21 Setembro 2013
Falta o drama no diálogo pontífice-Scalfari. A excessiva tolerância recíproca me dissuade de aplaudir.
A opinião é do poeta, filósofo e escritor italiano Guido Ceronetti, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 18-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Caro diretor, no diálogo confidencialmente público entre o Papa Francisco e Eugenio Scalfari, permito-me intervir sem constrangimento, embora a minha pobre opinião pode ser mais de perturbação do que de aplauso. Aplausos, todos recebem muitos. Dissuade-me de aplaudir a excessiva tolerância recíproca. O Contraste (Pólemos) não é "o pai de todas as coisas"? Uma palavra moderna é ainda mais forte: "A batalha espiritual é tão brutal quanto a batalha de homens" (Arthur Rimbaud). Sobre as questões últimas, é preciso sofrer e fazer sofrer com as palavras.
Falta o drama no diálogo papa-Scalfari. Cada um, no seu próprio dogma, se sente seguro. Eu duvido que seja assim, entre pessoas de elevada inteligência, no seu interior, mas não há ruído, no seu intercâmbio, de espadas cruzadas até a última gota de sangue. Ambos os interlocutores têm em comum o sopro de uma espiritualidade morta, por isso o combate que travam é órfão da brutalidade rimbaudiana.
Lembro um importante fracasso de Bento XVI: ele tentou reintroduzir com um motu proprio a missa tridentina, porque a conciliar foi um verdadeiro assassinato litúrgico e, tendo sensibilidade musical, quis eliminar as pesadas guitarras elétricas dos ritos sobreviventes. Mas somos povos deslatinizados, gritou ele com um clero mais douto em informática do que em verbos depoentes. De América Latina, eu não sei de nada, mas não acredito que os seus padres e bispos tenham familiaridade com a latinidade imortal de nós, rari nantes. No entanto, a Igreja precisa mais de gregoriano do que de isenção fiscal na Itália.
E agora todo o carisma do Papa Bergoglio se gasta com aquilo que cada vez mais afasta a Igreja do seu necessariamente escandaloso enraizamento no Transcendente das origens. Aqueles raivosos maltrapilhos sem pão da Reforma, que dilacerava e iluminava grandemente o problema da Graça, eram muito mais verdadeiros cristãos do que esses servidores do mundo incapazes de compreender a sua necessidade de absoluto que pesa sobre as costas de Cristóvão de modo indizível. "Só um Deus pode nos salvar", deixou dito o bravo filósofo de Friburgo, mas muitos querem perder os Deuses esquecidos.
E são formidáveis as últimas linhas de Lutero com toda su muerte a cuestas: "Somos mendicantes, a verdade é essa". Mendicantes de outra coisa, que não este mundo de perdição, que multiplica os nonagenários e corta as asas das crianças. Eu desconfio das proclamações de amor universal; somos 7 bilhões de antropos nessa nau de loucos, e amá-los, a todos em bloco, é não amar ninguém.
Além disso, nem todos têm vontade de ser incluídos no abraço universal, embora todos sejam mendicantes de Lutero. Mas se eu dou amor desesperado às mulheres que recebem ácido muriático na cara, darei outra coisa bem diferente àqueles que a assassinam desse modo: e o papa se disporia? O seu amor cristão compreende também os massacradores de cristãos que, no mundo, são um grande número?
Eu estava em San Giovanni enquanto o cardeal Ruini, de 100 alto-falantes, anunciava triunfalmente que a mãe de um pobre padre assassinado em Anatólia, o padre Santoro, já tinha perdoado, assim abstratamente, os seus assassinos anônimos. Cheguei a duvidar de que ela amava pouco aquele seu filho, ou que o perdão lhe tinha sido extorquido por zelotas do amor universal por mandato da Conferência Episcopal Italiana... Em suma, à imitatio Christi, nós devemos, como seres humanos, verdadeiramente humanos, pôr limites.
Certamente, este papado, não apenas por modalidades de estilo mais adequados aos tempos, nos reserva coisas impressionantes. O fato de que uma lâmpada foi acesa na obscuridade uniforme do outro lado do Tibre, enquanto a Itália política se afunda cada vez mais em uma escuridão vociferante, merece uma saudação silenciosa e uma expectativa inaudível.
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''Eu desconfio do amor universal''. Artigo de Guido Ceronetti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU