14 Dezembro 2014
“O Marquês de Pombal é, em certa medida, inventor do Brasil”, diz o historiador.
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Durante os quase 90 anos de sua vida, o padre Antônio Vieira viveu entre a selva e a corte. Muitas são suas facetas conhecidas e complementares: amigos de nobres e conselheiro de reis, aventureiro missionário e inimigo da Inquisição, defensor dos índios e opositor dos colonos. Frequentador dos palcos mais prestigiados da Europa e dos terrenos mais inóspitos da terra brasilis, Vieira pôde lidar com a experiência humana em toda sua diversidade – defende o pesquisador português José Eduardo Franco. E sugere: “Por sua extraordinária e fascinante vida, costumo dizer que Vieira era um Indiana Jones das missões”.
Franco é coordenador de um massivo projeto editorial português – o mais arrojado das últimas décadas: a publicação das obras completas, inclusive inéditas, do jesuíta português. São trinta volumes que totalizam quase 15 mil páginas, lançados entre fevereiro de 2013 e setembro de 2014. Entre escritos epistelográficos, proféticos, sermões e textos políticos, Vieira cobriu uma vasta gama de preocupações que iam desde os sentimentos humanos, a religião e o próprio destino da humanidade – na obra História do Futuro.
“Vieira imaginou um futuro de paz. Um mundo onde os diferentes povos e culturas pudessem conviver de forma pacífica e harmoniosa, com respeito pelos diferentes rituais sociais e pelas formas de os estados atuarem, se governarem e até exprimirem sua fé”, relata Franco. “Essa é a utopia que ficou conhecida como o Quinto Império; uma utopia que podemos classificar de protoecumênica.”
O professor concedeu entrevista pessoalmente à IHU On-Line durante sua passagem à Unisinos pela participação no XVI Simpósio Internacional IHU - Companhia de Jesus. Da supressão à restauração. Nela, discute toda a atualidade e vitalidade do pensamento do jesuíta português que, para ele, é fundamental para compreender a formação do próprio Brasil.
José Eduardo Franco é historiador, poeta e ensaísta especializado em História da Cultura. Possui doutorado em História e Civilização pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e em Cultura pela Universidade de Aveiro. Professor do Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, ele coordena atualmente um vasto projeto de pesquisa, levantamento e edição dos Documentos sobre a História da Expansão Portuguesa, existentes no Arquivo Secreto do Vaticano. É também membro da comissão coordenadora do projeto da edição crítica da Obra Completa do Padre Manuel Antunes.
Franco é autor de diversas publicações, das quais destacamos: O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil, no Oriente e na Europa (Lisboa: Gradiva, 2007), Vieira e as mulheres: Uma visão barroca do universo feminino (Porto: Campo das Letras, 2007) e Jesuítas e a Inquisição: cumplicidades e confrontações (Lisboa: Aletheia, 2007).
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Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quem foi o Padre Antônio Vieira e qual a sua importância para as atividades da Companhia no Brasil?
José Eduardo Franco - Antônio Vieira, como sabemos, é uma das figuras maiores da história literária política, cultural e religiosa de Portugal e do Brasil. Ele viveu, praticamente, metade da vida em Portugal e metade no Brasil; nasceu em Portugal, mas formou-se na Companhia de Jesus no Brasil. Ele, como homem do século XVII, grande viajante e missionário, viveu entre a selva e a corte. Experimentou os espaços mais inóspitos, as selvas amazônicas, foi ameaçado de morte, de doenças, etc., assim como experimentou como diplomata e conselheiro político os palcos mais prestigiados da Europa. Grande defensor dos índios, foi também amigo dos reis, dos papas, dos cardeais, lidando com a experiência humana em toda sua diversidade e diferentes expressões. Isso lhe dava uma dimensão de universalidade extraordinária.
Ele é importante para Portugal e para o Brasil, primeiramente, por ter sido um mestre da língua portuguesa. Fernando Pessoa, inclusive, o elevou à categoria de “Imperador da Língua Portuguesa” no livro A Mensagem, de 1934. Para ele, Vieira era mais do que um grande escritor, mas um artista da língua. Ainda hoje, Vieira é lido e admirado pela forma bela e artística com a qual escreve, continuando a constituir uma escola do bem falar e do bem escrever.
Figuras insuspeitas como José Saramago já confessaram que costumavam ler Vieira antes de escrever seus romances para se banhar nas águas cristalinas e puras de nosso idioma. Saramago, inclusive, dizia que nunca a língua portuguesa foi tão bela como quando foi escrita pelo jesuíta. Eu também gosto de ler Vieira antes de escrever, porque ele usou a língua não apenas com grande perfeição, mas porque sua forma de escrever traduzia pensamentos profundos, complexos e que ainda hoje nos aguçam a reflexão e a imaginação. Ele fez a língua dizer o pensamento humano de uma forma complexa e bela.
Pensamento
Vieira não é importante apenas pelo primor no idioma, mas também pela atualidade do seu pensamento. Por sua extraordinária e fascinante vida, costumo dizer que Vieira era um Indiana Jones das missões. Construindo missões em lugares inóspitos, estando ao lado dos índios contra os colonos, defendendo a abolição da escravatura, a humanização do trabalho escravo... Era um homem aventureiro e corajoso, mas que também, devido à forma como pregava, conseguia encantar e tornar-se amigo da realeza. Vieira tornou-se pregador do rei Dom João IV, encantou a rainha Cristina da Suécia e foi absolvido pelo papa Clemente X, que o isentou dos ataques da Inquisição. Era um homem de palavra tão sedutora que os grandes reis da época procuravam seu conselho e ouviam seus sermões. Chegou a ser até mesmo embaixador de Portugal. Portanto, Vieira foi um missionário, mas também alguém que se envolveu com a causa e no projeto político português.
Ao mesmo tempo, foi alguém que produziu e se preocupou com aquilo que era de seu tempo, de sua época, em um período de grande conflito entre as potências europeias. Um tempo onde se vivia uma espécie de proto-Primeira Guerra Mundial. Isto porque as potências modernas e mundiais, Portugal, Espanha, Holanda, Inglaterra e França - que tinham aquela tradição de conflitos e guerras na Europa -, projetaram esses conflitos em nível mundial. Assim, holandeses e portugueses começaram a digladiar-se no Brasil, como os espanhóis e outros estados europeus projetaram os seus conflitos internos na Europa para a África e para o Oriente, etc.
Vieira estava preocupado com o destino da humanidade, e também se preocupava muito com o destino do Cristianismo devido ao avanço do Protestantismo. Assim, pensando o destino de Portugal, da Europa e do mundo, escreveu uma obra com um título absolutamente pioneiro para a época: História do Futuro. Nele, propôs uma solução para a humanidade em perspectiva cristã. Imaginou um futuro de paz, onde a sociedade compartilhasse os valores do evangelho. Um mundo onde os diferentes povos e culturas pudessem conviver de forma pacífica e harmoniosa, com respeito pelos diferentes rituais sociais e pelas formas de os estados atuarem, se governarem e até exprimirem sua fé. Claro, uma fé orientada para Cristo, mas com a possibilidade de haver várias especificidades e rituais diferenciados, sempre numa perspectiva integradora. Essa a utopia que ficou conhecida como o Quinto Império; uma utopia que podemos classificar de protoecumênica.
Foi ainda um grande defensor dos judeus e, nesse sentido, combateu e criticou a Inquisição, sendo também por isso preso e perseguido por ela. No entanto, consegue, entre 1674 e 1681, um Breve do papa para suspender a Inquisição em Portugal. Ao mesmo tempo, Vieira antecipou reformas que figuras como Marquês de Pombal haveriam de implantar só no século seguinte.
Direitos Humanos
O jesuíta é ainda um precursor de uma reflexão que antecipa aspectos patentes na proclamação formal dos Direitos humanos no século seguinte, desenvolvendo sermões extraordinários de crítica à forma como se tratavam os escravos, defendendo a humanização e respeito dos escravos – que eram tratados como animais, não como humanos e cristãos.
Vieira enfrentou os senhores de engenho e das terras em favor dessa humanização. Por outro lado, em sermões como o do Bom Ladrão, igualmente extraordinário, Vieira critica durante as estruturas de corrupção sistemática, as hoje chamadas Estruturas de Pecado. Este sermão vai defender que era preciso combater uma doença que acometia o império português e invariavelmente o Brasil e a zona do Maranhão: a corrupção.
Quem exercia os cargos de governo e administração, ao invés de pensar em servir o bem comum, preocupava-se em servir a si próprio, o que gerava um ciclo de corrupção sistemática que era a grande doença, a grande chaga que impedia que Portugal progredisse. Por isso ele aconselha o rei de Portugal a repensar a forma como nomeia os responsáveis por cargos públicos (governadores, administradores, etc). Dizia que as nomeações não deviam ser feitas em razão ao pertencimento a determinado grupo ou família, mas em função do mérito. Para Vieira, os ofícios não eram feitos para os homens, mas os homens para os ofícios. É o que chamo de uma filosofia avant la lettre da ação e do empreendedorismo. Em Vieira a verdadeira fidalguia está na ação. Dizer isso no século XVII era extraordinário, pois reflete ainda sobre a importância de nossa ação frente ao imobilismo e à apatia. É uma ontologia da ação, que dá sentido, valor e substância à vida humana, tentando desafiar os homens do seu tempo a serem transformadores. Dizia Vieira: “Só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos apenas duramos”.
Algo que vem do debate moderno contra o protestantismo é a questão das obras e o debate em torno da justificação pelas obras ou, ao invés, somente pela graça divina. Ele dizia: “Para falar ao vento bastam palavras, para falar ao coração são necessárias obras”. O que move os corações são as obras, o exemplo, e, portanto, a importância do obrar, realizar, transformar. Era isso que dava valor à vida humana. Ele, como homem, foi um homem da ação. Viveu quase 90 anos, quase todo o século XVII e, até morrer, esteve sempre a agir, a transformar. Aqui uma sintonia com o chamado Cristianismo da ação.
IHU On-Line - No Brasil a Companhia quebra entre Vieiristas e Alexandristas , a partir de uma perspectiva oposta sobre o modo de se tratar os escravos. Quais eram os pontos divergentes?
“A verdadeira fidalguia é ação”
José Eduardo Franco - Isso tem a ver com a história interna da Companhia de Jesus no fim do século XVII, já no final da vida de Vieira. O que se passou foi que a Companhia, ao chegar em diferentes territórios, enviava missionários europeus para criar as estruturas eclesiais no local. Entretanto, pouco a pouco passou-se a formar jesuítas nascidos no próprio país. Assim, aqueles jesuítas que já eram brasileiros iniciaram o que eu chamaria de uma disputa protonacionalizante, em que os nascidos aqui nesta terra buscaram tomar o controle da Companhia. Havia ainda um entendimento diferente da forma de lidar com os indígenas e colonos. Houve setores da Companhia que ficaram mais comprometidos com a estratégia colonial, com os bandeirantes, enquanto Vieira vinha de uma tradição de resistência a esta ideia de usar os escravos como peças, como mercadoria e não como pessoas. Como Vieira era um humanista, com uma formação na linha da matriz renascentista, ele reagiu a essa incidência. Mas então ele já era muito velho, tinha quase 90 anos, e nem tinha mais tanto poder político na colônia. Acabou por ser marginalizado, embora tenha resistido até o fim. Interessante notar que, por fim, o Geral da Companhia, na época, acabaria por lhe dar razão. No entanto, a carta final com a sua absolvição chegou quando ele já havia morrido. Vieira acabou por vencer post-mortem. Essa polêmica mostra que a Companhia, em alguns aspetos, não era uma só, e agia a partir de percepções diversas dos problemas. Na minha perspectiva, Vieira representava uma visão mais ousada e humanizante, ainda que ele próprio seja marcado por suas contradições.
Vieira, embora fosse um idealista do ponto de vista teórico, que acreditava no poder transformador do evangelho, era também um realista. Assim, ainda que defendesse a liberdade dos índios – e percebendo que economia da colônia era baseada no trabalho escravo –, reconhecia que Portugal não poderia ser o primeiro país a abrir mão desta mão de obra, pois perderia vantagem economicamente ante as demais potências. Vieira percebeu que não era possível continuar a sustentar um projeto político português e uma economia coesa no contexto da dinâmica colonial portuguesa sem contar com o trabalho escravo, mas defendeu a proclamação da liberdade de determinados segmentos de escravatura. Ele tinha muito afeto pelos seus índios e defendeu sua liberdade, pois julgava que eles estavam ligados a esse território, já possuíam seus direitos próprios e apresentavam uma condição física diferente dos escravos africanos.
Ainda assim, defendendo a manutenção da escravidão africana, propôs a humanização desse trabalho. É a chamada via do mal menor, que é bem tomista. Naquela época, de acordo com a hierarquia de valores, se valorizava mais a salvação da alma do que do corpo. Assim, o fato de se trazer os escravos da África fazia com que eles pudessem conhecer o evangelho, se tornar cristãos e aceder aos bens salvíficos dispensados através da Igreja. Se a escravidão do corpo preservava a salvação da alma, se privilegiava a alma.
IHU On-Line - De que forma acredita que é preciso compreender o Brasil para entender Portugal?
José Eduardo Franco - Para compreendermos Portugal do século XIX é absolutamente fundamental levarmos em conta a relação com o Brasil. Aliás, se Portugal se viabilizou na segunda metade do século XVII e depois durante o século XVIII, deve-se ao fato de ter se voltado para o Brasil. No século XVII, no contexto da expansão portuguesa, a grande fonte de rendimento de Portugal era o Oriente, com as especiarias, um pouco dos seus territórios na África, mas a partir da segunda metade do século XVII e XVIII o Brasil foi a grande fonte que permitiu que Portugal se mantivesse um país viável e sustentável, com algum prestígio internacional. No princípio o Brasil era um território imenso, com alguns recursos – como a madeira –, mas não era o El Dorado que se imaginava. Alguns até o desconsideravam. Só mais tarde, com a descoberta de ouro e diamantes, o Brasil se confirmaria como o território colonial mais importante e decisivo. De tal modo que sabemos que no século XIX, com a vinda da corte do rei Dom João VI para o Rio de Janeiro, Portugal foi a única potência europeia que foi capaz, para sobreviver, de deslocar o seu centro de poder para uma colônia sua. A Inglaterra não fez isso, a Espanha não fez o mesmo com as invasões napoleônicas, mas Portugal sim.
Essa solução não é nova, já vinha do século XVII. Neste período, o Padre Antônio Vieira, curiosamente, já havia antecipado uma série de medidas – e esta foi uma delas. Este era um século de crise, de restauração, de emergência dos Holandeses como grande potência ameaçando invadir Lisboa... Frente a estes desafios, Vieira propôs que eventualmente se deslocasse a capital da metrópole e da corte para o Brasil. Isso chegou a acontecer, mas apenas mais tarde, em 1808. Vieira antecipou em cerca de 150 anos o que de fato aconteceria. De tal modo que em 1815, o futuro rei Dom João VI criou uma estrutura política inédita: o Reino Unido de Brasil, Portugal e Angola – que englobava ainda outros estados ultramarinos portugueses, como Cabo Verde e Angola, na África e alguns da Ásia. Um território imenso e, se tivesse continuado, seríamos uma potência extraordinária. Foi uma ideia fantástica, quase utópica, mas foi concretizada durante sete anos até a independência.
IHU On-Line - Por que Vieira pode ser compreendido como um precursor de Pombal?
José Eduardo Franco - Vieira defendeu um conjunto de medidas, no contexto das reformas sociais, políticas e econômicas, capazes de fazer com que o império Português se tornasse viável e fizesse frente à Espanha e às demais potências emergentes, nomeadamente a Inglaterra. Para tanto, propõe reformas em vários níveis: propôs a criação de companhias monopolistas, propôs a reforma da Inquisição, propôs o regresso dos judeus expulsos e propôs o fim da distinção entre cristãos velhos e cristãos novos – uma divisão que ele considerava injusta e imprópria para uma sociedade cristã. Os cristãos novos, judeus e muçulmanos convertidos ao cristianismo, não tinham acesso aos mesmos privilégios e cargos que os cristãos velhos. Vieira propôs abolir essa distinção, como também uma reforma que humanizasse mais a inquisição, a liberdade dos negros, enfim, um conjunto de medidas que mais tarde figuras do Iluminismo como Pombal vão implantar.
Antissemitismo
Pombal já na década de 1750 investe na criação de companhias monopolistas, como Vieira havia proposto; em 1773, vai abolir o termo de distinção entre cristãos velhos e novos e o fim dos atestados de limpeza de sangue; em 1774, edita o regimento pombalino da inquisição, onde incorpora diversas ideias reformistas de Vieira. Pombal era também contra toda a corrente antijudaica, e protege os judeus. Da mesma forma, Vieira, no século anterior, defendia que Portugal havia cometido um erro histórico: expulsar uma elite extraordinariamente empreendedora. Os descobrimentos, as viagens marítimas, a expansão portuguesa, tudo isso teve grande envolvimento de judeus, pois eram ligados aos processos de construção naval, do comércio, etc. Para Vieira, Portugal começou a decair a partir da expulsão desta elite, e outros impérios como a Holanda, para onde os judeus foram, começaram a crescer com sua chegada.
Vieira defendia que se criassem condições para possibilitar o regresso dos judeus, pois isso seria fundamental para recuperar essa elite empreendedora e colocá-la a serviço da recuperação do reino de Portugal. Claro que na época Vieira foi acusado de ser amigo dos judeus, e mesmo que o Rei tenha tentado criar condições para isso, todo o trabalho foi boicotado pela Inquisição. Essas ideias reformistas são postas em prática apenas na segunda metade do século seguinte, 100 anos depois, pelo Marquês de Pombal. Por isso dizemos que Vieira é um precursor de Pombal, o que é extraordinário.
IHU On-Line - De que forma Pombal ajuda a entender a história brasileira e portuguesa?
José Eduardo Franco – Pombal, para Portugal, é importante por ser o criador do Estado moderno – burocrático, centralizado e hipercontrolador, com representantes do Estado para todo o lado. Da mesma forma ele o faz no Brasil, acabando, por exemplo, com o monopólio dos missionários, que tinham direito temporal e espiritual sobre os índios, e coloca agentes do estado para controlar o território. Era sua preocupação garantir a soberania total do território que é um dos fundamentos da afirmação do Estado moderno, criando uma burocracia, reformando e reforçando o exército, estruturando uma polícia vigilante, etc. Também cria o primeiro sistema de ensino público estatal. Com a expulsão dos jesuítas, Pombal cria um ensino público com uma forma de recrutamento estatal de professores, criando o estatuto e a profissão docente, e é a primeira vez que se cria em nível internacional um sistema público de ensino – por substituição ao privado dos jesuítas. Pombal tenta implantar ideias e ciências novas, incorporando a ciência moderna, o que também é importante para o desenvolvimento de Portugal. Ele também decretou a abolição da escravidão na metrópole e nas colônias da Índia em 1761, ainda que tivesse outros interesses, mas enfim. Nesse sentido, ele é precursor da modernidade.
Mais especificamente, não podemos entender o Brasil de hoje sem entender a importância da política pombalina para a colônia brasileira. Considero que, de certo modo, Pombal foi o inventor do Brasil. Isto porque se não fosse sua ação, não teríamos o Brasil como o conhecemos hoje. Como, afinal, um país imenso – quase continental – como é o Brasil, formado a partir de um país minúsculo que é Portugal, consegue manter uma coesão? O que une mais um brasileiro do Rio Grande do Sul com um nordestino ou alguém do Amapá? Esta coesão passa fundamentalmente pelo fato de falar uma única língua. Esta é a grande cerzidura que une o país. Mas porque ele não se desmembrou como o fizeram outros países da América espanhola? O Brasil manteve-se uno e coeso, apesar de alguns poucos conflitos, até a atualidade. Na minha opinião, para tanto, Pombal foi decisivo.
Isto primeiramente porque, em 1757, publicou um diretório para o Brasil onde impunha, entre outras medidas, a língua portuguesa como única e obrigatória, proibindo o ensino dos demais idiomas e punindo com medidas graves quem os ensinasse. Na sequência, estava ainda o processo da expulsão dos jesuítas, em 1759. O fato de impor uma língua única e expulsar os jesuítas foi determinante para a manutenção da unidade, pois, como sabemos, os jesuítas missionavam a língua dos índios e ensinavam o idioma geral do Brasil, desenvolvendo quase uma língua própria. Esta relação, se não fosse talhada, poderia ter gerado maior sentimento de autonomia. Os jesuítas procuraram respeitar e evangelizar em um processo de aculturação. Pombal e seus seguidores viam isso como perigoso, acusando os jesuítas de criarem um Estado dentro do Estado. Pombal considerava o ensino da língua indígena como uma espécie de separatismo, que seria perigoso para a unidade do Estado. O fato de Pombal expulsar os jesuítas desestrutura esse processo linguístico que os jesuítas mantinham. Predominantemente também, ao tirar dos jesuítas e dos missionários o poder temporal e espiritual sobre as aldeias, em nome do absolutismo iluminado, reafirma a razão do estado. Essa noção fez com que todo o território brasileiro fosse estatizado. A língua, a expulsão, a desarticulação do sistema de diferenciação, a estatização das formas de governo e o controle efetivo de todo o território permitiram a criação de uma coesão que evitou desmembramentos, revoltas e separações que aconteceram na América espanhola, criando o Brasil coeso que temos hoje.
Havia ainda outro aspecto importante. Os jesuítas possuíam colégios que eram praticamente Universidades e que também foram desmantelados com sua expulsão. Os jesuítas criavam uma elite pensante e crítica. Pombal, entretanto, jamais permitiu que se criassem Universidades na colônia, enquanto no Peru, no México e na Argentina, desde o século XVI e XVII já havia Universidades. No caso do Brasil, não, devido ao chamado pacto colonial. Um pacto em que era proibido abrir mão de setores estratégicos, especialmente para garantir o controle da colônia e evitar movimentos autonomistas. Os colégios jesuítas faziam este papel. Não tinham estatuto de Universidade, mas formavam elites importantes. Formaram Vieira na Bahia, formaram Gregório de Matos, etc. Com o fim dos jesuítas e desses imensos colégios nas principais cidades, esses polos de formação de elite foram desmantelados, o que enfraqueceu o quadro de brasileiros capazes de traçar panoramas e criar movimentos de autonomia. Portanto, se os jesuítas tivessem ficado, poderiam ter facilitado, na virada do século XVIII para o XIX, movimentos de libertação do território. A política de Pombal é absolutamente fundamental para compreender o Brasil que conhecemos hoje.
IHU On-Line - De onde surgiu a proposta de editar os 30 volumes de suas obras completas dirigidas por você e por Pedro Calafate?
José Eduardo Franco – A primeira tentativa de publicar a obra completa de Vieira foi em 1851. Desde então, registrei 15 projetos que se iniciaram, mas que não foram até o fim. Apenas o nosso se concretizou. Tendo em vista sua importância, publicamos em Portugal os 30 volumes das obras completas de Antônio Vieira, com 10 mil exemplares cada. Agora a coleção está sendo publicada no Brasil pelas Edições Loyola. No século XXI, o homem que escreveu cartas e sermões no século XVII continua sendo muito lido, e vários destes volumes se tornaram best sellers. Foi o resultado do trabalho de uma equipe de pesquisadores em Portugal e no Brasil trabalhando simultaneamente durante dois anos, editando mais de 50 mil manuscritos que se tornaram cerca de 15 mil páginas tratadas e editadas, sendo um terço de escritos inéditos ou parcialmente inéditos. Um contributo extraordinário para a cultura portuguesa, considerado o maior feito editorial da história da edição em Portugal desde o século XV. Isto porque é a primeira vez que foi possível preparar a partir dos originais, traduzir tudo que estava em outros idiomas, rever, anotar, atualizar e editar uma obra dessa dimensão em tão pouco tempo. Foram apenas dois anos de pré-edição e edição para lançar os volumes entre fevereiro de 2013 e setembro de 2014.
Desde os anos 1990 sonhava em publicar a obra de Vieira, já tendo participado de outras equipes não lideradas por mim que haviam falhado. Buscamos promover uma liderança que evitasse o erro das outras equipes. Como eu já estudava Vieira há 20 anos, já sabia previamente em quais bibliotecas estavam seus escritos e onde poderia haver os textos inéditos. Escolhemos equipes de especialistas em várias universidades brasileiras e portuguesas, pondo à frente de cada volume um especialista da área. Por exemplo, o professor João Adolfo Hansen ficou à frente do volume de Sermões. Quem era especialista em Epistolografia cuidava do volume correspondente. Aqueles que haviam escrito teses sobre o pensamento profético de Vieira assumiam esses volumes, e assim por diante. Esses especialistas orientavam o desenvolvimento da pesquisa do volume sob a sua coordenação específica e escreviam a introdução para cada livro de sua especialidade.
Juntamos então uma equipe de cerca de 25 pesquisadores, como latinistas, linguistas, revisores de texto, arquivistas, historiadores e filósofos, na Universidade de Lisboa, que davam assistência aos coordenadores dos diferentes volumes. A equipe transcreveu, fez a tradução e atualização do material original, buscou outras edições para incorporar trechos que faltavam, fez a revisão, anotação e pouco a pouco foi surgindo a obra do Vieira. Foi um dos cronogramas mais exigentes em que já trabalhamos, pois era preciso publicar três volumes a cada dois meses. Trabalhamos dia e noite, com minha equipe sempre acompanhando, ligando para os coordenadores, visitando arquivos para confrontar documentos, etc.
Lançamos também um apelo na comunicação social para que quem tivesse correspondências, cartas e escritos que pudessem ser de Vieira, que nos avisassem, que iríamos lá consultar. Em Portugal há muitos arquivos privados de famílias nobres. Muitos nos telefonaram, cedendo manuscritos e abrindo arquivos, o que nos permitiu completar muita correspondência que não conhecíamos, completar documentos de difícil acesso para leitura, etc. Outra dificuldade foi convencer uma editora de grande circulação, como a Círculo de Leitores e a Loyola, a publicar 30 volumes de um autor do século XVII.
Foi uma espécie de construção democrática da obra de Vieira, em que todos aqueles que possuíam fontes puderam oferecê-las para, pela primeira vez, termos a obra completa de Padre Antônio Vieira. Esta extraordinária edição representa uma verdadeira primavera cultural, uma valorização dos clássicos. Percebe-se que as pessoas tem sede dos clássicos e que estes, se forem bem apresentados e editados, podem atrair leitores. Porque o clássico é aquele autor cuja obra nunca perdeu a atualidade. E a maneira de escrever e pensar de Vieira ainda é atual e ainda nos ensina muita coisa.
IHU On-Line - Qual você destacaria como a obra mais importante?
José Eduardo Franco – Ah, não faça essa pergunta! Naturalmente todos os seus textos são extraordinários. Vieira é uma escola de saber, um deleite. Os 30 volumes são organizados em cinco tomos. O primeiro são os escritos epistolográficos, suas cartas e correspondências, em cinco volumes. O segundo, em 15 volumes, são os Sermões. Temos também a obra profética em seis volumes, que é o terceiro tomo, onde se fala do futuro de Portugal e da idealização de um mundo melhor. Na última parte, o quarto tomo, com quatro volumes, é a obra variada – em que temos os escritos políticos, os escritos sobre a inquisição e sobre os índios. O último tomo, que é o que muita gente desconhecia, é dedicado à poesia e ao teatro de Vieira. Isso era pouco conhecido e, por coincidência, esta obra é editada e coordenada por um professor brasileiro, João Bortolanza, da Universidade de Uberlândia, que nos anos 1990 tinha sido o único especialista que encontrei no Brasil que havia escrito sobre o tema.
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“Para Vieira, os ofícios não eram feitos para os homens, mas os homens para os ofícios” |
Todos os volumes são interessantes, mas eu destacaria os sermões. Temos a ideia de “dar um sermão”, mas não. O sermão de Vieira não é apenas uma obra de arte, mas ainda conta a história, fala de ciência, astronomia, psicologia, amor, amizade... Fala sobre a complexidade do ser humano, em sua bondade e maldade extremas. Os sermões do mandato é de leitura obrigatória sobre o amor, o sermão de Nossa Senhora do Ó é lindíssimo e antecipa até mesmo fórmulas matemáticas que só no século XIX serão desenvolvidas. Vieira é um gênio que antecipou muita coisa. Por isso os matemáticos, os lógicos, os sociólogos, filósofos e poetas têm interesse por Vieira.
No entanto, tudo depende do interesse: quem gosta de correspondências encontrará em Vieira o diálogo com grandes figuras do século XVII; quem gosta de pensar os valores, a política e o modo de estar em sociedade, encontrará em Vieira grandes apontamentos; para quem quer pensar o futuro da humanidade temos a obra profética; se quiser pensar a inquisição e a reforma política, com maior ética e responsabilidade, também encontrará essa discussão em Vieira, e quem quiser pensar o teatro e a poesia também poderá fazê-lo nesses volumes. É uma obra caleidoscópica e de uma universalidade pouco vulgar daquela época.
Por Andriolli Costa
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Vieira. Um Indiana Jones das missões. Entrevista especial com José Eduardo Franco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU