04 Dezembro 2012
A resposta que o laicismo dá é insatisfatória. As comunidades religiosas, na medida em que desempenham um papel vital na sociedade civil, não podem ser banidas do âmbito político público e forçadas à esfera privada, porque uma política deliberativa depende do uso público da razão, tanto pelos cidadãos crentes quanto não crentes.
Publicamos aqui a versão escrita da conferência proferida pelo filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, no contexto da série "Política e Religião", no dia 19 de julho de 2012, na Fundação Carl Friedrich von Siemens, em Munique, Alemanha.
O artigo foi publicado no blog da Editora Queriniana, 27-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Depois da eleição do primeiro presidente egípcio democraticamente eleito, o artigo de primeira página do jornal Süddeutsche Zeitung do dia 26 de junho intitulava-se assim: "Mohammed Mursi ajuda o Islã político a fazer o seu maior triunfo rejeitando os valores ocidentais". Em que perspectiva se fala de "valores ocidentais"? Uma cultura é portadora de valores como liberdade e paz, igualdade e temor de Deus segundo uma ordem de prioridade diferente da de uma outra cultura.
Se Mursi irá seguir a linha dura dos Irmãos Muçulmanos ou, de fato, se será um presidente de todos os egípcios, e portanto também dos xiitas, dos coptas e dos seculares, dependerá, dentre outras coisas, do fato se ele considerará a liberdade religiosa e os outros direitos fundamentais de uma constituição liberal somente como valores ou também como princípios. Na realidade, é preciso admitir que os princípios racionalmente fundamentados requerem uma sensibilidade para o contexto de aplicação, mas, segundo a sua pretensão, eles valem para todos e, além disso, eles não têm nem prima facie uma relação de tensão com os "valores" de outras culturas.
Também no Ocidente, as bases de legitimidade segundo o direto natural do poder político se entrelaçaram inicialmente com a compreensão da estrutura do kósmos e da pólis, com as revelações de um Deus que redime ou com os pensamentos de Deus objetivados na criação. Só o direito moderno da razão removeu o peso das motivações metafísicas e religiosas dessas concepções globais daqueles princípios que adquiriram validade positiva nas revoluções constitucionais do século XVIII. A partir dessa visão limitadamente antropocêntrica, a democracia e os direitos humanos são, para as sociedades modernas, os dois pilares reciprocamente interconectados do poder político.
O justo e o bom
Não posso entrar no mérito das tentativas de fundação do direito da razão, mas vou me limitar ao tipo de raciocínio por ela seguido. Podemos distingui-la do contexto das visões de mundo globais logo que se diferencie a ideia de justiça da de bem supremo. A ordem justa, então, não se orienta mais por uma forma de vida exemplar, solidamente ancorado no cosmos ou na história da salvação. Essa perspectiva de justiça que adere ao bem concreto é substituída pela ideia de inclusão informal de indivíduos livres e iguais, que podem dizer sim e não.
A esse respeito, é decisiva a reviravolta de uma concepção conteudística da vida boa à ideia de um processo de comparação, segundo a qual os participantes constroem por si mesmos um ordenamento justo. Ao londo de uma progressiva descentralização da compreensão de si mesmos e do mundo, pessoas livres e iguais devem encontrar o que também é igualmente bom para cada uma deles. Essa dissociação conceitual do justo do bom tornou independentes os conceitos de legitimidade da construção do mundo ou da história em seu conjunto, possibilitando, desse modo, a ideia de um poder secularizado do Estado. No Ocidente, foi mais ou menos realizada uma adequada separação institucional entre Estado e religião sob a forma de acordos muito diferentes do direito canônico.
Sociedade civil não secularizada
Mas a secularização do poder do Estado não significa, por isso, secularização da sociedade civil – nos Estados Unidos, desde o início, ela não tinha essa intenção. Essa circunstância coloca os cidadãos crentes em uma situação paradoxal. As constituições liberais garantem a todas as comunidades religiosas (levando em conta a liberdade religiosa negativa) o mesmo espaço e, ao mesmo tempo, protegem as entidades do Estado, que acolhem as decisões como coletivamente vinculantes, das interferências políticas de comunidades religiosas individuais mais poderosas.
Segue-se daí que as mesmas pessoas que são expressamente autorizadas a praticar a sua religião e a levar uma vida piedosa, no seu papel de cidadãs do Estado, devem participar de um processo democrático, cujo resultado deve ser mantido livre de qualquer aditivo religioso.
A resposta que o laicismo dá é insatisfatória. As comunidades religiosas, na medida em que desempenham um papel vital na sociedade civil, não podem ser banidas do âmbito político público e forçadas à esfera privada, porque uma política deliberativa depende do uso público da razão, tanto pelos cidadãos crentes quanto não crentes. Se a estridente polifonia das opiniões sinceras não deve ser ser suprimida, as contribuições religiosas para questões moralmente complexas, como o aborto, a eutanásia, a intervenção pré-natal na composição genética etc. não devem ser cortadas pela raiz do processo de decisão democrático. Cidadãos e comunidades religiosas devem permanecer livres para ser representadas como tais no âmbito público, para fazer uso de uma linguagem religiosa e para usar argumentos correspondentes.
Em um Estado secular, eles também devem aceitar que o conteúdo politicamente relevantes das suas contribuições seja traduzido em um discurso acessível a todos e independente das autoridades religiosas, antes de poder encontrar o acesso às agendas dos órgãos decisionais do Estado. Deve ser introduzido, em certo sentido, um filtro entre as correntes de comunicação selvagens da opinião pública, por um lado, e as deliberações formais que levam a decisões coletivamente vinculantes, por outro. E as decisões aprovadas pelo Estado também devem ser formuladas em uma linguagem acessível igualmente a todos os cidadãos e devem poder ser justificadas.
Mas em que condições sobretudo os crentes, cujas ideias normativas, em última análise, se enraizam nas convicções fundamentais da fé, podem aceitar as consequências de uma tal cláusula de tradução da mensagem? Especialmente nas religiões vitais, muitas vezes é latente um potencial de violência, que não pode acender as faíscas de uma dinâmica da compreensão do mundo que livremente corre na sociedade civil. Se o ordenamento constitucional liberal sobre um simples modus vivendi deve poder reivindicar uma legitimidade, todos os cidadãos, mesmo os crentes, devem poder se convencer fundamentalmente da razoabilidade dos princípios constitucionais. Os conflitos religiosos só não comprometerão essa base comum se as convicções de fé não entrarem em conflito com a lealdade aos princípios constitucionais fundamentais.
Expectativas
Segundo John Rawls, o Estado liberal deve, portanto, esperar dos seus cidadãos crentes que eles fundamentem, a partir de sua própria fé, aquelas afirmações seculares – segundo a sua própria opinião – apoiadas somente pela razão democrática e do Estado de direito, respectivamente, e que as insiram como "módulos" no contexto das suas convicções religiosas de fundo.
A Igreja Católica, por exemplo, realizou tal adaptação dogmática no Concílio Vaticano II, portanto somente nos anos 1960. A imagem do módulo ilustra bem como os cidadãos crentes podem apoiar, com relação às próprias ideias religiosas, a prioridade objetiva e as decisões políticas em casos individuais e harmonizar estas com a prioridade subjetiva das suas convicções de fé existenciais e, em última análise, decisivas.
O Estado liberal, portanto, é incompatível com o fundamentalismo religioso. Nesse conflito, uma figura da modernidade se confronta com outra forma moderna, que surgiu como reação ao processo de modernização que suplanta todas as coisas. O Estado liberal pode garantir aos seus cidadãos as mesmas liberdades religiosas – e, em geral, iguais direitos culturais – somente com a condição de que eles, em certo sentido, saiam para o ar livre de uma sociedade civil comum, deixando os mundos de vida integrais das suas comunidades religiosas e de suas próprias subculturas.
Ao mesmo tempo, a cultura majoritária também não pode manter como prisioneiros os seus membros no conceito estreito de uma cultura dominante, que reivindica um poder definidor exclusivo sobre a cultura política do país. Na sentença sobre a admissibilidade da prática da circuncisão de muçulmanos (e judeus), o tribunal do distrito de Colônia é injusto ao julgar, afirmando que, juntamente com os muçulmanos naturalizados, "o Islã também faz parte da Alemanha".
No papel de "colegisladores" democráticos, todos os cidadãos do Estado garantem uns com relação aos outros a tutela dos direitos fundamentais e, como cidadãos da sociedade civil, podem expressar verdadeira e livremente a sua identidade cultural e ideológica. Essa relação entre Estado democrático, sociedade civil e autonomia subcultural é a chave para compreender os dois motivos complementares entre si, que secularistas e multiculturalistas erroneamente consideram incompatíveis. As demandas universalistas do Iluminismo político só encontram a sua resposta no justo reconhecimento das afirmações particularistas de autoafirmação das minorias religiosas e culturais.
O discurso intercultural
Com essa autocompreensão do Estado secular, o Ocidente se diferencia de outras regiões do mundo. Enquanto isso, a situação pós-colonial e o deslocamento das relações de poder da política mundial nos obrigam a levar a sério as considerações que as outras culturas nos dirigem. Elas trazem à consciência do Ocidente os traços provinciais das globalizações eurocêntricas, lembrando-nos as conquistas imperialistas e as atrocidades coloniais, os crimes que foram cometidos também em nome das nossas nobres normas.
A partir do seu contexto de formação europeia, somos capazes de compreender a secularização do poder do Estado como resposta pacificadora à violência religiosa das guerras confessionais. Por outro lado, em outras partes do mundo, a constituição do Estado-nação levou somente a uma confessionalização, ou seja, à mútua exclusão e opressão das comunidades religiosas que até agora viviam lado a lado mais ou menos pacífica e amigavelmente.
Além disso, as obscuras formas híbridos e as duvidosas simbioses do poder estatal e religioso, que deploramos em outras partes, nos lembram a tenaz resistência das Igrejas cristãs ao Estado liberal, e a longa luta pela emancipação da educação pública e do direito da família das garras da Igreja.
Por outro lado, o relativismo é a falaciosa consequência da autocrítica pedida. Não por acaso os dissidentes de todo o mundo fazem uso da linguagem da democracia e dos direitos humanos. Como parte dos debates interculturais, o Ocidente agora é apenas uma das muitas partes. Nesse papel, devemos nos acostumar a ter uma relação não dogmática e disposta a aprender com as civilizações que se desenvolveram em caminhos muito diferentes até se tornarem contemporâneas de uma sociedade mundial formadas por múltiplas modernidades.
Mas é só na base de uma defesa autoconsciente de pretensões universalistas que nos deixaremos instruir pelos argumentos dos outros sobre os nossos pontos cegos na compreensão e na aplicação dos nossos próprios princípios.
A isso pertence aquela leitura com um olho só e secularista do poder pelo Estado secularizado, que edifica falsas fachadas. Como cidadãos seculares, não podemos saber se o processo no nível da história do mundo de verbalização do sagrado foi completado. Isso já havia começado com os primeiros mitos, isto é, com o surgimento narrativo dos significados encapsulados performaticamente na atitude ritual.
No berço do cristianismo, esse processo foi continuado pelo trabalho sobre os conceitos por parte dos Padres da Igreja. No intercâmbio com a culta elite grega do Império Romano, esses teólogos insistiram em uma tradução impermeável às influências dos seus conteúdos de fé mais estimulantes na linguagem da metafísica. Assim, eles, que também eram filósofos, redespertaram uma sensibilidade totalmente não grega pela peculiaridade dessas experiências históricas e comunicativas para além dos conceitos ontológicos de uma metafísica da substância.
Relação com a herança
Em primeiro lugar, a filosofia só teve uma muda participação nesse processo de tradução. Foi ao menos a partir do século XVIII que ela continuou isso por conta própria, absorvendo os conteúdos teológicos nos seus conceitos fundamentais de ética e de filosofia da história. Kant e Hegel quiseram ainda reportar ao conceito o conteúdo de verdade da tradição religiosa. Nos diagnósticos de crise e de alienação dos jovens hegelianos, esse processo de tradução continuou involuntariamente, ao invés. E, na mudança de perspectiva que a filosofia da existência e o pragmatismo empreendem do "quê" do objeto ao "como" da relação performativa com o mundo, trai-se tal osmose semântica. Os seminários conjuntos de Heidegger e Bultmann ou as experiências religiosas de William James são sintomáticos disso.
Ao mesmo tempo, os autores religiosos, de Kierkegaard a Walter Benjamin, Emmanuel Lévinas ou Martin Buber, passando por Josiah Royce, estimularam, por outro lado, os conteúdo das tradições confessionais através de um filtro conceitual filosófico. A partir da retrospectiva do desiludido pensamento pós-metafísico sobre essa relação com a herança, podemos aprender uma certa reserva para uma autocompreensão secular: não podemos saber se o processo em curso até agora – até as criações conceituais de Jacques Derrida – de uma tradução não resvolida do potencial religioso de significado foi esgotado.
Portanto, o Estado liberal não deve somente pedir aos cidadãos seculares que levem a sério como pessoas os cidadãos crentes que encontram no espaço político. Pode-se até esperar deles que não deixem de reconhecer nos conteúdos articulados dos posicionamentos e das declarações religiosas, se necessário, intuições reprimidas – isto é, os potenciais conteúdos de verdade que podem ser introduzidos em uma argumentação público não vinculada religiosamente.
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Quanto de religioso o Estado liberal tolera? Artigo de Jürgen Habermas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU