07 Agosto 2013
As revoluções são coisas engraçadas. Algumas são lançadas por um grupo, mas sequestradas por outros, como no Egito, onde os democratas liberais tornaram-se meros espectadores da real disputa entre o Exército e a Irmandade Muçulmana. Algumas nascem em meio a um grande idealismo que rapidamente se torna uma cortina de fumaça para a hipocrisia, como nos vários levantes comunistas. Outras ainda fracassam, enquanto um punhado delas, no fim, produzem novos sistemas que, apesar das suas falhas, realmente mudam o mundo – as revoluções francesa e americana, por exemplo.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 05-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É muito cedo para saber qual trajetória se aplicará ao levante lançado pelo Papa Francisco, em parte porque, no nível das estruturas e de pessoal, ele ainda não fez muitas mudanças avassaladoras, e em parte porque os paralelos são inexatos de qualquer maneira – o catolicismo, afinal de contas, é uma família de fé, e não uma sociedade política.
Talvez a única certeza seja que a revolução está, de fato, em andamento. Em meados de julho, a revista italiana L'Espresso publicou uma reportagem de capa sobre o novo papa com a manchete "Ce la farà?". A frase significa algo como: "Será que ele vai conseguir?".
Não havia necessidade de explicar o foco da reportagem – todos, ao que parece, sabem que Francisco está tentando projetar uma glasnost católica.
Dentre outras inovações, Francisco decidiu pular a pausa de verão, permanecendo no Vaticano, ao invés de ir para o retiro papal em Castel Gandolfo (ele fez uma breve visita lá no dia 14 de julho). No entanto, a expectativa é de que agosto será um período de calma, depois da sua exigente volta para casa na América Latina para a Jornada Mundial da Juventude, no Brasil, como um prelúdio para as ações dramáticas do outono europeu.
Por isso, é um bom momento para dar um passo atrás e fazer algumas perguntas abrangentes:
• Quais são as principais linhas da revolução de Francisco?
• O que já mudou e o que ainda está por vir?
• Quem são as pessoas mais incomodadas pelas mudanças – que podem tentar resistir ou revertê-las?
• Quais são os momentos-chave que irão determinar quantas mudanças podemos esperar e se elas serão reais?
As respostas sugerem que a L'Espresso estão na pista certa: realmente há uma revolução em curso, mesmo que parte do seu conteúdo ainda esteja por chegar.
A mudança está aqui
Alguém poderia argumentar que, na maioria das coisas que interessam, a mudança já chegou.
Em apenas quatro meses, Francisco reavivou o prestígio internacional do papado e o seu capital moral. A edição italiana da revista Vanity Fair declarou-o recentemente como o seu "Homem do Ano", incluindo fragmentos de louvor de círculos improváveis, como Elton John, que denominou o pontífice de "um milagre de humildade na era da vaidade".
Pesquisas em várias partes do mundo mostram índices de aprovação que provocam a inveja de qualquer político ou celebridade. Uma recente pesquisa na Itália mostrou que a popularidade de Francisco era de 85%, com repercussões sobre a Igreja; a porcentagem de italianos que dizem confiar na Igreja era de 63% em comparação com os 46% de janeiro, durante o crepúsculo do papado de Bento XVI.
"Houve uma mudança mundial nas atitudes com relação ao papado desde a eleição de Francisco", diz o veterano observador do Vaticano Marco Politi, colunista do jornal italiano Il Fatto Quotidiano. "Houve uma grande onda de simpatia, não só entre os fiéis, mas também de pessoas que são muito seculares ou distantes da Igreja".
No máximo, Politi pode estar subestimando a questão.
Em termos de opinião pública, Francisco já está à beira de alcançar o status icônico de Nelson Mandela, uma figura de inquestionável autoridade moral. Diz-se que, durante a sua viagem ao Brasil, os protagonistas da agitação atual da nação praticamente avançaram uns sobre os outros em uma competição para ver quem poderia demonstrar mais deferência e respeito.
Há também um sentido em que Francisco é o "papa Teflon", em que nada de ruim parece grudar. Quando qualquer coisa escandalosa acontece, a reação não é culpar o papa, mas sim vê-lo como mais uma prova do porquê ele é necessário.
Um caso em questão: no fim de julho, uma revista italiana publicou relatos de que o prelado escolhido a dedo pelo papa para reformar o banco vaticano tinha se envolvido em questões gays impudentes, enquanto atuava como diplomata vaticano no Uruguai há mais de uma década. As pessoas inclinadas a tomar os relatos ao pé da letra viram-nos como uma prova de um "lobby gay" que Francisco irá derrubar; as pessoas dispostas a descartá-los disseram que eles são uma prova de que a reforma de Francisco está provocando resistência.
O que todos poderiam concordar é que Francisco é a solução, não o problema.
Verdade seja dita, as pessoas mais simples não estão prestando atenção a tais minúcias, de qualquer maneira. Os observadores do Vaticano podem se fixar em questões como quem Francisco irá nomear como o próximo cardeal secretário de Estado, ou que mudanças ele vai fazer no Instituto para as Obras de Religião (o banco do Vaticano), mas a única pergunta que a maioria das pessoas se faz sobre o papa é: "Ele nos inspira?".
Por enquanto, a resposta parece ser "sim". Dados todos os escândalos, a má cobertura da imprensa e as polêmicas, a Igreja Católica tem resistido ao longo da última década. Se isso não é uma revolução, é difícil saber como ela seria.
Em Roma, também, há claros sinais de que uma nova ordem já surgiu.
Os clérigos que se irritaram com aquilo que perceberam como uma crescente meticulosidade litúrgica durante os anos do falecido João Paulo II e de Bento XVI – aparecendo para a missa papal, por exemplo, apenas para ouvir que eles não estavam devidamente vestidos, porque não estavam exibindo púrpuras e rendas suficientes – relatam que tudo isso terminou em meados de março.
O estilo de vida mais humilde de Francisco está tendo um efeito cascata. Os príncipes da Igreja hoje são mais propensos a serem vistos usando uma simples veste clerical preta, em vez do esplendor indumentário habitual, e alguns começaram a assinar os seus nomes nas correspondências oficiais simplesmente como "Dom Fulano de Tal", evitando o "Sua Eminência" ou outros tipos de nomenclatura cortesã.
Mesmo os mendigos que fazem o seu comércio ao redor do Vaticano captaram que algo mudou. Os empregados do Vaticano dizem que, se eles desprezam um pedido por algumas moedas hoje, eles provavelmente vão ouvir como resposta: "Cosa direbbe Papa Francesco?" – ou seja, "O que o Papa Francisco diria?".
Fim de jogo
Tudo isso pode ser definido como questões superficiais de estilo, mas também há uma sensação de que as placas estão se movendo em um nível mais profundo.
Para dar o exemplo mais óbvio, há muito tempo existe uma distinção interna e externa no Vaticano, entre uma maioria que aparece para trabalhar e tenta fazer o seu trabalho, e uma elite minoritária que "faz o jogo" – que monopoliza o acesso ao papa, que controla a alocação de pessoal e de recursos, e que, de uma forma ou de outra, puxa as cordas do poder com base no clientelismo e na experiência política.
Há apenas quatro meses, esse jogo estava em pleno andamento. Empregados ambiciosos sabiam exatamente com quem deveriam tentar fazer amizade, de quais recepções deveriam participar, quais movimentos deveriam adular, que devoções deveriam abraçar, e assim por diante. Muitas autoridades vaticanas achavam isso repugnante, enquanto outras faziam isso com perfeição, mas, em todo caso, eles conheciam a situação do terreno.
Hoje, essa distinção infiltrados/forasteiros está em grande parte extinta. Por viver na Casa Santa Marta, por trabalhar no telefone por si mesmo e por ignorar os porteiros habituais, Francisco assegurou que ninguém tem o monopólio do seu ouvido.
"Ele é muito atraente, mas também é muito controlador, como todas as pessoas poderosas", diz Omar Bello, um jornalista católico argentino e autor de um novo livro sobre o papa.
Os esforços para divisar um novo conluio em torno do papa foram infrutíferos. Em maio e junho, por exemplo, Francisco foi frequentemente visto na companhia do arcebispo italiano Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, por causa dos eventos públicos relacionados com o "Ano da Fé" do Vaticano. Alguns pensam que Fisichella estava se destacando como um homem de influência – então, é claro, Francisco deixou Fisichella esperando sentado em um concerto no Vaticano no dia 22 de junho.
O que os observadores do Vaticano perceberam é que tentar descobrir quem está subindo e quem está descendo é perder o ponto-chave. A novidade é que o jogo, da forma como tem sido entendido e jogado, acabou.
Cada vez mais, os empregados vaticanos, nos bastidores, dizem que Francisco é o seu próprio dono, coletando a sua própria informação e tomando as suas próprias decisões – governando, em certo sentido, como o jesuíta provincial que ele já foi. Não há nenhuma eminência parda e nenhuma figura como o bispo (hoje cardeal) Stanislaw Dziwisz com João Paulo II ou como o monsenhor (agora arcebispo) Georg Gänswein com Bento XVI, atuando como um poder por trás do trono.
Com Francisco, o que você vê é basicamente o que há.
Marcas da nova ordem
Quatro marcas da nova ordem parecem claras.
Primeiro, esse forasteiro latino-americano parece determinado a romper o monopólio italiano no governo da Igreja universal.
Francisco estabeleceu três órgãos para dar corpo à sua reforma: um grupo de cardeais para ajudá-lo no governo, uma comissão para investigar o banco do Vaticano e uma comissão pontifícia para estudar as estruturas econômicas e administrativas do Vaticano. Tudo dito, eles incluem 21 pessoas agora em posição de influência real, com apenas três italianos entre eles.
(Como nota de rodapé, pode-se argumentar que são dois italianos e meio, já que a italiana nomeada para o painel para a reforma econômica e administrativa, uma leiga chamada Francesca Immacolata Chaouqui, é filha de mãe italiana e pai egípcio.)
Por trás disso, está um cálculo de que a "desitalianização" é uma condição sine qua non da reforma, especialmente no fronte financeiro. Como um cardeal não vaticano disse ao NCR em off, "se você quer transparência no dinheiro, então não olhe para a Itália como um exemplo".
Segundo, Francisco claramente quer reforçar o papel dos leigos – não apenas de forma cerimonial, mas na tarefa básica de reformar o Vaticano e de governar a Igreja.
A sua comissão para estudar as estruturas econômicas e administrativas, por exemplo, é composta por oito pessoas, das quais apenas um é padre – o Mons. Lucio Ángel Vallejo Balda, um espanhol que atua como secretário da Prefeitura para os Assuntos Econômicos do Vaticano, e que é membro da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, afiliada ao Opus Dei. Os outros sete são leigos tirados do mundo da economia, do direito e da gestão empresarial.
Logicamente, isso implica o corte das asas dos supremos senhores clérigos do Vaticano. No jornal italiano La Repubblica, o jornalista Marco Ansaldo chamou a comissão de uma "completa subversão" da Cúria Romana – observando, dentre outras coisas, que os seus membros não irão relatar à estrutura de poder do Vaticano, mas sim diretamente ao papa.
Quatro meses atrás, se alguém quisesse influenciar as operações financeiras do Vaticano, tinha que chamar um cardeal italiano. Hoje, seria melhor aconselhá-lo a telefonar para um economista leigo de Malta – Joseph F. X. Zahra, que chefia a nova comissão.
Nova prestação de contas
Em terceiro lugar, Francisco está dando origem a uma nova cultura da responsabilidade, movendo-se em direção a uma compreensão mais anglo-saxônica de que "responsabilidade" significa que alguém pode realmente ser demitido.
Duas medidas críticas foram a renúncia no dia 2 de julho das principais autoridades do banco do Vaticano, o diretor, Paolo Cipriani, e o vice-diretor, Massimo Tulli, assim como a suspensão no início de junho do Mons. Nunzio Scarano, um contador da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica. Scarano, logo em seguida, foi preso em conexão com uma suposta conspiração para contrabandear quase 30 milhões de dólares para a Itália e também enfrenta uma investigação separada por lavagem de dinheiro, referente a contas que ele mantinha no banco do Vaticano.
Historicamente, era quase impossível que alguém perdesse o emprego no Vaticano, em parte por causa das suas duras proteções trabalhistas, e em parte porque as autoridades insistiriam que a Igreja é uma família, e não uma grande empresa mundial.
Quaisquer que sejam os méritos desse sistema, os infiltrados dizem que ele tende a desencorajar potenciais delatores, porque a percepção era de que os malfeitores nunca iriam sofrer as consequências.
Scarano é um bom exemplo disso. Os infiltrados sabiam que o seu salário vaticano de cerca de 2.000 dólares por mês não poderia sustentar o seu estilo de vida luxuoso, que, de acordo com os procuradores italianos, incluía uma coleção de obras de arte com peças de Giorgio de Chirico e Marc Chagall.
Duas autoridades vaticana que falaram com o NCR nos bastidores e que conheciam Scarano disseram que sempre encontravam algo incomum sobre ele, mas nunca denunciaram porque não viam nenhum sentido nisso. Ambos disseram que hoje eles teriam se manifestado.
Em quarto lugar, quer seja uma questão de instinto ou de estratégia consciente, Francisco parece estar reposicionando a Igreja no centro, em termos políticos, depois de um período bastante longo em que muitos observadores percebiam que ela estava se deslocando para a direita.
O veterano jornalista italiano Sandro Magister observou recentemente: "Não pode ser por acaso que, depois de 120 dias de pontificado, ainda não saíram uma única vez da boca de Francisco as palavras aborto, eutanásia, casamento homossexual", acrescentando que "esse seu silêncio é outro fator que explica a benevolência da opinião pública secular com relação a ele".
No entanto, Francisco não impôs nenhuma mordaça sobre si mesmo quando se trata de outros temas políticos, como a pobreza, o meio ambiente e a imigração. Diz-se que, para a sua primeira viagem fora de Roma, Francisco escolheu a ilha mediterrânea sulina de Lampedusa, um dos principais pontos de chegada de imigrantes pobres da África e do Oriente Médio que tentam chegar à Europa. O papa pediu uma maior compaixão por esses migrantes, repreendendo o mundo por uma "globalização da indiferença".
Embora a viagem tenha servido a leituras geralmente arrebatadoras, a direita anti-imigração na Europa ficou indignada. Erminio Boso, um porta-voz da Liga Norte, da extrema-direita da Itália, disse: "Eu não me importo com o papa. O que eu peço é que ele forneça dinheiro e terra para esses extracomunitários", referindo-se aos imigrantes sem documentos.
O deslocamento para o centro também parece claro em termos eclesiásticos. Em Roma, a percepção é de que os detentores de poder associados a posições moderadas, tais como o cardeal Oscar Rodríguez Maradiaga, de Honduras, coordenador da comissão de cardeais, estão em ascensão, enquanto aqueles ligados a posturas neoconservadoras ou tradicionalistas, como o cardeal Raymond Burke, dos Estados Unidos, presidente do Supremo Tribunal do Vaticano, estão em declínio.
A Igreja pode não dar uma guinada brusca nas suas alianças políticas, mas parece haver uma clara preferência pelo Evangelho social em comparação com as guerras culturais.
Esses pontos apenas já são indiscutivelmente significativos o suficiente para constituir uma "revolução", mas provavelmente há mais por vir, especialmente quando as comissões encarregadas de estudar a reforma apresentarem os seus relatórios.
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Uma verdadeira revolução está em andamento com o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU