06 Março 2015
O grande desafio trazido pelo extremismo religioso para o rosto racional e razoável do cristianismo não é apenas intelectual. É também um desafio para o lado institucional do cristianismo e do catolicismo em particular.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio Global Pulse, 04-03-2015. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Eis o texto.
A eleição de um papa latino-americano - o primeiro fora da zona euro-mediterrânica - está obrigada a deixar uma marca significativa na evolução da história da Igreja, bem como na geopolítica do catolicismo.
O Papa Francisco não é apenas o primeiro papa na época contemporânea a ser eleito de um país fora da Europa, ele também é o primeiro a vir de um país de fora da zona da Otan, um alinhamento do histórico catolicismo ocidental que foi um dos traços característicos da política internacional após a Segunda Guerra Mundial.
A eleição do papa argentino em 2013 marca assim o fim definitivo de um certo tipo de mapa do mundo geopolítico e georreligioso que definiu a Guerra Fria, incluindo o papado. Desde o fim da Guerra Fria não houve surgimento de uma "nova ordem mundial", mas uma desordem das regiões, em que a religião desempenha um papel político importante. Isso teve efeito imediato sobre o atual pontificado e terá consequências ainda maiores a longo prazo para a Igreja Católica.
Francisco se afastou de Bento XVI, colocando uma ênfase renovada na diplomacia do Vaticano. Ele tem dado muito mais destaque ao papel diplomático do Secretário de Estado. Mas não está claro como o titular de cargo atual, cardeal Pietro Parolin, será capaz de deter as crescentes pressões para alterar a tradição diplomática da Igreja Católica.
Em primeiro lugar, há a questão de saber se a Secretaria de Estado deve estar situada dentro ou acima da Cúria Romana. Essa é uma questão que o papa e seus cardeais assessores (C9) continuam discutindo, ao mesmo tempo em que analisam os planos de reformar o governo central da Igreja Católica. Desde que a Secretaria de Estado foi criada no século XVII - um desenvolvimento funcional do "Cardeal Sobrinho" (cardinalis nepos), que governava o Estado eclesiástico -, o secretário de Estado tem desempenhado um papel diferente em cada pontificado.
O Papa Francisco tem consideravelmente menos experiência internacional ou romana do que qualquer um de seus antecessores do século XX. Mas a nomeação de um qualificado diplomata do Vaticano como Pietro Parolin para chefiar a Secretaria de Estado mostra que o papa quer que esse departamento e a diplomacia vaticana sejam um dos principais temas de seu pontificado.
Podemos comparar isso com a seleção de Bento XVI de um não diplomata e amigo pessoal, o cardeal Tarcisio Bertone, SDB, que se concentrou mais em assuntos internos da Igreja, quando era secretário de Estado. Isso, também, foi uma ruptura com o padrão do longo pontificado do papa "político", João Paulo II, que limitou seus secretários de Estado a lidar principalmente com assuntos internacionais da Santa Sé e deu-lhes muito menos peso em outros assuntos da Igreja.
Como o cardeal Parolin é muito próximo de Francisco, será interessante ver como o seu papel e as suas funções serão definidas na arquitetura final da nova Cúria Romana que o papa e seu corpo consultivo (C9) estão desenvolvendo.
Em segundo lugar, a universalmente reconhecida proeza da Secretaria de Estado do Vaticano na área da diplomacia é um dos maiores bens que fazem da Igreja Católica Romana um ator global. Especialmente em situações de guerra e conflito, é difícil de igualar as habilidades de coleta de informações feita pelo pessoal da Igreja, competências que foram aperfeiçoadas por meio da diplomacia do Vaticano ao longo do segundo milênio.
Se a lógica das autoridades dos Estados Unidos nos serviços estrangeiros é, geralmente, a de realocar seu pessoal a cada dois anos, dizendo "você não se torna um local", a lógica da Igreja é exatamente oposta. Os diplomatas papais, e especialmente o pessoal da Igreja em comunidades locais, operam a partir da mentalidade de que "você se torna um local". É um outro aspecto da inculturação teológica que estava em jogo no acordo alcançado entre os Estados Unidos e Cuba há algumas semanas, em parte graças à mediação da Igreja Católica.
Mas uma Igreja mais global significa também uma crise do que eu chamaria de "universalismo católico", com o surgimento de um catolicismo que é mais dividido pelas fronteiras entre países e continentes (questões morais, economia, meio ambiente etc.). E isso representa um desafio para o futuro da diplomacia vaticana.
Não é apenas o declínio da qualidade do pessoal diplomático do Vaticano (basta olhar para algumas das coisas negativas que o núncio apostólico na Ucrânia está tuitando sobre seu chefe, o Papa Francisco). É também o fato de que um número crescente de pessoas nessa Igreja com mais de um bilhão de católicos não consegue ver a lógica de ter um serviço diplomático para a Igreja. Obviamente, o papel importante que os núncios papais têm na nomeação dos bispos locais também contribui para a impopularidade da diplomacia do Vaticano hoje.
Mas, de um modo mais geral, há uma convergência das poucas forças remanescentes de uma certa teologia radical, antipolítica, pós-Vaticano II com uma cultura antipolítica, pós-moderna, que rejeita as formas clássicas de atividade política e de suas instituições.
E isso nos leva ao terceiro ponto, mais desafiador - o papel internacional da Igreja Católica em uma época de extremismo religioso, como evidenciado por grupos como a Al-Qaeda, Estado Islâmico e Boko Haram.
O período entre a Segunda Guerra Mundial e o fim da Guerra Fria foi a época de ouro da diplomacia vaticana. Foi um período em que, diante da perspectiva de uma destruição mútua assegurada (mutually assured destruction - MAD) via uma guerra termonuclear global, o último ato de fé era acreditar que, no fim, "cabeças mais frias prevaleceriam". Isso, claro, é o que Dean Acheson supostamente aconselhou o presidente John F. Kennedy, em um dos momentos mais dramáticos durante os 13 dias da crise dos mísseis de Cuba em outubro de 1962, apenas alguns dias depois da abertura do Concílio Vaticano II. Esse período de políticos racionais, em comparação com a selvageria dos grupos extremistas acima mencionados, parece pertencer a um passado muito distante e a uma era completamente diferente. "Cabeças frias" e a violência perpetrada por extremistas religiosos parecem ser polos opostos.
"Parte do que tem acontecido em nosso tempo é que Deus mudou de lado, do lado da civilização para o lado da barbárie", escreveu o teórico literário britânico, Terry Eagleton, em um artigo de 2009, na revista Commonweal. Mas o grande desafio trazido pelo extremismo religioso para o rosto racional e razoável do cristianismo não é apenas intelectual. É também um desafio para o lado institucional do cristianismo e do catolicismo em particular.
Olhando para o que está acontecendo atualmente com os muçulmanos, cristãos e outras minorias religiosas no Iraque, Síria, Líbia e África Central, é difícil ver a eficácia da diplomacia internacional - especialmente a atividade diplomática da Igreja Católica. Mas eu acredito que a diplomacia do Vaticano ainda pode dar uma contribuição importante para a paz e a estabilidade no mundo, apesar das questões remanescentes relativas à lógica por trás do envolvimento da Igreja nessa atividade particular (e distintamente católica).
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Diplomacia do Vaticano na era do extremismo religioso. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU