Por: André | 28 Agosto 2015
Provocou muita discussão a tese de um Jorge Mario Bergoglio “populista” e “peronista”, apresentado em dois artigos anteriores neste espaço.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada por Chiesa.it, 26-08-2015. A tradução é de André Langer.
O que especialmente provocou discussões foi a descrição do peronismo e de suas multiformes expressões feita pelo professor Marco Olivetti em um artigo publicado no Avvenire às vésperas das primárias presidenciais na Argentina, que aconteceram no dia 09 de agosto e foram vencidas por Daniel Scioli, o candidato da atual presidenta Cristina Fernández de Kirchner:
“O kirchnerismo é a enésima reencarnação do peronismo: depois da versão original, vagamente fascistizante, de Juan Domingo Perón e Evita; depois daquela da década de 1970, liberal-conservadora, do Perón morto e de sua terceira esposa, Isabelita; e depois da versão hiperliberal de Carlos Menem, nos anos 1990.”
“O kirchnerismo constitui a variante social-democrata, em continuidade com os grupos para-revolucionários que infestavam a Argentina nos primeiros anos da década de 1970, e é apoiado pelo tradicional sindicalismo peronista. Suas maiores adesões são particularmente altas entre as pessoas de baixa renda e com um baixo nível de instrução.”
“A categoria que o define é a do populismo – a identificação com um ‘povo’ bom – agora reduzido em concordância com o húmus político predominante em boa parte da América Latina, desde a Venezuela de Chávez e de seus herdeiros até a Bolívia de Morales, do Brasil de Lula e Dilma ao Equador de Rafael Correa, embora com muitas diferenças entre os diferentes casos.”
Olivetti é um especialista em Constituições e sistemas políticos e não fez nenhuma referência, no artigo citado, à visão política do Papa Francisco.
Mas o mais conhecido especialista italiano de América Latina, o professor Loris Zanatta, da Universidade de Bolonha, sustentou explicitamente um nexo entre Bergoglio e o populismo peronista, tanto em seu último livro La nazione cattolica. Chiesa e dittatura nell'Argentina di Bergoglio – editado na Itália pela Laterza e na Argentina pela Editorial Sudamericana, com o título A longa agonia da nação católica. Igreja e ditadura na Argentina –, como em um artigo publicado no jornal argentino La Nación, depois da viagem do Papa ao Equador, Bolívia e Paraguai.
Ao professor Olivetti respondeu de forma polêmica, de Buenos Aires, um conhecedor e profundo simpatizante do peronismo, José Arturo Quarracino, com o texto publicado na íntegra mais abaixo.
Além de sobrinho e homônimo do cardeal que, como arcebispo de Buenos Aires, quis que Bergoglio fosse seu bispo auxiliar, Quarracino ensina História e Evolução das Ideias Políticas na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Nacional de Lomas de Zamora, e é um excelente tradutor de grandes autores como Romano Guardini, Gilbert Chesterton, Joseph Ratzinger e também de vários artigos do portal Chiesa, inclusive este.
Nem sequer ele, ao replicar a Olivetti, faz referência explícita a Bergoglio. Também dá uma definição do peronismo que está perfeitamente em sintonia com o que o Papa Francisco disse recentemente a propósito da questão.
Eis o que escreveu Quarracino:
“O peronismo sempre se definiu como um movimento humanista e cristão, como terceira posição filosófica e política frente ao capitalismo liberal e ao totalitarismo marxista. Muitos de seus postulados doutrinais, no plano social, econômico e cultural se fundaram explicitamente nos princípios da Doutrina Social da Igreja”.
E agora segue o que o Papa disse textualmente a Javier Cámara e Sebastián Pfaffen, autores do livro Aquele Francisco, publicado no outono em Córdoba, sobre o seu interesse pela política:
“Na exposição da doutrina peronista há uma ligação com a Doutrina Social da Igreja. Não se deve esquecer que Perón deu seus escritos a dom Nicolás de Carlo, naqueles anos bispo de Resistencia (Chaco), para que os lesse e dissesse se estavam de acordo com a Doutrina Social da Igreja.”
E também:
“Dom Carlo era simpatizante peronista, mas um excelente pastor. Uma coisa não tinha nada a ver com a outra. Em abril de 1948, Perón, da sacada do Seminário, que dava para a praça central de Resistencia, ao terminar seu discurso disse que queria esclarecer uma coisa. Mencionou que acusavam dom Carlo de ser peronista e disse: ‘É uma grande mentira. Perón é decarlista’. De Carlo foi quem assessorou Perón na questão da Doutrina Social da Igreja.
O Papa Bergoglio disse, além disso, aos autores de Aquele Francisco:
“Eu sempre fui um apaixonado pela política, sempre.”
E o explicou da seguinte maneira:
“Eu venho de família radical. Meu avô era ‘radical de 90’ [isto é, membro do partido que se originou do movimento revolucionário que, em 1890, derrubou o regime que estava no poder]. Depois, na adolescência, eu também tive uma incursão pelo ‘zurdaje’ [termo argentino utilizado para designar a esquerda], lendo livros do Partido Comunista que me dava a minha chefa do laboratório, Esther Ballestrino de Careaga, uma grande mulher que antes tinha sido secretária do Partido Revolucionário Febrerista paraguaio.”
“Naqueles anos, a cultura política era muito fomentada. Eu gostava de estar em todos esses lugares. Nos anos de 1951 e 1952 eu aguardava ansiosamente a passagem, três vezes por semana, dos militantes socialistas que vendiam o jornal La Vanguardia. E, evidentemente, acompanhei, também, grupos justicialistas. Mas nunca me filiei a nenhum partido.”
Os “grupos justicialistas” que o Papa Francisco disse ter frequentado eram precisamente os seguidores de Perón, que definiu a própria ideologia “justicialista” – isto é, a síntese entre “justiça” e “socialismo” – e deu ao seu próprio partido o nome de Partido Justicialista.
No livro citado não há uma única palavra, nas cinco páginas de memórias que o Papa Francisco dedica à política, que constituía, mesmo que minimamente, uma crítica a Perón, apesar da marca anticatólica que marcou o final do primeiro mandato e a excomunhão imposta contra ele em 1955 por Pio XII.
Mas aqui, na sequência, apresentamos a nota de Quarracino sobre o “verdadeiro” peronismo, muito similar à visão política do Papa Francisco.
Um movimento popular, mas não populista, de José Arturo Quarracino
I.
O kirchnerismo não é “a enésima versão do peronismo” – como o define o professor Marco Olivetti –, já que na essência é uma “forma sutil de antiperonismo” ou a “antiperonização do peronismo”: o conteúdo de suas políticas é totalmente contrário às políticas históricas implantadas pelo peronismo e suas definições doutrinais.
Em linhas gerais, o kirchnerismo manteve até hoje as leis fundacionais do processo cívico-militar de 1976, que converteu a Argentina em um apêndice neocolonial do poder financeiro internacional, assim como também a concentração e a estrangeirização da economia e do papel de país monoprodutor primário (soja).
Por outro lado, historicamente falando, o peronismo enfrentou este poder financeiro depredador, ao passo que o kirchnerismo submeteu-se docilmente a este poder e que pagou com juros a pilhagem realizada a partir de 1976: mais de 200 bilhões de dólares, com o paradoxo de que a Argentina deve hoje mais do que devia no começo da gestão kirchnerista.
A habilidade do kirchnerismo consistiu em executar uma política profundamente antiperonista e pró-colonialista com roupagem e máscara peronistas. Ou seja, em nome de Perón realizou uma política totalmente contrária aos postulados doutrinários do peronismo.
II.
Definir os governos de Perón como “vagamente fascistizantes” e “liberal-conservadores” é um erro e uma falta de rigor científico e intelectual. O peronismo sempre se definiu como um movimento humanista e cristão, como terceira posição filosófica e política frente ao capitalismo liberal e ao totalitarismo marxista. Muitos de seus postulados doutrinais, no plano social, econômico e cultural se fundaram explicitamente nos princípios da Doutrina Social da Igreja.
Definir o peronismo como “vagamente fascistizante” é o mesmo que definir o fascismo como “vagamente peronizante”; é aplicar uma categoria política alheia e estranha ao tema que se quer definir. Fascismo e peronismo são experiências políticas totalmente diferentes uma da outra: o primeiro é a experiência política de um país europeu desenvolvido baseado na grandeza imperial de Roma, ao passo que o peronismo é a expressão política de uma política nacional que buscou tornar-se independente da dominação política, econômica e cultural exercida historicamente pela Grã-Bretanha na história política argentina, a partir de 1810, influência que lamentavelmente voltou a exercer impunemente de 1976 até hoje.
Definir o peronismo como “liberal-conservador” no período de 1973-76 é uma falácia. Para além das políticas adotadas nesse período, totalmente contrárias a essa identificação feita pelo professor Olivetti, se tivesse sido como ele defende, não se compreenderia porque o poder financeiro mundial, com David Rockefeller à frente, tirou Perón do poder para implementar uma política... liberal e conservadora, convertendo a Argentina novamente em colônia do imperialismo internacional do dinheiro, começando pelo processo de desindustrialização do país. Ou, então, o professor Olivetti acredita que o processo de 1976 significou a derrubada de um governo liberal-conservador para implementar uma política revolucionária?
III.
Na sua essência, o peronismo foi um movimento popular, mas não populista. Não governou para o povo, governou com o povo. O populismo supõe uma ação de governo para o povo, que recebe passivamente o que os funcionários do governo dispõem, como uma forma contemporânea do despotismo ilustrado.
Diferentemente desta concepção elitista, o conceito de comunidade organizada, que define ideologicamente o ponto de partida e o fim último da política peronista, baseia-se em três princípios fundamentais: o Estado descentralizado, o governo centralizado e o povo organizado livremente, cooperando com a ação do governo.
Diferentemente da massa populista, o povo tem entidade plena, como sujeito com consciência social, personalidade social e organização social. Nesta concepção, o homem como indivíduo é povo, porque se sabe membro de uma comunidade, para a qual contribui ativa e criativamente, e não apenas com sua presença muda e temerosa. O indivíduo sabe-se como “eu” que é ao mesmo tempo um “nós”, da mesma maneira que sabe que o “nós” é “eu”: o indivíduo não é estranho ao povo, mas é parte substancial dele.
Na concepção peronista, o indivíduo não é o indivíduo liberal sublimado (alheio e hostil ao Estado e à comunidade, e superior a ambos), nem tampouco é o indivíduo “insetificado” pelo coletivismo totalitário (um número ou uma engrenagem de um todo superior). Pelo contrário, o populismo pensa o povo como um agrupamento amorfo, passivo e suscetível de ser arrastado segundo os caprichos do governante, que só existe para aplaudir. Neste sentido, o kirchnerismo é populista, mas não o peronismo, que na sua essência é popular.
O conceito peronista de “povo” é equivalente ou similar ao conceito de “povo” definido, entre outros, por Cícero: associação de pessoas unidas por um direito comum e com interesses comuns.
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Duas notas à margem
Na Argentina, a polêmica sobre o Bergoglio peronista surgiu imediatamente depois de sua eleição como sucessor de Pedro, sobretudo por iniciativa dos círculos intelectuais e políticos kirchneristas interessados em vincular-se de alguma forma ao novo Papa.
Em artigo publicado pelo portal La Nuova Bussola Quotidiana, Andrea Zambrano resumiu magnificamente bem o começo da polêmica.
Os partidários da tese do peronismo precoce de Bergoglio citavam, entre outros, um episódio em que era aluno do Instituto Técnico Industrial, quando um dia entrou na sala de aula com o escudo de Perón no peito, razão pela qual foi punido com uma suspensão.
O Papa desmentiu aos autores de Aquele Francisco esse episódio: “Não é verdade”.
Pelo contrário, disse que teve a oportunidade de “ver de perto” Perón justamente graças a uma concentração de estudantes que aconteceu no Teatro Colombo de Buenos Aires, na qual ele participou como representante de sua escola e teve a oportunidade de ser escolhido para ficar no palco.
E acrescentou que em outra ocasião encontrou-se também com Evita, em uma “unidade básica peronista da rua Córdoba”, à qual tinha ido para recolher material para um exercício escolar.
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Na edição de 21 de agosto do Corriere della Sera, o professor Angelo Panebianco, professor da Universidade de Bolonha de Sistemas Políticos Internacionais, escreveu a propósito da “argentinidade” do Papa Francisco:
“É inevitável – já que cada um de nós é filho de sua própria história – que este Papa, como todos os que o precederam, carregue em si – além de sua fé e de sua leitura do Evangelho – também experiências, ideias e sentimentos que fazem parte da tradição de sua terra. Tradição que não coincide necessariamente com a nossa. É plausível que em um país de capitalismo maduro como é, apesar de tudo, a Itália, não sejam poucos, mesmo entre os católicos, os que divirjam de Bergoglio em matéria de trabalho e de lucros, ou que, para dar outro exemplo, não acreditem que as guerras contemporâneas sejam apenas fruto do desejo de obter lucros por parte de capitalistas gananciosos. E é também plausível que muitos se deem conta de que as concepções econômicas do Papa derivem de uma determinada interpretação das Escrituras, mas talvez também derivem de uma tradição fortemente anticapitalista, arraigada no país do qual provém.”
“Na Itália temos excelentes estudiosos da América Latina em geral e da Argentina e de sua história em particular. Talvez seja o momento para que comecem a se ocupar dos vínculos culturais existentes entre este Papa e essa tradição.”
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Quando Bergoglio era peronista. E ainda o é - Instituto Humanitas Unisinos - IHU