19 Março 2015
“Teremos um Brasil que ganhou as ruas com as bandeiras as mais diversas. Também teremos um Brasil irrequieto, inconformado, sedento por mudanças estruturais que possam recuperar a credibilidade dessa nobre missão que é a atividade política”, projeta o juiz.
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Conhecido por defender a lei da “Ficha Limpa”, Márlon Reis enfatiza que “não se podem ignorar os aspectos culturais que fomentam a corrupção” e frisa que o combate a essa situação depende de “mudanças institucionais”, mas também “é preciso influir positivamente sobre o ser humano a partir da construção de valores de probidade, para o que as escolas devem ser chamadas a exercer papel mais protagonista”.
Entre as soluções para resolver a corrupção no país, Reis sugere “uma reforma política abrangente, que ponha em destaque a responsabilidade coletiva dos partidos políticos. Os partidos não são devidamente evidenciados, por culpa de um sistema eleitoral que exalta os indivíduos, promovendo uma ‘fulanização’ do debate público. Os partidos devem, sim, ser responsabilizados por suas opções”.
Márlon Reis é graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. É coordenador dos programas de pós-graduação a distância em Direito Eleitoral e Gestão Judiciária Eleitoral mantidos pelo grupo WEducacional. Em 2002, idealizou e fundou, juntamente com lideranças sociais, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral - MCCE, rede de abrangência nacional que reúne mais de 50 organizações sociais brasileiras e que congrega 330 comitês locais espalhados por todo o país.
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Confira a entrevista.
IHU On-Line - A corrupção é a principal causa do mal-estar da sociedade atualmente?
Márlon Reis - A sociedade identifica, através da corrupção, todas as mazelas do Estado, que não ouve adequadamente a sociedade pela falta de mecanismos adequados de interlocução. É difícil compreender falhas básicas na gestão em todos os níveis de governo, ao mesmo tempo que é inegável a apropriação privada de verbas destinadas a políticas públicas. A sociedade brasileira sempre foi vista como tolerante à corrupção. Mas a percepção da esfera pública, ainda que de maneira inicial, já está presente entre parte significativa dos brasileiros. As queixas, por outro lado, não são dirigidas. A sociedade ressente-se de um evidente déficit de democracia. E agora busca meios de se exprimir coletivamente.
IHU On-Line - Corrupção é uma chaga que assola não só o Brasil. No entanto, o que diferencia a corrupção brasileira com a de outros países?
Márlon Reis - Trazemos conosco a marca cultural do patrimonialismo, uma dificuldade de separar o público do privado. Exemplo disso é a súmula vinculante editada pelo Supremo Tribunal Federal sobre o nepotismo, que deixou de fora os cargos do primeiro escalão. A mensagem transmitida à sociedade é de que parentes só podem ser nomeados para altos cargos. Na maioria dos países do Ocidente a corrupção não tem uma influência tão aberta sobre a institucionalidade. Projetos de lei voltados ao combate à corrupção simplesmente não andam no Congresso Nacional. Por outro lado, nos tribunais de contas, prevalecem nomeações políticas. São exemplos da institucionalização de visões que tornam o Estado mais permeável ao patrimonialismo.
IHU On-Line - A cultura de tirar vantagem, buscar benefícios à margem da lei, muito presente na ideia de brasilidade, é a gênese da corrupção?
Márlon Reis - Não se podem ignorar os aspectos culturais que fomentam a corrupção. O combate a essa mazela desafia, sim, mudanças institucionais. Mas é preciso influir positivamente sobre o ser humano a partir da construção de valores de probidade, para o que as escolas devem ser chamadas a exercer papel mais protagonista. A inserção mais efetiva de temas como cidadania nos currículos escolares é uma medida sempre esquecida ou deixada para depois, mas deveria andar ao lado de qualquer outra iniciativa em favor da probidade.
IHU On-Line - Como criador da Lei da Ficha Limpa, que avaliação faz da legislação nos dias de hoje? Quais os avanços e os limites da legislação?
Márlon Reis - Avançamos na legislação em alguns aspectos. Temos leis de iniciativa popular aprovadas e em vigor para reprimir a compra de votos e definir parâmetros mais rigorosos para as inelegibilidades. Estão em vigor leis importantes, como a da Responsabilidade Empresarial e do Acesso à Informação. São leis positivas, que enfrentam aspectos importantes da sociabilidade política. Mas falta-nos uma mudança mais sistêmica. Precisamos ir ao âmago de questões históricas, como o domínio dos processos eleitorais pelo abuso do poder econômico.
"O mais importante, no momento, é retirar as doações do abrigo da lei e passá-las aos domínios da ilicitude" |
IHU On-Line - Tornar um agente político inelegível pune o indivíduo. No entanto, muitas vezes, ele segue exercendo seu poder através de um partido político. Ou seja, não ocupa cargo público, mas segue articulando um sistema nocivo. Como pensar punições mais amplas direcionadas a agremiações que tenham em seus quadros agentes “ficha suja” e ao mesmo tempo manter um Estado Democrático de Direito?
Márlon Reis - A solução para isso é uma reforma política abrangente, que ponha em destaque a responsabilidade coletiva dos partidos políticos. Os partidos não são devidamente evidenciados, por culpa de um sistema eleitoral que exalta os indivíduos, promovendo uma “fulanização” do debate público. Os partidos devem, sim, ser responsabilizados por suas opções.
IHU On-Line - Como o sistema de doação de campanha por empresas privadas pode contaminar o sistema e estimular a corrupção?
Márlon Reis - Temos na Operação Lava Jato uma clara ideia do que está ocorrendo. Não temos no Brasil, efetivamente, um financiamento privado. Os grandes doadores de campanha são, coincidentemente, também os quais mais benefícios materiais auferem junto aos governos. Então o dinheiro que transferem para candidatos é na verdade uma parcela dos recursos públicos. Não há de fato financiamento empresarial, mas um investimento a ser pago a duras penas pela sociedade.
IHU On-Line - A solução é o financiamento público de campanha? Por quê?
Márlon Reis - Defendemos no âmbito da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas um modelo que exclui as empresas, mas mantém a fonte pública de recursos de campanha e autoriza as doações individuais, ainda que de forma limitada. Entendemos que o mais importante, no momento, é retirar as doações do abrigo da lei e passá-las aos domínios da ilicitude. O valor a ser perseguido é o de igualdade de oportunidades entre os candidatos, o que, dentre outras medidas, reclama eleições baratas totalmente transparentes.
IHU On-Line - Discute-se reforma política com propostas e revisões das mesmas. No entanto, do que a sociedade não pode abrir mão em uma reforma política?
Márlon Reis - Elencamos como prioridades a proibição das doações empresariais, a racionalização do sistema proporcional por meio de um processo de votação em dois turnos, o estímulo à participação política da mulher e a regulamentação adequada dos mecanismos de participação democrática direta.
IHU On-Line - Os partidos políticos e sua forma hegemônica de funcionamento não se tornaram velhos demais para uma democracia mais compatível com os desafios do século XXI?
Márlon Reis - Os partidos vêm sofrendo, ao logo de mais de 200 anos, processos de profunda transformação. Seu surgimento se deu de forma intuitiva, fruto da necessidade de formação de blocos de intervenção política coletiva, o que segue sendo muito válido até os dias de hoje. Mas a forma organizacional dos partidos no Brasil não evoluiu com a sociedade. Há menos democracia na vida interna dos partidos do que a presente na formação da sociedade. Daí o surgimento de um sentimento de desconfiança. Poucos desejam participar de grupos dominados por coronéis. Os partidos são estruturas importantíssimas, mas devem ser democratizados, o que demanda a horizontalização dos seus debates e deliberações.
IHU On-Line - O senhor defende um projeto de lei de iniciativa popular para reforma política. Do que se trata e como seria?
Márlon Reis - Defendemos o financiamento democrático das campanhas eleitorais, um modelo financiado em parte com recursos públicos, em parte com doações individuais limitadas a 700 reais e realizadas de forma transparente via internet, com exposição em tempo real. Quanto ao modo de votar para deputados e vereadores, propomos uma mudança simples, de múltiplos resultados: a votação em dois turnos. Primeiro se vota no partido, depois no candidato. Assim o eleitor tem a certeza de qual bancada está ajudando a compor, forçando os partidos a assumir suas posturas programáticas. No segundo turno, ao votar no candidato, não há risco de que seu voto contribua para a eleição de pessoa indesejada.
"Mas a forma organizacional dos partidos no Brasil não evoluiu com a sociedade" |
IHU On-Line - De que forma a promulgação da Lei de Acesso à Informação - LAI pode ser usada como ferramenta de combate à corrupção?
Márlon Reis - Fiz bom uso da LAI em 2012 como juiz eleitoral. Determinei aos candidatos a prefeito e vereador da Zona Eleitoral que presido que apresentem os nomes dos seus doadores antes da votação, para incrementar a transparência do processo de captação de recursos. Foi um sucesso. Logo a medida foi adotada por outros juízes e, por fim, pelo TSE. É um exemplo do amplo espectro de benefícios sociais decorrentes da implementação dessa oportuna lei. Precisamos seguir no uso dos seus postulados.
IHU On-Line - A doação de recursos para campanha de parlamentares por empresas privadas pode ser mais nociva ainda — e aumentar as chances de corrupção — do que a doação de campanha ao Executivo?
Márlon Reis - Em ambos os casos o comprometimento é o mesmo: parlamentar e gestor são cooptados para servir aos interesses de poucas empresas em detrimento da sociedade. O legislador define o formato final do orçamento público, apontando as prioridades. Por outro lado, comissões temáticas da Câmara, como a de Minas e Energia, são o destino de muitos candidatos apoiados por empreiteiras e mineradoras, que têm interesse imediato no modo como atua aquele colegiado. As doações empresariais comprometem igualmente a qualidade do Legislativo e do Executivo.
IHU On-Line - Como recrudescer o controle e combate da corrupção em outros poderes, como o Judiciário?
Márlon Reis - O Conselho Nacional de Justiça inovou positivamente criando uma estrutura de planejamento e controle no âmbito do Poder Judiciário. Mas é preciso avançar na agilização das ações judiciais para que magistrados que incorreram em casos de corrupção e outros crimes graves possam ser efetivamente punidos. No âmbito dos tribunais de contas, com o que me preocupo muito, é preciso instituir o seu controle externo — ainda inexistente — e a escolha dos seus membros segundo critérios técnicos.
"Há menos democracia na vida interna dos partidos do que a presente na formação da sociedade" |
IHU On-Line - A campanha publicitária de seu livro, O Nobre Deputado, anuncia a obra como sendo “romance sobre a corrupção, histórias de terror”. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre o livro e explicasse esse slogan.
Márlon Reis - O Nobre Deputado é fruto da compilação de entrevistas realizadas sob a garantia do anonimato com políticos que praticam a compra de mandatos. A mercantilização das campanhas, sob a forma da compra do apoio político, é a grave realidade denunciada no livro. Deu à obra ares de ficção apenas no que toca à forma da narrativa e à criação de um personagem protagonista, o Deputado Cândido Peçanha, que encarna ele próprio todas as condutas ilícitas que podem levar alguém à conquista do mandato por via mercenária.
IHU On-Line - Que Brasil teremos nos próximos quatro anos?
Márlon Reis - Teremos um Brasil que ganhou as ruas com as bandeiras as mais diversas. Também teremos um Brasil irrequieto, inconformado, sedento por mudanças estruturais que possam recuperar a credibilidade dessa nobre missão que é a atividade política.
(Por João Vitor Santos e Patricia Fachin)
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Discurso contra corrupção e o déficit democrático na sociedade brasileira. Entrevista especial com Márlon Reis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU