obrigação que a de não responder a rupturas de direitos humanos com ações que iniviabilizam estes direitos em outros.
Da minha parte, defendo o valor de avançar até dinâmicas de perdão pedido e oferecido, restauradoras para seus protagonistas que, no caso dos povos indígenas, deverão estar configuradas por suas sensibilidades culturais específicas de respeito ao modo de entender o perdão. Mas com a condição decisiva de que não substituam senão que completem e plenifiquem as medidas de reconhecimento e reparação devidos. A partir daí se poderão fazer propostas de humanização radical da justiça diante do delito, inspiradas no perdão.
Respostas à violência
Comecei respondendo a esta pergunta com algumas distinções. Retomo-as agora. Quando as expressões de violência são atuais e intersubjetivas, as dinâmicas de justiça e perdão têm de ser conformes com esta intersubjetividade. Quando a violência é estrutural, essas dinâmicas precisam ter alcance estrutural. Adquirem uma dimensão coletiva, com frequência expressamente pública — quando estão implicadas as estruturas do Estado. Evidentemente, nestas dinâmicas, os responsáveis das estruturas em questão têm uma responsabilidade também especial, mas todos os que participam em torná-las efetivas, em que funcionem, têm de assumir sua cota de responsabilidade.
Perspectiva histórica
Por último, está a perspectiva histórica. Nesta, os indígenas que sofreram enormemente, inclusive até sofrer o genocídio, já não estão para reclamar justiça nem perdoar. Tampouco estão os que cometeram essas violências. Somos seus descendentes. A responsabilidade destes descendentes pela história passada é complexa, mas existe. Tratando de fazer-se responsável, os representantes atuais dos violentados e dos perpetradores podem implementar dinâmicas de perdão e de reparação, com relevantes possibilidades de restauração.
Todas as situações e possibilidades de iniciativa diversas que surgem das distinções consideradas sugerem questões relevantes à colocação em prática da justiça e do perdão, introduzem modulações específicas. Mas em uma entrevista não posso fazer-me responsável por isso.
IHU On-Line - Como a injustiça afeta a identidade coletiva dos povos originários?
Xabier Etxeberria Mauleon - As identidades coletivas, e em boa medida as individuais, se constroem através de uma interação entre três fatores. Por um lado, através do enraizamento cultural nas identidades das que nos reconhecemos membros, em geral através da socialização. Por outro lado, através do reconhecimento dos outros: nos autoidentificamos afetados pelas heteroidentificações dos demais, especialmente os que têm poder e influência. Por último, através de nossas iniciativas, individuais e coletivas, que emergem da liberdade, nos permitem gerir a nosso modo, crítica e criativamente, a contribuição dos outros dois fatores e, além disso, nos abrem a encontros com outras identidades coletivas das quais podemos aprender e com as quais podemos contribuir.
Constrói-se positivamente uma identidade quando se estabelece uma relação triangular, não hierarquizada entre os três fatores. Cada um deles vem a ser um ângulo do triângulo. Assim, cada ângulo se materializa incluindo os outros dois. O enraizamento cultural será positivo se, ao realizar-se, inclui um bom heterorreconhecimento da cultura de referência e se esta é de tal natureza que não enclausura forçadamente nela, que inclui a abertura à liberdade. O reconhecimento será adequado se é reconhecimento do valor da cultura do outro e se não bloqueia sua liberdade. Esta liberdade deixará de ser meramente formal quando tiver um espaço e uma referência para exercitar-se, para dar sentido às escolhas, espaço que encontre nos enraizamentos culturais abertura a outras culturas, assim como em reconhecimento da capacidade de liberdade.
Injustiças
Pois bem, as injustiças que os povos indígenas têm sofrido e sofrem são violências que forçam a desestruturar o funcionamento positivo do triângulo identitário, ferindo gravemente e, às vezes, matando — “culturicídio” — a vivência e afiançamento da identidade coletiva. Já a conquista e colonização supôs um enorme e duríssimo mau reconhecimento da identidade cultural dos indígenas, que ia desde o menosprezo à demonização, não só de suas culturas em si senão de quem eram seus portadores, com uma expressão estrutural que durou séculos e que continuou no fundamental quando se constituíram Estados independentes na América Latina. Continua inclusive agora, nos novos menosprezos. Este mau reconhecimento, exercido por quem tem poder e através de meios poderosos, é em si expressão de injustiça cultural, e historicamente tem forçado muitos indígenas, especialmente os que emigravam para as cidades, a ocultar sua identidade, a não transmiti-la a seus filhos. O mau reconhecimento do outro, interiorizado, cria mau reconhecimento de si mesmo, desejo de não ser o que se é, não porque assim se quer desde a própria liberdade, pois esta resulta oprimida, senão porque se quer fugir da inferiorização, marginalização e opressão.
“Não se faz saúde indígena só removendo os doentes até a capital, é fundamental as ações básicas nas malocas” |
IHU On-Line - Em que medida uma ética da diferença é fundamental para um aprofundamento da cultura de paz em nosso mundo?
Xabier Etxeberria Mauleon - Penso que a resposta a esta pergunta se desprende das respostas a duas perguntas precedentes, pelo que não vou me prolongar muito nela. O respeito à diferença é expressão do respeito à liberdade do outro e às criações que faz com sua liberdade. Também é, já quando alcança sua versão empática, expressão do apreço da criatividade humana que se mostra na variedade de atitudes, valores, obras.
Evidentemente, a ética da diferença tem que marcar limites, pois nem toda diferença é moralmente aceitável. Estes limites têm que configurar-se a partir dos direitos humanos. Mas não de uns direitos duramente ocidentalizados em suas expressões e interpretações, senão abertos, à hora de ir concretizando-os e desenvolvendo-os, às aportações das diversas tradições culturais.
Isto supõe que a ética da diferença, expressa nas diversidades culturais e também pessoais, realiza-se adequadamente quando se abre à interculturalidade e ao diálogo. Têm que levar a cabo em condições de equidade e com a intenção de buscar conjuntamente os fundos ético-cívicos que amparem as diferenças legítimas e os enriquecimentos que podemos aportar uns aos outros.
Por Márcia Junges e João Vitor Santos
Notas:
[1] Exército Republicano Irlandês (IRA) (do inglês Irish Republican Army): grupo paramilitar católico e reintegralista, que pretendia separar a Irlanda do Norte do Reino Unido e reanexar-se à República da Irlanda. Outrora recorreu a métodos terroristas, principalmente ataques bombistas e emboscadas com armas de fogo, e tinha como alvos tradicionais protestantes, políticos unionistas e representantes do governo britânico. O IRA tinha ligações com outros grupos nacionalistas irlandeses e um braço político: o partido nacionalista Sinn Fein ("Nós Próprios"). Ao longo de mais de duas décadas de luta armada, ocorreram mais de 3500 mortes. A principal razão pela qual o IRA lutava era a igualdade religiosa, visto que 75% da população norte-irlandesa era protestante e o pouco que restava, católica, o que fazia com que houvesse desigualdade e preconceito entre as religiões. Como os protestantes eram maioria, decidiam candidaturas políticas e plebiscitos, entre outros, impedindo que a vontade católica se manifestasse. Em 28 de Julho de 2005, o IRA anuncia o fim da "luta armada" e a entrega de armas. O processo de entrega de armas terminou em 26 de Setembro de 2005. Todo o processo de desmantelo do armamento foi orientado pelo chefe da Comissão Internacional de Desarmamento, o general canadiano John de Chastelain. Porém, grupos de dissidentes que não aceitavam a resolução pacífica da questão política continuam tentando realizar atentados terroristas, sem sucesso. (Nota da IHU On-Line)
[2] Euskadi Ta Askatasuna (basco para Pátria Basca e Liberdade, mais conhecida pela sigla ETA): organização nacionalista basca armada. É a principal organização do Movimento de Libertação Nacional Basco e o principal ator do chamado conflito basco. Foi fundada em 1959 como um grupo de promoção da cultura basca. No final dos anos 1960, evoluiu para uma organização, paramilitar separatista, lutando pela independência da região histórica do País Basco (Euskal Herria), cujo antigo território atualmente se distribui entre a Espanha e a França. Ao mesmo tempo, a ETA assumiu uma ideologia marxista-leninista revolucionária. É classificada como um organização terrorista pelos governos da Espanha, da França, do Reino Unido dos Estados Unidos e pela União Europeia em bloco. Em geral, a mídia doméstica e internacional também se refere aos integrantes do grupo como "terroristas". A organização reivindica a zona do nordeste da Espanha e do sudoeste da França, na região montanhosa junto aos Pirenéus, virada para o Golfo de Biscaia, região denominada por Euskal Herria (País Basco). A ETA reivindica, em território espanhol, a região chamada Hegoalde ou País Basco do Sul, que é constituído por Álava, Biscaia, Guipúscoa e Navarra; também reivindica, em território francês, a região chamada Iparralde ou País Basco do Norte, que é constituído pelos territórios históricos de Labourd, Baixa Navarra e Soule. (Nota da IHU On-Line)
[3] Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas: aprovada pela Assembleia Geral em 2007, a Declaração define os direitos individuais e colectivos para a cultura, a linguagem, a educação, a identidade, o emprego ea saúde, resolvendo assim problemas pós-coloniais que confrontaram povos indígenas ao longo dos séculos. A declaração visa manter, reforçar e incentivar o crescimento das instituições, culturas e tradições indígenas. Também proíbe a discriminação contra os povos indígenas e promove a sua participação ativa em matérias que dizem respeito a seu passado, presente e futuro. (Nota da IHU On-Line)
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A justiça do castigo e o perdão da transformação. Entrevista especial com Xabier Etxeberria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU