01 Março 2013
É uma pena que o Papa Bento XVI tenha vivido uma Igreja e um mundo que habitavam em tempos diferentes, porque, ao mesmo tempo, ele fez gestos poderosamente modernos.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano. O artigo foi publicado no jornal L'Unità, 01-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O papa que na noite dessa quinta-feira foi embora modernamente de helicóptero, segundo o medievalista Jacques Le Goff, realizou com a sua renúncia um gesto de rejeição da modernidade. Abdicando, ele se retirou dela, quase como dizendo que a Igreja não é compatível com a modernidade, senão às custas de desnaturalizar-se, ou que, em todo caso, ele não tinha mais as forças como papa para enfrentar o desafio de uma idade moderna inscrita por ele globalmente no círculo do relativismo.
Se era esse o seu julgamento, se esse era o problema que ele queria deixar em aberto para a Igreja, justamente ele foi embora dele: porque um papa deve ser contemporâneo à sua Igreja, não pode ser amoderno ou pré-moderno. Um papa do terceiro milênio não pode pegar nas mãos uma Igreja que considera como adversários os "sinais dos tempos" e guiá-la como se o Concílio não tivesse existido, ou, pior, como se ele tivesse devastado a Igreja através da manipulação dos meios de comunicação, como ele defendeu no seu último discurso ao clero romano.
O desconforto do prefeito Ratzinger, antes, e do Papa Bento XVI, depois, com relação ao Concílio Vaticano II, a contradição não resolvida que talvez o levou ao abandono jogaram-se justamente sobre a relação do Concílio com a modernidade. O papa reconheceu no seu primeiro discurso à Cúria, do Natal de 2005, que sobre esse ponto, no Vaticano II, havia se produzido uma verdadeira descontinuidade; mas esse reconhecimento entrava em conflito com o esquema da interpretação do Concílio sob o signo da continuidade, contra a hermenêutica da descontinuidade e da ruptura, que naquele mesmo discurso Bento XVI prescrevia como único cânone de interpretação admissível.
Como ele mesmo sublinhava, a mudança operada pelo Vaticano II na relação entre a Igreja e o mundo moderno havia investido contra três ordens de problemas: com relação à ciência moderna (nunca mais contra Galileu), com relação ao Estado moderno (nunca mais reivindicá-lo como confessional), com relação às relações com as outras religiões (nunca mais negar a liberdade religiosa, nunca mais considerar as outras religiões como malditas por Deus).
O papa, no entanto, não estava nada persuadido de como o Concílio havia abordado essa questão e, em um texto inédito publicado no L'Osservatore Romano no dia 11 de outubro passado, anotava que "para esclarecê-la teria sido necessário definir melhor o que era essencial e constitutivo da idade moderna. Isso não foi conseguido no Esquema XIII. Embora a Constituição Pastoral expresse muitas coisas importantes para a compreensão do mundo e dê contribuições relevantes sobre a questão da ética cristã, sobre esse ponto ela não conseguiu oferecer um esclarecimento substancial".
De fato, o papa não resistiu à prova dessas três modernidades com as quais a Igreja do Vaticano II havia se reconciliado. À ciência, ele repropôs um limite, o da verdade não experimentalmente verificável, do qual a Igreja continua sendo depositária. Ao Estado moderno, criticou que as constituições e as maiorias não fornecem moralidade, e nos diálogos com Habermas e nos discursos à cultura secular assumiu a tese do constitucionalista alemão Böckenförde, segundo o qual "o Estado liberal e secularizado se alimenta de premissas normativas que ele, por si só, não pode garantir". Com relação à relação com as outras religiões, ele disse ao clero de Roma que um crente não pode considerar as outras religiões "como uma variante de um único tema", e quando reuniu os representantes de todas as fés em Assis, acolheu-os como interlocutores no plano cultural e ético, mas quis que cada um, sozinho, no seu quarto, invocasse o seu Deus.
Mesmo assim, o papa colocou um problema real: porque é claro que atravessamos uma crise de civilização, que todas as velhas certezas caíram, e que secularização e globalização parecem nos entregar um mundo de hienas. Mas é precisamente nesse mundo que é preciso anunciar o Evangelho, e o problema da Igreja é que ela não pode escolher o seu tempo, nem a idade que lhe seria mais apta.
É uma pena que o Papa Bento XVI tenha vivido uma Igreja e um mundo que habitavam em tempos diferentes, porque, ao mesmo tempo, ele fez gestos poderosamente modernos.
O primeiro foi justamente o de papa que pode tranquilamente renunciar. Mas também fez outros, e justamente na ordem da fé, como quando assinou o documento teológico romano em que se fazia cair a piedosa fábula do Limbo e se admitia que as crianças mortas sem batismo eram acolhidas no paraíso, porque Deus tem pontos de vista mais amplos do que as doutrinas que defendiam que, sem a água do sacramento, ninguém pode ter acesso à vida divina e que fora da Igreja visível não há salvação.
O Papa Bento XVI fez outro gesto poderoso de desmistificação quando releu a história do pecado de Adão no Gênesis como um relato simbólico derivante dos mitos da cultura suméria, em que a serpente é uma figura que deriva dos cultos orientais da fecundidade pelos quais Israel era tentado, e quando disse que São Paulo, revisitando aqueles textos, não teria nem falado do pecado de Adão se não para destacar a superabundância da graça libertadora de Cristo.
E, assim, lidos os relatos da criação não como uma espécie de história das origens, mas como uma mensagem religiosa a ser compreendida em termos simbólicos e cristológicos, era confirmada a realidade e o contágio do pecado, desde o início resgatados pela graça divina (e "pecado original" era posto entre aspas), mas também se tirava de cima dos ombros do ser humano de hoje o fardo de um destino para o qual até mesmo a morte seria por culpa sua, o trabalho seria uma pena a ser descontada com suor, a terra cultivada deveria restituir cardos e espinhos, os partos seriam punidos com dor, e a sexualidade estaria sob a escravidão da concupiscência.
A verdadeira modernidade, portanto, chegava a coincidir com uma lei não da condenação, mas do amor, o ser humano foi posto novamente sobre os seus pés, e as antropologias pessimistas e sacrificiais sobre as quais o Ocidente havia construído todas as suas instituições, começando pelo Estado, podiam ser subvertidas.
O papa fez outro ato modernamente promissor quando, embora motivado por intenções de restauração, chamou novamente à vida e tornou facultativo na Igreja o velho Missal Romano posto de lado e também transcendido pelo Concílio. De fato, ao fazer isso, o papa rompeu o axioma segundo o qual há apenas um modo de crer e apenas um modo de rezar, legitimou a pluralidade das liturgias e dos ritos, e fez entrever de longe uma Igreja unida não na uniformidade, mas na variedade das culturas, dos mundos vitais e das tradições éticas.
O que o papa deixa ao seu sucessor é, portanto, uma crise: porque é difícil atravessar essa passagem. O seu mérito é de não a ter escondido no triunfalismo de um papa com as praças cheias e as Igrejas vazias. A Igreja deve encontrar o seu caminho para poder recomeçar a anunciar Deus e o seu evangelho no novo ateísmo da modernidade.
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Os gestos modernos de um papa antigo. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU