Por: Jonas | 11 Março 2015
“Ao olhar para o papa Francisco e os dois anos transcorridos, quase tão importante como o que ele disse e fez é o que deixou de dizer e fazer”, opina o teólogo espanhol José Arregi, em artigo publicado por Religión Digital, 08-03-2015. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Serei sincero. Dois anos após a eleição do bom papa Francisco, sinto alívio e gratidão, uma profunda gratidão. E ao mesmo tempo continuo sem abrir mão de importantes questionamentos sobre o alcance e o futuro de sua reforma, de sua primavera bem-vinda.
Fonte: http://goo.gl/8VBK3A |
Primeiro, o mais importante. Desde aquela primeira tarde de sua eleição, quando se inclinou diante da multidão da Praça de São Pedro para pedir a sua benção, antes de oferecê-la, o papa Francisco nos trouxe um profundo alívio. Era um de nós, despojado da pompa e da máscara papal. Era como se sentisse rapidamente libertado do peso de mil anos de papado. E nos sentimos libertados. Respiramos.
Desde então, o franco sorriso, a presença bondosa, a palavra improvisada, o estilo natural, a ruptura do protocolo, a frescura da mensagem, o ar de humanidade e o ar do Espírito não pararam de soprar sobre nós, com suavidade e energia.
O sentimento de alívio tem a ver também com o fato de que os guardiões da doutrina parecem estar na retaguarda ou se retiraram para seus quartéis de inverno. Quase não os ouvimos, não sei muito bem se por ordens recebidas ou pela oportunidade e estratégia. Logo se verá. Estamos há dois anos sem condenações, nem censuras estridentes, e desfrutamos deste fato.
O sistema vaticano continua sendo obscuro, e não dá para acreditar em tudo o que se vê (é o que aparece, ou aparece somente o que querem nos mostrar?). Mas, volta-se a sonhar com a possibilidade de que recuperemos a liberdade da teologia, a liberdade de nos arriscarmos, a liberdade de errar e de continuar procurando não verdades, nem mesmo a “Verdade”, mas o mistério que nos salva.
Ao olhar para o papa Francisco e os dois anos transcorridos, quase tão importante como o que ele disse e fez é o que deixou de dizer e fazer. Não condenou a cultura atual “descrente, relativista e hedonista”, como fizeram sem trégua os dois últimos papas e a grande maioria de nossos bispos mais próximos, de intervenção em intervenção, de documento em documento, até mexer muitas vezes com a nossa fé e a paciência, ou até nos habituar estoicamente, ou até nos tornar indiferentes por puro cansaço ou por higiene espiritual.
O tom áspero e o projeto ultraconservador religioso-político, nacional-católico, do episcopado espanhol, dirigido por dom Rouco e seus bispos afins, obcecado pelo aborto, a religião na escola e o matrimônio homossexual, haviam tornado o ambiente irrespirável.
A mensagem do papa Francisco, ao contrário, é eminentemente positiva. Volta a ressoar o evangelho da graça e da liberdade. A cura dos feridos e a libertação de todos os oprimidos recuperaram o centro e a primazia. E tudo isso foi apresentado em um texto excepcional, cheio de alento e frescura, o melhor texto vindo de Roma desde o início do papado, há 100 anos: Evangelii Gaudium. O Evangelho é graça e libertação. Que singelo! Que alívio! O Espírito sopra. Podemos respirar novamente.
Por isso, dois anos depois, com todas as minhas dúvidas, sinto uma imensa gratidão, e me compraz dizer isto, e o direi citando nos parágrafos abaixo expressões literais do papa, quase todas tomadas da Evangelii Gaudium.
Obrigado, papa Francisco, por nos exortar diretamente ao coração do Evangelho, o gozo da bondade, a revolução da ternura! Obrigado por dissentir dos profetas eclesiásticos das calamidades, e por nos recordar que o grande perigo do mundo e dos cristãos é a tristeza, não a descrença, e que nós, cristãos, não podemos anunciar nossa esperança como inimigos que apontam e condenam. Pelo fato de insistir em que também, hoje, Jesus rompe os esquemas entediantes nos quais pretendemos fechá-lo e nos surpreende com sua constante criatividade divina, e em que a Igreja deve aceitar a liberdade impenhorável da Palavra.
Obrigado por nos advertir contra a psicologia da sepultura, que pouco a pouco converte os cristãos em múmias de museu, e por nos convidar a sermos facilitadores e não controladores, a sermos audazes e criativos, sem proibições e nem medos, a chegar ali onde são gestados novos relatos e paradigmas. A ser Igreja em movimento. E por nos exortar a não ficarmos ancorados na nostalgia de estruturas e costumes que já não são canais de vida no mundo atual, e a não sonhar com uma doutrina monolítica, defendida por todos sem ponderações, nem pensar em um cristianismo monocultural e monocórdio; por afirmar que não nos entregou a vida como um roteiro no qual tudo já estaria escrito, mas que consiste em caminhar e buscar, dando espaço à dúvida.
Obrigado por sustentar que a Igreja não é uma aduana, mas, sim, um posto de socorro, e que prefere uma Igreja acidentada, ferida e manchada por sair à rua, do que uma Igreja enferma, fechada, contida em suas próprias seguranças, preocupada em ser o centro, enclausurada em um emaranhado de obsessões e procedimentos; por nos precaver contra a mundanidade eclesiástica, contra o perigo de se sentir superiores aos outros, pelo fato de se cumprir determinadas normas ou por ser inquebrantavelmente fiéis a certo estilo católico, próprio do passado. E contra a tentação de encher os seminários com qualquer tipo de motivações, relacionadas a inseguranças afetivas, buscas de formas de poder, glórias humanas ou bem-estar econômico.
Obrigado por denunciar os mecanismos sacralizados do sistema econômico imperante, uma economia da exclusão e da desigualdade, uma economia que mata.
Obrigado por ter gritado na praia de Lampedusa diante dos governos europeus: Vergonha! Vergonha! E por sua vontade de construir uma Igreja pobre para os pobres, inspirada no primado da misericórdia, e não obcecada por aspectos doutrinais ou morais que procedem de determinadas opções ideológicas.
Tudo isso constitui um balanço destacável, e é muito mais do que eu esperava há dois anos. Reconheço isto com muito gosto. E essa conversão evangélica – o primado da práxis misericordiosa – me parece muito mais importante do que todas as reformas curiais feitas até agora ou que possa haver no futuro. Porém, acredito que há uma reforma estrutural que afeta o próprio modelo de papado ou, melhor dito, da Igreja que eu desejava e continuo desejando, e que considero indispensável para que esta primavera não se torne inverno. E esta reforma continuo sem ver.
No entanto, quem sou eu para pedir mais ao papa Francisco, um homem de 78 anos, absolutamente dedicado todos os dias, de cedo à noite, a uma tarefa sobre-humana, e constantemente exposto, observado, rebatido e assediado por tantos poderes e interesses obscuros? Teria todo o direito de ir de Roma para sua terra argentina e sua comunidade jesuíta, e viver em paz seus últimos anos, rezar, escutar música, passear e desfrutar com sua família e seus amigos/as. Seria desumano lhe pedir mais. Longe de mim fazer isto.
Contudo, talvez, o cerne da questão seja justamente o fato da própria figura do papa ser desumana. É humano que um homem seja investido de poder infalível e absoluto, de poder divino, se não é uma blasfêmia chamar de “divino” um poder assim? É humano que alguns homens - alguns cardeais varões, sem outro título, a não o de terem sido eleitos pelo papa anterior – confiram tanto poder a outro homem como eles, como nós? Não é muito arriscado, além de anacrônico, para uma Igreja continuar funcionando com tais padrões monárquicos? Não abre caminho para todos os tipos de abusos, arbitrariedades e redes ofuscas em nome de Deus? O problema fundamental é o papado, não o papa.
A figura do papa como monarca absoluto, investido da plenitude da potestade e, além disso, infalível quando se pronuncia como tal, não é uma figura desumana, anti-evangélica e anti-espiritual? O papado é a imagem e o cume de uma Igreja piramidal que responde a tempos passados, quando uma monarquia absoluta era aceitável. Hoje, não é mais. Por conseguinte, não bastará que um papa seja bom, como é o caso do papa Francisco, enquanto não for revogada a figura do papado, ou seja, enquanto não for adotado um modelo autenticamente “eclesial”, comunitário, democrático de Igreja. Um modelo humano. Ou um modelo evangélico.
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“Com Francisco, o ar do Espírito não parou de soprar sobre nós” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU