Por: Jonas | 12 Abril 2012
A imprensa, inclusive a que tem inclinações esquerdistas, parece não ter percebido que, em um dia como hoje, sessenta anos atrás, em 9 de abril de 1952, triunfou a Revolução Nacional Boliviana, a mais radical depois da Revolução Mexicana (1910/1917) e, em mais de um sentido, precursora da Revolução Cubana. Foi uma jornada heróica que culminou quando o exército, cão de guarda da oligarquia mineira e latifundiária, foi derrotado, desarmado e dissolvido pelos mineiros, depois de dois dias de furiosos combates.
O artigo é de Atilio A. Boron, publicado no sítio Cubadebate, 09-04-2012. A tradução é de Eduardo Marinho.
Como no México antes e em Cuba depois, a derrota do exército é a marca decisiva de toda revolução. Como veremos, os acontecimentos na Bolívia tocaram profundamente o jovem Ernesto Guevara, anos antes de se converter no Che, como também outro jovem, brilhante como ele, Fidel Castro que, em seu célebre discurso de defesa “A história me absolverá” (16 de outubro de 1953), dizia aos seus juízes que “tentou-se estabelecer o mito das armas modernas como sinal da impossibilidade da luta aberta e frontal do povo contra a tirania. Os desfiles militares e as exibições de equipamentos bélicos têm como objetivo alimentar este mito e criar na cidadania um complexo de absoluta impotência. Nenhuma arma, nenhuma força é capaz de vencer um povo que se decide a lutar por seus direitos. Os exemplos históricos, passados e presentes, são incontáveis. É bem recente o caso da Bolívia, onde os mineiros, com cartuchos de dinamite, derrotaram e esmagaram os regimentos do exército regular.”
A história da Revolução Boliviana oferece muitas lições de grande utilidade para as lutas dos nossos povos pela sua emancipação. Suas conquistas iniciais foram imensas, impossíveis de subestimar. Mas não tiveram a sustentação política, econômica e ideológica necessária para garantir sua irreversibilidade. A revolução começou nascer poucos meses antes, em 1951, quando o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), liderado por Victor Paz Estensoro, vence as eleições presidenciais. Pouco depois acontece um golpe de Estado, promovido pela oligarquia mineira, que instala uma junta militar com o objetivo de impedir o acesso ao poder do chefe do MNR – que se exila na Argentina.
Então, uma crescente inquietação social e política se traduz, primeiramente, numa impetuosa mobilização de mineiros e camponeses e, pouco depois, ao que a teoria marxista chama de “dualidade de poderes”. Ou seja, uma divisão do Estado burguês que, enfraquecido pela rebelião “dos de baixo”, perde a capacidade para reclamar e obter autoridade para seu governo e, portanto, não pode impedir o surgimento de um formidável antagonista, um poder real, efetivo, não formal nem constitucional, mas um poder constituinte baseado no imenso apoio popular formado pelos camponeses e mineiros em armas. Tal como advertiu Lênin, situações deste tipo são altamente instáveis e rapidamente se definem numa ou noutra direção. Isso foi o que aconteceu em 9 de abril de 1952, na insurreição popular que teve como epicentros La Paz e Oruro. Ali o exército foi derrotado e desmantelado, substituído por milícias populares de mineiros e camponeses, ao melhor estilo da Comuna de Paris.
Estes acontecimentos, banhados pelo sangue de pelo menos meio milhar de mortos, abriram caminho para a formação de um governo provisório sob o comando de Hernán Siles Suazo, dirigente do MNR, e o mais importante dirigente sindical na época, o mineiro Juan Lechín Oquendo, que foram literalmente instalados no Palácio Quemado pelas massas, à espera do retorno ao país de quem consideravam seu legítimo presidente, Victor Paz Estensoro.
A derrota e dispersão do exército foi um dos grandes feitos revolucionários de abril de 52. Mas houve outros: pouco depois, em julho do mesmo ano, foi aprovada uma nova legislação, reconhecendo o direito ao voto das mulheres, dos analfabetos e dos indígenas. Em outubro foram nacionalizadas as minas, principalmente as de estanho, tradicionalmente nas mãos de uma trinca de grandes proprietários conhecida como “os barões do estanho”, Simón Iturri Patiño, Carlos Victor Aramayo e Mauricio Hochschild.
Com a nacionalização, estas empresas passaram a fazer parte de uma nova corporação estatal mineira, a COMIBOL, enquanto o governo assumia o monopólio da exportação de estanho. Ao mesmo tempo, foram lançados programas para promover a industrialização do estanho na Bolívia e fomentar as atividades petroleiras no leste e no sul da Bolívia e, de forma geral, garantir a soberania nacional sobre os recursos naturais do país. Construir caminhos que permitissem unir o oeste do altiplano com as planícies do leste. De enorme importância é a partilha dos campos, institucionalizada com a lei de Reforma Agrária de agosto de 1953, que permite a destruição do latifúndio, concentrado nas regiões andinas, e a distribuição da terra aos indígenas, enquanto favorece a sindicalização dos camponeses.
A criação da COB (Central Operária Boliviana) aconteceu dias depois do triunfo da insurreição. A COB foi um dos pilares fundamentais de apoio ao novo governo, pela sua participação ativa em todas as áreas da administração estatal. Seu líder histórico, Juan Lechín Oquendo, foi eleito Secretário Geral da COB e nomeado Ministro das Minas e Petróleo do novo governo. Foi um dos líderes populares mais conscientes de que, sem armar adequadamente as milícias populares, a estabilidade do país estaria comprometida. Lamentavelmente, suas palavras caíram no vazio.
Como dizíamos, apesar dos feitos da Revolução Boliviana, não se pôde evitar um caminho descendente que a levou até a derrota, em 4 de novembro de 1964, com o golpe de Estado de René Barrientos Ortuño, sinistro personagem que, como presidente da Bolívia, orquestraria, junto com a CIA e o Pentágono, a caça e posterior assassinato de Che Guevara na Bolívia. Mas a derrota da revolução latejava em seus sonhos, muito tempo antes. Em primeiro lugar, pela política de alianças, porque ainda quando na fase inicial o poder se encontrava nas mãos de operários e camponeses armados, a representação política da revolução foi confiada ao MNR e seus líderes, expoentes de um setor social que, apesar do discurso anti-oligárquico, conservava estreitas ligações com essa classe e com a burguesia boliviana. Pior, tando Paz Estensoro quanto Siles Suazo demonstraram ser facilmente cooptáveis pela astuta diplomacia dos Estados Unidos. Ao contrário do habitual, esta não demorou a reconhecer o novo governo revolucionário de abril, apesar de que, neste mesmo momento, preparar uma invasão na Guatemala para depor o governo de Jacobo Arbenz.
A importância que o estanho tinha para a indústria militar dos Estados Unidos e sua acumulação de reservas minerais estratégicas, no tempo da guerra da Coréia, e o perigo de uma terceira guerra mundial, são, sem dúvida, fatores que explicam atitudes tão diferentes em um e outro caso. Enquanto Washington tinha muitos países que podiam lhe vender o café ou as bananas que lhe exportava a Guatemala, não havia tantos que pudessem oferecer o estanho necessário ao seu aparato industrial e militar. De fato, mais da metade das exportações bolivianas deste mineral era comprada pelo império norte-americano, o que o colocava em ótimas condições de negociação para impor suas políticas.
Além disso, a debilidade estrutural da economia boliviana, sem saída para o mar e marcada por séculos de opressão e exploração, tornava o país muito dependente dos programas de “ajuda” oferecidos por Washington. E as deficiências ideológica da pequena burguesia do MNR, com o pretexto de serem “realistas” e não contrariar os interesses imperiais, permitiram completar o círculo da submissão ao imperialismo. Um dos elementos mais importantes utilizados, com muita sagacidade, pelos USA foi a necessidade “técnica” de reconstituir o exército derrotado. De fato, dois anos depois do triunfo da revolução, foi reaberta a Escola Militar e começava o processo de liquidação das milícias populares. Seria o exército que, em 1964, daria o tiro de misericórdia na revolução. Em todo caso, foi esta necessidade de manter “boas relações” com o império o que assinou a pena de morte da Revolução Boliviana.
A Revolução Nacional não foi apenas uma revolução traída, mas também uma revolução interrompida. Um dos seus biógrafos conta que, enquanto Ernesto Guevara, de passagem pela Bolívia em sua segunda viagem pela América Latina, esperava para ser recebido por um alto funcionário do recente Ministério de Assuntos Camponeses, encontrou-se com um grupo de índios que chegaram para receber uns títulos de propriedade prometidos pela reforma agrária. Mas antes de chegar ao escritório do funcionário, foram organizados e pulverizados com inseticida, o que levaria Guevara a comentar numa de suas cartas que “o MNR faz a revolução com DDT”.
O drama de 1952 pode ser resumido assim: uma revolução feita por operários mineiros e camponeses que, juntos, empunharam armas e destruíram a sustentação fundamental da decadente ordem oligárquica, o exército, para depois ceder o controle do Estado aos aliados pequeno-burgueses do campo popular e aceitar que fossem eles, e não os que, até esse momento, tinham o poder real nas mãos, ou seja, as armas, os que fixariam os rumos do governo surgido de uma revolução mas cujo destino seria, doze anos depois, a derrota por uma contrarrevolução.
Outros fatores foram os seguintes:
a) A divisão agrária, por não ser acompanhada de intenso trabalho de organização e educação política, acabou recolocando os camponeses em sua pequena parcela, abandonando a cena política. Ocorreu aqui algo parecido com os camponeses da França analisados por Karl Marx, em seu “Dezoito de Brumário de Luis Bonaparte”: o fetichismo que cria a propriedade privada sobre uma ínfima – em geral misérrima – porção de terra os desmobilizou e, pior, durante algum tempo os converteu em bases de apoio de diversos governos anti-revolucionários, como o do já mencionado René Barrientos Ortuño.
b) Por outro lado, os setores mineiros não conseguiram estabelecer uma sólida e duradoura aliança com os camponeses, e o seu progressivo isolamento facilitou, poucas décadas depois, o enfraquecimento de sua organização até a desaparição como ator econômico e político de relevância na Bolívia contemporânea.
c) As estratégias norte-americanas para frustrar processos revolucionários, a partir do exterior – com pressões econômicas e políticas, mentirosas promessas de colaboração ou ameaças veladas ou abertas de intervenção – e também internamente, atraindo os setores de um certo nacionalismo popular que, em sua ilusão, sonhavam com um projeto nacional que não fosse socialista e radicalmente anti-imperialista, coisa que já se provou ser impossível.
d) Por último, a violação de uma lei pétrea de todas as revoluções e/ou processos de reformas radicais, pelo MNR na Bolívia: ou se avança decididamente para novas metas que aprofundem a estabilidade e a irreversibilidade das vitórias iniciais, ou o processo estanca, amolece e morre.
Mas, além deste breve balanço de vitórias e derrotas, hoje é justo e necessário render homenagem ao heroísmo e à abnegação demonstrada pelo povo boliviano, nas épicas batalhas de sessenta anos atrás. Os méritos revolucionários de abril não diminuem pela capitulação do governo instaurado pela revolução. O trabalho da insurreição não foi tão metódico e radical como seria de se desejar – sem entrar na questão de se as coisas poderiam ou não ser de outra forma.
Em todo caso, o certo é que, com o fechamento do ciclo revolucionário aberto naquela ocasião, passariam longos cinqüenta anos, anos de sofrimento, de miséria e de morte para o povo boliviano. Até que, no início deste século, se pusesse fim a tanta decadência, com os movimentos populares que, em 2005, culminariam com a eleição de Evo Morales à presidência da Bolívia, abrindo assim um novo e luminoso capítulo na história desse país irmão.
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A Revolução Nacional Boliviana, 60 anos depois. Artigo de Atilio A. Boron - Instituto Humanitas Unisinos - IHU