28 Agosto 2015
"Falar de Deus na sociedade contemporânea” é o tema do Ratzinger Schüelerkreis, Círculo de ex-alunos de Bento XVI, em sua reunião anual em Castel Gandolfo. Mons. Tomas Halik, padre tcheco, que viveu clandestinamente os primeiros anos do seu sacerdócio, foi convidado para falar sobre o tema. Mons. Halik, em 2014, foi agraciado com o Prêmio Templeton, destinado àqueles que contribuem na melhora da vida espiritual da humanidade. Ainda em janeiro falara ao Grupo ACI sobre seu trabalho, numa longa entrevista concedida por e-mail, agora apresentada na sua totalidade pela primeira vez.
A entrevista é de Andrea Gagliarducci, publicada por Grupo ACI, 26-08-2015. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis a entrevista.
Professor Halik, por que é tão importante falar de Deus hoje?
Porque, hoje em dia, há muitos pretendentes ao trono de Deus. Proclamar a fé, e, em particular, enfatizar a unicidade de Deus, significa rejeitar a idolatria e as tentativas de proclamar valores relativos, como nação, prosperidade, poder, saúde, sucesso e muitos outros, como absolutos. Crer em um só Deus é uma saudável e necessária relativização dos ídolos modernos e pós-modernos. Crer em Deus diz às pessoas que elas não são Deus e não devem brincar de Deus. E isto é muito importante em tempos de "selfismo", de narcisismo e de adoração do próprio ego.
É possível que a falta de vida espiritual seja a base da crise econômica atual, e que tanto o Papa Bento XVI como Francisco a definiram como crise antes de tudo espiritual?
Se considerarmos a "vida espiritual" no sentido mais amplo do termo, ou seja, como "cuidado da alma" e a constante busca pelo significado mais profundo da existência, então ela é a essência do ser humano. As tradições religiosas ensinam, entre outras coisas, a controlar o egoísmo e cultivar os instintos, desenvolver a solidariedade como arte de conviver com os outros, e a aceitar responsabilidade sobre os outros. Nesse sentido, pode-se dizer que "a falta de vida espiritual está na base da crise econômica". Mas temos que tomar cuidado com as super simplificações, porque a crise econômica tem outras causas, incluindo deficiências graves no sistema político e econômico, nas estruturas, no comportamento das instituições e daqueles que as guiam, bem como teorias econômicas e ideologias políticas erradas. A globalização, que é a revolução cultural e social mais importante do nosso tempo, tem uma série de "efeitos colaterais" com os quais ainda não aprendemos a lidar. Entre esses efeitos, há o enfraquecimento dos Estados nacionais e a ação de entidades econômicas supranacionais que escapam ao controle democrático.
Quais são, então, as raízes da crise espiritual de hoje?
Acredito que a causa principal é a falência das instituições religiosas, o fato de serem incapazes de inspirar o estilo de vida e o modo de pensar das pessoas hoje de maneira inteligível e acreditável. É comum ver pessoas dos círculos da Igreja cederem diante da prevalência do materialismo e da ausência de Deus em nosso tempo. Eles estão errados: pois há, hoje, uma ainda maior demanda de vida espiritual do que no passado, mas a oferta da Igreja, não raro, não é suficiente para atender a demanda. O tipo de cristandade paroquial está perdendo sua biosfera social e cultural, e, provavelmente, tornar-se-á mais fraca. Penso que cada vez menos pessoas sentir-se-ão totalmente em casa nas paróquias de tipo tradicional. Mas há também um número crescente de pessoas que buscam, e o futuro do cristianismo (e, em certo sentido, o futuro da nossa civilização) depende de quanto a Igreja será capaz de voltar-se para esses “buscadores”. Não será uma questão de atividade missionária, no sentido tradicional de trazer esses "buscadores" para as estruturas existentes da Igreja. Será antes o ministério do "acompanhamento dos buscadores". Mais do que de pastores, a Igreja precisa hoje de mestres espirituais (nas Igrejas do Oriente, esse papel é descrito como o dos anciãos). Mais do que de pregadores, a Igreja precisa de pessoas capazes de oferecer "exercícios espirituais" e conversas fraternais.
São João Paulo II apontou o dedo tanto para o consumismo quanto para o Comunismo como fenômenos ameaçadores da espiritualidade. Porque o componente espiritual do ser humano está sempre em perigo?
O materialismo ideológico dos comunistas e o materialismo prático da sociedade liberal são duas coisas completamente diferentes. A principal razão por que a Igreja perdeu força de influência nas sociedades pós-comunistas da Europa Central e Oriental foi a incapacidade de distinguir esses dois fenômenos. Onde quer que a Igreja tenha tentado usar a mesma estratégia vis-à-vis nas sociedades pluralistas liberais, aprendida do confronto com os regimes totalitários, foi condenada a um papel marginal na sociedade. Fechou-se em gueto e começou a desintegrar-se. Durante o período comunista, os cristãos precisavam de coragem, antes de tudo. Numa sociedade livre, eles precisam de sabedoria e capacidade para diferenciar-se. Na época do comunismo, a sociedade era branca ou preta, agora está cheia de cores. Os cristãos incapazes de ver as cores, que não conseguem abandonar o pensamento "branco e preto", mantendo-se em rótulos ideológicos primitivos, no mundo para o qual são enviados como o sal, perdem seu sabor.
O senhor vem de um país onde setenta por cento da população se declara ateia. Como é possível falar de Deus quando a situação é aparentemente tão desesperada? O que ensina aos sacerdotes tchecos? Como os motiva?
Eu não gostaria de ser padre num país onde a fé é tida como um dado adquirido, e faz parte do folclore. A evangelização mais difícil é aquela dos ambiente onde as pessoas acham que já sabem tudo, ou quase tudo, sobre Deus. Em nosso país, a maioria da população que se considera ateia está simplesmente rejeitando a sua (ou a que adotaram acriticamente) primitiva concepção de Deus, da fé e da Igreja. Ficam surpresos quando lhes digo que em certos pontos de vista eu estou profundamente de acordo com eles, isto é, que o Deus que eles rejeitam na verdade não existe. Mas, mais preocupante é o fato de que muitos dos que se consideram crentes têm realmente conceitos primitivos. No entanto, após longo e paciente diálogo, descobrimos que a maioria dos "não-crentes" na verdade creem em "algo superior". E então, não é o ateísmo, mas o "qualquer coisismo" a religião mais difundida em nossa nação, e não só aqui, na minha opinião. Daqui vem o trabalho dos teólogos - que foi do apóstolo Paulo no Areópago - de interpretar essa "alguma coisa" (o Deus desconhecido). O ponto de partida é a constatação de que "ninguém jamais viu a Deus", como se lê na Primeira Carta de João. Da mesma forma, nenhum de nós viu seu próprio rosto: podemos conhece-lo somente a partir da imagem refletida no espelho. Do mesmo modo, somente vemos Deus num espelho, nas situações íntimas, nos enigmas. Mas temos um espelho confiável: a história de Jesus. No dias de hoje, Jesus vem, frequentemente, ao nosso encontro como "estrangeiro", como fez com os discípulos na estrada de Emaús. A evangelização é a aventura de descobrir o Jesus incógnito. E, nesse sentido, os ateus são parceiros mais interessante que os cristãos tradicionalistas.
Uma vez o senhor disse que a Igreja precisa de pensadores. Em que sentido? E qual é a razão da carência de pensadores na Igreja?
Tanto João Paulo II, como Bento XVI, repetiram muitas vezes que o credo sem pensamento é perigoso, e pode levar ao fanatismo e ao fundamentalismo, doenças das mais infecciosas do nosso tempo. Na Antiguidade e na Idade Média a Igreja não tinha medo de desenvolver seu modo de pensar a fé utilizando as correntes filosóficas da época. Não tinha medo de inspirar-se no pensamento pagão, judeu ou islâmico. No entanto, quando foi o momento de confrontar-se com o pensamento da modernidade tardia, a Igreja fechou-se sobre si mesma, com ansiedade. Basta recordar a lamentável "luta contra o modernismo", resultante na autocastração da teologia católica por várias décadas, durante as quais a imagem do mundo mudara radicalmente. O argumento da hierarquia naquela época era o medo de "escandalizar os fiéis comuns". Infelizmente, não estava preocupada em não escandalizar os crentes ilustrados e, por este motivo, perdeu muitos deles. A teologia sofre hoje de superespecialização e fragmentação em disciplinas acadêmicas individuais. A maioria dos livros teológicos são lidos apenas pelos professores de teologia. Faltam teólogos capazes de se comunicar com um público mais amplo.
O que a Igreja precisa hoje? A evangelização não é mais importante que os pensadores?
A base da evangelização é a inculturação, a fusão criativa da mensagem do Evangelho numa cultura vivida, num modo de pensar e de viver de um povo. A evangelização sem diálogo com a cultura não é nada além de propaganda religiosa e doutrinação. Acho contraproducente a atividade populista anti-intelectual no modelo dos televangelistas americanos. Quando vejo pessoas manipuladas emocionalmente nos megashows religiosos nos estádios, repito para mim mesmo as palavras da Bíblia: Deus não estava no vento. O Evangelho é uma semente que precisa sedimentar-se profundamente no terreno bom. Deve morrer para si mesma, crescer em silêncio por longo tempo, para que, no final, realmente dê muito fruto. Lembremo-nos de Maria, que guardava todas as palavras e as meditava em seu coração.
Nos últimos tempos, houve bastante discussão sobre como a Igreja comunica sua mensagem, e sobre o número de consultores contratados para melhorar a comunicação. A técnica das comunicações, na sua opinião, tem prevalecido sobre a evangelização?
Precisamos de profundidade espiritual, nova linguagem e a coragem de refletir sobre a fé em diálogo com a cultura contemporânea. Se nossa pregação terá estas qualidades, então as considerações técnicas serão secundárias, ainda que não marginais. Vinho novo precisa de odres novos. Mas as novas garrafas são inúteis sem um vinho novo.
Padre Piero Gheddo, missionário italiano, com mais de cinquenta anos de experiência, identificou o "pecado original" da falta de missionários hoje no fato de que o anúncio do Evangelho foi ofuscado pelo compromisso social da Igreja. Demasiada ênfase em questões sociais e demasiado pouco sobre a Igreja, se poderia dizer, resumindo o pensamento do Padre Gheddo. O senhor concorda?
"A fé que não produz boas obras não é verdadeira fé" (Tg 2,20). A evangelização sem compromisso social é vazia e não credível. Mas a Igreja não pode simplesmente transformar-se numa das tantas instituições sociais. Os que participam no trabalho social devem exalar o perfume de Cristo.
Como é possível aproximar-se dos que estão longe da Igreja e de qualquer credo religioso? E como é possível que a Igreja “ressuscite "?
Precisamos de uma eclesiologia nova. A Igreja precisa de uma auto percepção nova. Sugiro duas citações. Agostinho disse: "Muitos estão dentro e acreditam estar fora, e muitos estão fora e acreditam estar dentro" (os sociólogos falam de "crer sem pertencer" e "pertencer sem acreditar"). E o teólogo ortodoxo Evdokimov escreveu: "Sabemos onde está a Igreja; não é nossa tarefa julgar onde a Igreja não está".
Quais são as principais razões de tantas pessoas deixarem a Igreja?
Muitos "filhos pródigos" têm a sensação de que se voltarem para a Igreja não encontrarão os braços abertos de um pai generoso e misericordioso, mas o dedo apontado do amargurado irmão mais velho. Graças a Deus, o Papa Francisco está mudando esta imagem. De muitos pontos de vista, seus movimentos no sentido da reforma recordam a "revolução cultural" de Francisco de Assis. O importante é, no entanto, não simplesmente adorar o Papa, mas como ele, levar a sério o desafio de Deus, de "ir e reconstruir sua casa, que está caindo aos pedaços". O novo estilo representado pelo Papa Francisco é o primeiro que merece o título de “nova evangelização”. Se este progresso, que despertou tanta esperança dentro e fora da Igreja, parasse, traria consequências trágicas para a Igreja e para o mundo.
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O relator do Ratzinger Schülerkreis: "Falar de Deus para salvar o homem dos ídolos" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU