06 Março 2015
O péssimo desempenho dos alunos na prova de redação do Enem, o desalento dos jovens chamados "nem-nem" (nem trabalham nem estudam) e os altos índices de evasão escolar no ensino médio são exemplos de problemas atuais da educação do jovem brasileiro que têm origem em um mesmo gargalo: a incapacidade das escolas em motivar, atrair e dialogar com os jovens.
A entrevista é de Ligia Guimarães, publicada pelo jornal Valor, 05-03-2015.
A avaliação é de Mozart Neves Ramos, engenheiro químico pernambucano que se tornou especialista em educação e atualmente ocupa o cargo de diretor de articulação e inovação do Instituto Ayrton Senna. "Temos uma escola do século XIX, um professor do século XX e um aluno do século XXI", afirma.
Doutor em química pela Unicamp e reitor da Universidade Federal de Pernambuco entre 1996 e 2003, Mozart tem grande experiência na área educacional. Foi secretário estadual da Educação de Pernambuco e membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), além de diretor-executivo do movimento Todos Pela Educação e presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior.
Em uma de suas aulas, Mozart foi surpreendido quando um estudante usou o celular para acessar a internet e esclarecer ali uma dúvida que ele havia prometido responder apenas na aula seguinte, uma prática bastante comum entre os professores dos tempos pré- Google.
Com o episódio, diz ter aprendido uma lição que vale para todo professor que quiser aprimorar o nível de aprendizado. "A informação hoje não está mais só com o professor. O aluno não vai mais aguentar alguém só falando por uma, duas, três horas, só escutar."
Melhorar o ensino médio com um currículo mais atraente, e que prepare o estudante tanto para sua vocação quanto para cidadania e empreendedorismo, é fundamental para um mercado de trabalho que, cada vez mais, exigirá perfil criativo, inovador e produtivo.
Mozart, que defende que todo dinheiro do pré-sal seja usado para aumentar o salário dos professores, acha que falta mais pressão popular para que as metas do Plano Nacional de Educação saiam do papel. "Vamos chegar ao próximo ano sem ter cumprido nem a meta 1", prevê.
Eis a entrevista.
No Enem 2014, ao todo, 529 mil alunos tiraram zero na prova de redação. O que explica desse desempenho tão ruim?
O problema do ensino médio não começa no ensino médio. Começa, principalmente, nas séries finais do ensino fundamental.
Como resolver?
É preciso que haja um diálogo entre as séries finais e o ensino médio, principalmente nas séries finais de ensino fundamental. As séries iniciais são quase que inteiramente de responsabilidade dos municípios, na larga maioria dos Estados brasileiros. No ensino médio, é exclusiva da esfera estadual. Mas as séries finais, que são estratégicas também para evitar esse desastre no ensino médio, são compartilhadas: parte é dada pela rede estadual, parte pela municipal. Se você não tiver um regime de colaboração entre Estado e municípios para as séries finais de ensino fundamental, você tem eventualmente dois currículos, duas formações que não dialogam. Hoje a gente não tem uma conexão entre as séries finais, quando o aluno termina o nono ano, e o primeiro do ensino médio.
O sr. pode ilustrar essa desconexão?
A grande essência é que nas séries iniciais o aluno tem uma única professora. Lá, o professor sabe o nome do seu aluno e isso influencia tanto a relação, quanto a autoestima do aluno. Quando a criança sai do quinto ano e passa para o sexto ano, ela começa a ter um conjunto de disciplinas, cada uma com um professor. E isso muda substancialmente não só a maneira de estudar, mas de se relacionar. Cada professor agora não vê o aluno individualmente, ele vê a turma que ele ensina. O professor tem várias turmas e cada turma tem vários professores. Essa mudança causa muitas vezes dificuldades pedagógicas e dificuldade de aprendizagem por parte dos estudantes. Tem um caminho que algumas escolas estão fazendo é o de criar o aluno tutor. Aquele aluno que já está na escola em uma etapa mais adiantada, que estuda, que é engajado, que é uma liderança dentro da escola, para acolher estes novos alunos.
O segundo grande problema que a gente tem nas séries finais, para poder alavancar é um currículo que seja atraente para este adolescente. Que trabalhe mais com experimentação, com a questão de projetos, para que possa buscar a curiosidade, a criatividade com base naquilo que ele está estudando, para tornar a aula mais atrativa.
O que é menos atraente no currículo do ensino médio brasileiro, em relação a outros países?
O currículo tem um excesso de disciplinas. O que você vê em alguns países é que não é aquilo que é essencial que o jovem aprenda, tanto para que ele tenha sucesso no acesso à universidade quanto no mundo do trabalho. O que eu defendo é que o nono ano do ensino fundamental e o primeiro do ensino médio sejam o alicerce comum para todos os alunos que estão no ensino médio. Digamos, você quer fazer história. Mas de química, você tem que aprender o PH. Por que o PH é importante? Porque se você falar de água mineral, chuva ácida, tem que entender o PH. Faz parte da vida. Agora, você estudar osmose reversa ou coisas altamente mais especializadas da química, talvez não seja necessário para o aluno que vai fazer humanidades, ou artes, ou saúde. O segundo e o terceiro ano do ensino médio, sim, seriam em função da vocação do aluno. Ampliar mais e focar mais no que vai ser essencial para o futuro dele. E acrescentar também, nesse sentido, outras atividades - e não disciplinas - que poderiam ajudar o jovem. Por exemplo, eu defendo muito a cultura do voluntariado, para que ele seja um jovem cidadão, que tenha sensibilidade. Defendo o empreendedorismo social para o jovem, porque ele começa a ser protagonista de seu próprio negócio, mas que tenha uma vinculação de qualidade do ponto de vista social: incubadoras, startups, que são coisas que o jovem adora fazer e coloca o trabalho em equipe em evidência. O currículo do ensino médio hoje não dialoga com esse mundo juvenil. 40% dos que evadem o fazem por total desmotivação.
Há na educação, atualmente, algum passo no sentido de dialogar com o jovem?
Um dos objetivos do Enem é provocar a interdisciplinaridade no ensino médio, não tanto a decoreba. O Enem procura, de alguma forma, tentar induzir essas mudanças a que estou me referindo. Mas a universidade também deveria mudar a forma como recebe o aluno. Porque se eu mudei o vestibular e agora uso o Enem com essas novas características, o outro lado da ponte para quem fizer essa travessia deveria ser uma outra formatação de oferta de disciplinas. Porque hoje a universidade recebe o aluno do Enem da mesma forma que recebia o do vestibular tradicional, da decoreba, do aplicar fórmulas, sem desenvolver o espírito crítico ou buscar soluções em equipe, que é tão importante para o mundo atual.
A internet e as redes sociais mudaram a relação do aluno com a escola?
Na minha opinião, completamente. Eu costumo dizer que a gente ainda tem uma escola do século XIX, porque a larga maioria das escolas não tem banda larga, laboratórios tecnológicos. Então temos uma escola do século XIX, um professor do século XX e um aluno do século XXI. Quando eu era estudante, eu tinha dois eixos para buscar a informação: o professor ou a biblioteca. Hoje não, só com o meu celular eu posso obter informações que levaria uma semana para saber. Vou dar um exemplo: eu estava dando aula na Federal de Pernambuco, como professor, e deduzi uma equação chamada equação de Kirchhoff, que mede a capacidade dos corpos com a temperatura. Aí um aluno me pergunta: Mozart, esse Kirchhoff é o mesmo da física, que mede a corrente dos circuitos elétricos? E eu disse olha, eu não sei te responder, mas na próxima aula eu trago a resposta. Na mesma hora um aluno diz: Mozart, posso entrar na internet pra ver? E pegou o celular, deu um Google e respondeu o que eu demoraria uma semana para responder. A informação hoje não está mais só com o professor. O professor hoje tem que ser muito mais um papel de tutor, que vai qualificar esse conteúdo que está na rede, ajudar o aluno nessa caminhada. O aluno não vai mais aguentar alguém só falando por uma, duas, três horas, só escutar.
O fenômeno dos jovens 'nem-nem' têm a ver com esse atraso das escolas?
Certamente. Hoje temos 10 milhões de 15 a 29 anos de jovens 'nem-nem'. É uma bomba social de efeito retardado gravíssimo. 10 milhões de jovens em um país que ainda está vivendo seu bônus demográfico, mas logo terá a população mais velha superando a mais nova. E aí a gente vai precisar que esses jovens venham preparados para sustentar a base econômica e social do país.
Qual deve ser o objetivo do ensino médio brasileiro?
O ensino médio tem dois grandes objetivos: ou preparar o jovem para o mundo do ensino superior, ou preparar para o mundo do trabalho. Seja por cursos tecnológicos, profissionais superiores, ou mesmo de ele já sair com uma formação básica que permita a esse jovem ingressar no mundo do trabalho. O ensino médio é uma grande ponte.
Melhorar o ensino médio elevaria a produtividade do trabalhador, considerada gargalo brasileiro?
Sem dúvida. O Brasil vai precisar ter, até o início de 2016, cerca de 7 milhões de jovens preparados para atender às demandas da indústria. E não falo de postos quaisquer, mas de postos de trabalhos vinculados a esse novo mundo da tecnologia. Quando passamos a crise de 2008, não estava faltando emprego. Estava faltando gente preparada para os postos de trabalho. O problema do desemprego ali se acentuou porque a gente não tinha, e ainda não tem, jovens preparados para o mercado de trabalho. É preciso que a escola se reinvente do ponto de vista de preparação do jovem para o mercado. Não é simplesmente mais aquele jovem que vai apertar o botão. É o jovem criativo, inovador, que vai fazer com que o processo industrial seja repensado de forma mais eficiente, ter conhecimento de novas tecnologias. Um dos caminhos que o Brasil deveria levar à discussão é ter, como opção, fazer o ensino técnico nos três anos. Alguns países fazem isso. A Alemanha tem esse caminho e está sempre no topo da competitividade, da produtividade.
O Pronatec é um bom caminho?
O Pronatec tem uma parte de cursos que são interessantes, mas a maioria dos cursos, na minha visão, não dialoga com a cadeia local. O grave problema que eu vejo é o desalinhamento da oferta com a demanda. Para ser mais produtivo deveria ter uma matriz de oferta e demanda verificando onde tem a maior demanda e preparar o jovem para ela. Eu visitei a formatura de agentes comunitários no interior de Sergipe, várias turmas. Eu fiquei pensando, quando esses meninos terminarem, onde eles vão ter emprego? Na prefeitura? As prefeituras não têm nem dinheiro. Ele fez, foi de graça o curso, mas certamente vai ter dificuldade para conseguir uma posição no mercado.
No caso de português e matemática, quais são os principais entraves à melhora do ensino e como reverter?
Em primeiro lugar, ter professores bem formados. E as universidades, em geral, estão muito distantes da realidade do chão de escola. É preciso que a universidade entenda melhor o papel da escola pública. 80% das matrículas estão no ensino público. E com isso formam professores que não estão preparados para esta realidade. Falta mais prática em sala de aula, falta, em português, promover mais a leitura, a redação, a criação. Em matemática faltam professores que possam ensinar de forma prazerosa. O grande problema da matemática é que o lado abstrato é muito fortalecido, quando a gente poderia ter uma matemática que dialogasse muito mais com esse mundo do adolescente, do jovem. Poderiam ter games, brincadeiras. A gente não exercita a inovação no ensino de matemática, isso acaba deixando a disciplina com cara de chata.
Existe a perspectiva de mais recursos para a educação. Qual deve ser o foco do dinheiro?
Eu não tenho a menor dúvida. Para mim não existe futuro para nenhum país sem bons professores. E o Brasil é um país onde não temos o despertar da vontade do jovem em seguir a carreira do magistério. Somente 2% dos jovens que terminam o ensino médio querem seguir a carreira do magistério, e em geral são os jovens de baixa renda, que veem nas licenciaturas o caminho mais fácil de ingressar no ensino superior, já que as notas de acesso às licenciaturas são bem inferiores aos cursos mais procurados no mercado de trabalho. Eu colocaria esses recursos previstos no Plano Nacional de Educação essencialmente na atratividade da carreira do magistério. Atrair jovens, o que significa: ter um salário compatível com o de outras áreas. Em média, no Brasil, um professor ganha 40% menos que profissionais com a mesma titulação. Por isso que eu colocaria essencialmente o dinheiro do petróleo nas metas 17 e 18 do PNE, que tratam do salário e da carreira.
Como estamos em relação às metas do PNE?
Eu acho que se não houver uma pressão social e uma responsabilização maior, de definir responsáveis pelo atingimento dessas metas, podemos correr o risco de chegar 2024 e... se não alcançarmos as metas, quem vai pagar o pato, quem responde por isso? Precisamos dar responsabilização. A própria meta 1, a primeira meta. Algumas metas do PNE são para 2016 por uma questão constitucional. Em 2009 quando a gente retirou a educação da Desvinculação de Receitas da União (DRU), colocou R$ 9 bilhões a mais na educação. A contrapartida é que os Estados e Municípios usassem o dinheiro para universalizar a oferta de 4 a 17 anos até 2016. Se a gente olhar hoje o brasil está com taxa de matrícula na pré-escola de 82%. Ou seja, nós não vamos universalizar e nem chegar ao próximo ano com a meta 1 cumprida. Eu entendo que o problema é pressão social, de definir quem é o responsável pelo cumprimento dessas metas. Para que não vire uma carta de intenções.
O que é preciso priorizar na educação em 2015?
O plano foi homologado em 2014. 2015 é o ano em que precisamos botar energia para que o plano saia do papel em plano nacional.
E ainda é um ano de ajuste fiscal....
É um ano horrível, em todos os aspectos. É um ano em que vamos precisar colocar de fato o PNE nos trilhos, fazer com que Estados e Municípios até junho de 2015, que é quando completa um ano previsto no PNE, tenham ou os seus novos planos ou as adequações dos atuais ao novo Plano Nacional de Educação.
O sr. vê alguma movimentação acontecendo?
Sinto que houve uma paralisação. A gente não está vendo mais tanta mobilização em torno do tema do PNE, talvez porque o próprio governo já vendo o desastre de não atingir as metas, talvez não esteja mobilizando tanto quanto deveria.
A presidente Dilma começou o novo mandato com o lema 'Brasil, Pátria Educadora'...
Para mim, ser Pátria Educadora é colocar a educação como prioridade. Deixar como legado um país sem corrupção, justo, e de mesmas oportunidades independentemente se o jovem mora no Norte ou no Sul do Brasil, seja filho de família rica ou de baixa renda, branco ou negro. É uma pátria que dá oportunidades iguais a partir de uma boa educação.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Escola 'do século XIX' não consegue atrair jovens - Instituto Humanitas Unisinos - IHU