09 Dezembro 2014
"É uma boa nova para a nossa Igreja contemporânea reconhecer o equilíbrio de gênero bem no centro de nossa tradição católica. O Espírito Santo de Deus, a trabalho ao longo da história, seja nas mulheres ou nos homens, traz libertação, compaixão e justiça a um mundo à espera", escreve Christine Schenk, irmã da Congregação de São José, trabalhou como parteira antes de cofundar o projeto Future Church, em artigo publicado pelo National Catholic Reporter, 04-12-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Eu gosto do Advento. Ele é um momento tão esperançoso e consolador para os que anseiam ver os valores de Deus plenamente realizados “aqui na Terra como no céu”, como Jesus ensinou.
Este tempo é o do profeta Isaías, cujas proclamações permeiam as nossas liturgias e cujos escritos inspiraram tanto a Jesus quanto São Paulo. É aí que renovamos a nossa crença num Deus que traz “boas novas aos pobres, liberdade aos presos e que faz brotar justiça e louvor na presença de todas as nações” (Isaías 61).
Acima de tudo, encontramo-nos num momento muito especial de esperança profética que remonta a mais de 2500 anos.
Recentemente, fiquei feliz em descobrir que profetisas e escribas mulheres ajudaram a modelar a tradição de Isaías de forma importantíssima nos primórdios do cristianismo. O livro da pastora episcopal Wilda Gafney – intitulado “Daughters of Miriam” [Filhas de Miriam] – descobre o fato de que, no antigo Israel, as escolas proféticas e guildas [ou associações] de escribas eram compostas tanto por homens quanto por mulheres. Estes grupos formados por ambos os gêneros produziram os escritos proféticos atribuídos a Isaías e a muitas outras figuras proféticas. O estudo doutoral de Gafney sobre a profecia antiga e o seu vocabulário técnico tem sido considerado como o início de um novo capítulo dos estudos de gênero e bíblicos.
Dado que o Novo Testamento cita ou alude ao Livro de Isaías mais de 300 vezes, não é exagero dizer que os motivos fundantes do cristianismo surgem a partir dos ministérios proféticos tanto de homens quanto de mulheres. Por exemplo, São Paulo cita Isaías mais do que qualquer outra fonte do Antigo Testamento, e Jesus lê Isaías 61 na inauguração de sua própria missão: “O espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lucas 4, 18-22).
Então, como é que não sabíamos a respeito das profetisas em nossa tradição judaico-cristã até este momento? Infelizmente, os nomes de quase todas as profetas mulheres, seja na tradição hebraica ou na cristã, se perderam. Os estudiosos acreditam que as mulheres estavam muito mais presentes em todas as sociedades antigas do que os escritos que temos, hoje, indicam. Só quatro mulheres nomeadas são identificadas como profetas nas escrituras hebraicas: Miriam, Débora, Hulda e Noadia. No entanto, as profetisas inominadas somavam, provavelmente, dezenas de milhares.
Como em inglês, o plural masculino em hebraico bíblico pode significar somente homens ou tanto homens quanto mulheres, tornando difícil discernir a presença das mulheres nos registros bíblicos. Esta situação agrava-se com os preconceitos androcêntricos que assolam todos os escritos históricos e suas interpretações, até mesmo nos dias de hoje. Um bom exemplo pode ser encontrado em Ezra 2,55 e em Neemias 7,57, que descrevem uma guilda escribal retornando a Israel depois do exílio babilônico. Os textos nomeiam os membros da guila como descendentes/discípulos de um Hassophereth (literalmente, a escriba mulher) que viveu na época de Salomão. Apenas os sacerdotes estavam acima dos escribas na hierarquia salomônica.
Esta escriba era a segunda pessoa mais importante no tribunal do rei Salomão. A guilda dela, que provavelmente era composta de homens e mulheres, continuaria existindo por, pelo menos, 500 anos. No entanto, a escriba iria cair no esquecimento porque os intérpretes transliteraram, inexplicavelmente, Hassophereth de forma fonética, como um nome próprio, em vez de traduzir a partícula hebraica feminina singular “ha” (desinência de gênero) precisamente como “a escriba”. Gafney atribui este fato a um preconceito de gênero.
Então, o que é um profeta? Na sua forma mais simples, os profetas bíblicos são os homens e mulheres que proclamam mensagens vindas de Deus para o bem do seu povo. Todos têm em comum a capacidade de pregar com poder em tempos de crise religiosa. As proclamações deles e delas frequentemente eram precedidas pela fórmula profética: “Assim diz YHWH” [Assim diz Javé]. Frases deste tipo ressoam ainda hoje na missa católica, quando na conclusão das leituras o leitor ou o padre proclama: “Palavra do Senhor”.
A principal preocupação dos profetas não era com o futuro, mas com a situação histórica presente e o desafio que ela trazia à fé do povo de Deus.
Isaías histórico de Jerusalém enxergou claramente a iminente destruição de Israel e ficou preocupado em ajudar o seu povo a, simultaneamente, se preparar e se preservar – apesar da aniquilação virtual. O Primeiro Isaías (1-39) nos diz que concebeu dois filhos com uma profetisa (Isaías 8,1). Às crianças foram dados nomes proféticos: “Pronto-saque-rápida-pilhagem” e “O resto voltará”, como presságios do que se abateria sobre Israel. A profetisa e seus filhos se tornam parte de uma comunidade restante junto de Isaías e seus discípulos. A partir daqui, uma “escola de Isaías” iria surgir, iria ministrar a pessoas que haviam se exilado e que, finalmente, voltaram ao povo de Israel por, pelo menos, os próximos dois séculos.
Segundo Isaías (40-55) foi criado durante a última parte do exílio babilônico (cerca de 539), mais provavelmente por um grupo de profetas e profetisas, escribas e editores da escola de Isaías. O Terceiro Isaías foi criado depois que Ciro, o rei da Pérsia, derrotou os babilônios e permitiu que os hebreus exilados retornassem à sua terra natal.
Tanto o Segundo quanto o Terceiro Isaías são famosos pelo uso que fazem do imaginário maternal relativo a Deus e a Jerusalém. O Segundo Isaías compara Deus a uma mulher em trabalho de parto, uma mãe que amamenta e que dá conforto a seus filhos (Isaías 42,14; Isaías 45,10, 49,15; Isaías 66,13). Em Isaías 51, Sara é chamada, junto de Abraão, como a progenitora de Israel. O Terceiro Isaías enfatiza um Deus bondoso com cuidados maternais. Em Isaías 66, lemos: “Alegrem-se com Jerusalém, façam festa com ela, e todos os que a amam. Assim poderão amamentar-se nela até ficarem satisfeitos com a consolação que ela tem (...) Como a mãe consola o seu filho, assim eu vou consolar vocês”.
A mensagem de conforto que os profetas de Isaías trouxeram ao seu povo sofredor era a de que Deus jamais iria abandoná-lo. Pelo contrário, como uma mãe, ele o acompanharia e consolaria até mesmo em meio à perseguição e ao exílio.
Não é de se admirar que a comunidade judaica de Jesus gostava tanto de ler Isaías no momento de oração na sinagoga. Jesus mesmo iria seguir as pegadas de uma longa linhagem dos profetas hebraicos, tanto homens quanto mulheres, encarnando uma nova “Palavra do Senhor”, apontando para a santidade e compaixão de Deus em seu desafio às estruturas religiosas e civis injustas.
Dada a importância dos escritos proféticos para Jesus e Israel, é fácil ver por que a profecia era extremamente importante no movimento inicial de Jesus. As líderes profetisas desempenharam um importante papel junto de seus irmãos na orientação e construção das comunidades primeiras. Eusébio, historiador da Igreja, associa as quatro filhas proféticas de Filipe (Atos 21,9-10) às origens apostólicas das igrejas provinciais da Ásia Menor. Segundo São Paulo, os profetas ficam atrás somente dos apóstolos no exercício da liderança espiritual. Ele cuidadosamente instrui as profetisas em Corinto a cobrir suas cabeças enquanto profetizam, provavelmente para diferenciarem o seu ministério de seitas não cristãs (1 Coríntios 11-12). Ele não lhes falou para parar de pregar e de profetizar a palavra de Deus no culto.
É uma boa nova para a nossa Igreja contemporânea reconhecer o equilíbrio de gênero bem no centro de nossa tradição católica. O Espírito Santo de Deus, a trabalho ao longo da história, seja nas mulheres ou nos homens, traz libertação, compaixão e justiça a um mundo à espera.
Na qualidade de discípulos e discípulas de Jesus, somos chamados a testemunhar com nossas vidas o que a sua mãe, Maria, na esteira de Miriam, primeiro proclamou: “E sua misericórdia chega aos que o temem, de geração em geração (...) Ele realiza proezas com seu braço; dispensa os soberbos de coração (...) e eleva os humildes (...) conforme [Deus] prometera aos nossos pais a Abração [e Sara], e de sua descendência, para sempre” (Lucas 1,46-55).
Que neste Advento, sigamos Isaías e Maria na elevação dos humildes e no fazer “brotar justiça e louvor na presença de todas as nações”.
Nota da autora: Este artigo contém excertos de um ensaio especial intitulado “Your Daughters and Sons Shall Prophesy” que escrevi para o site futurechurch.org, na seção intitulada Restoring the Women of Advent. O material que se contra na seção citada foi pensado para fortalecer a observância do Advento e da época de Natal em sua comunidade de fé.
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Revelando o equilíbrio de gênero no coração da nossa tradição católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU