24 Setembro 2011
O papa se dirige à Igreja Evangélica da Alemanha. O ecumenismo vive e se faz a questão de Deus e do mal. O duplo desafio do protestantismo "evangélico" e da secularização. Como reavivar a fé sem diluí-la.
O discurso de Bento XVI em Erfurt foi publicado no sítio Chiesa.it, 23-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o discurso.
Ilustres senhoras e senhores!
Tomando a palavra, gostaria, em primeiro lugar, de agradecer por esta ocasião de lhes encontrar. A minha gratidão particular ao presidente [da Igreja Evangélica na Alemanha, Nikolaus] Schneider (na foto, ao lado de Bento XVI), que me deu as boas-vindas e me recebeu no meio de vocês com as suas corteses palavras. Gostaria de agradecer, ao mesmo tempo, por este dom especial, que o nosso encontro possa ocorrer neste lugar histórico.
Para mim, como bispo de Roma, é um momento emocionante encontrar aqui, no antigo convento agostiniano de Erfurt, representantes do Conselho da Igreja Evangélica da Alemanha. Aqui, Lutero estudou teologia. Aqui, ele foi ordenado sacerdote em 1507. Contra o desejos de seu pai, ele não continuou os estudos de jurisprudência, mas estudou teologia e se encaminhou para o sacerdócio na Ordem de Santo Agostinho.
Neste caminho, não lhe interessava isto ou aquilo. O que não lhe dava paz era a questão sobre Deus, que foi a paixão profunda e o impulso da sua vida e de todo o seu caminho. "Como posso ter um Deus misericordioso?": essa pergunta lhe penetrava o coração e estava por trás de toda a sua pesquisa teológica sua e de toda a luta interior. Para ele, a teologia não era uma questão acadêmica, mas sim a luta interior consigo mesmo, e isso, depois, era uma luta referente a Deus e com Deus
"Como posso ter um Deus misericordioso?". Sempre me surpreende novamente que essa pergunta tenha sido a força motriz de todo o seu caminho. De fato, quem se preocupa hoje com isso, mesmo entre os cristãos? O que significa a questão sobre Deus na nossa vida? No nosso anúncio?
A maior parte das pessoas, mesmo cristãos, dão por certo hoje que Deus, em última análise, não se interessa pelos nossos pecados e pelas nossas virtudes. Ele sabe, justamente, que todos nós somos apenas carne. Se hoje ainda se acredita em um além e em um juízo de Deus, então, quase todos pressupomos, na prática, que Deus deve ser generoso e, no fim, na sua misericórdia, irá ignorar as nossas pequenas faltas. Mas são verdadeiramente tão pequenas as nossas faltas? O mundo, talvez, não é destruído por causa da corrupção dos grandes, mas também dos pequenos, que pensam apenas em seus próprios interesses? Ele não é devastado, talvez, por causa do poder da droga, que vive, de um lado, pelo desejo de vida e de dinheiro e, de outro, pela avidez de prazer das pessoas nela viciadas? Ele não é, talvez, ameaçado pela crescente disposição à violência que, não raramente, se mascara com a aparência da religiosidade? A fome e a pobreza poderiam devastar a tal ponto partes inteiras do mundo se, em nós, o amor de Deus e, a partir dele, o amor pelo próximo, pelas criaturas de Deus, pelos homens fosse mais vivo?
As perguntas nesse sentido poderiam continuar. Não, o mal não é uma inépcia. Ele não poderia ser tão poderoso se verdadeiramente colocássemos Deus no centro da nossa vida. A pergunta: qual é a posição de Deus com relação a mim, como eu me encontro diante de Deus? – essa candente pergunta de Martinho Lutero também deve se tornar novamente, e certamente de uma forma nova, a nossa pergunta. Penso que esse é o primeiro apelo que devemos sentir no encontro com Martinho Lutero.
E, depois, é importante: Deus, o único Deus, o criador do céu e da terra, é algo diferente de uma hipótese filosófica sobre a origem do cosmos. Esse Deus tem um rosto e nos falou. No homem Jesus Cristo, ele se tornou um de nós: ao mesmo tempo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. O pensamento de Lutero, toda a sua espiritualidade era totalmente cristocêntrica. "O que promove a causa de Cristo" era, para Lutero, o critério hermenêutico decisivo na interpretação das Sagradas Escrituras. Isso, porém, pressupõe que Cristo seja o centro da nossa espiritualidade, e que o amor por ele, o viver juntos com ele oriente a nossa vida.
Ora, talvez vocês digam: Tudo bem, mas o que tudo isso tem a ver com a nossa situação ecumênica? Tudo isso é, talvez, apenas uma tentativa de evitar com muitas palavras dos problemas urgentes, nos quais esperamos progressos práticos, resultados concretos?
A esse respeito, eu respondo: o mais necessário para o ecumenismo é, sobretudo, que, sob a pressão da secularização, não percamos quase inadvertidamente as grandes coisas que temos em comum, que por si sós nos tornam cristãos e que permaneceram como dom e tarefa. Foi o erro da idade confessional ter visto, acima de tudo, apenas aquilo que separa, e não ter percebido de modo existencial aquilo que temos em comum nas grandes diretrizes da Sagrada Escritura e nas profissões de fé do cristianismo antigo. Esse é o grande progresso ecumênico das últimas décadas: que nos demos dessa comunhão e, rezando e cantando juntos, no compromisso comum pelo ethos cristão perante o mundo, no testemunho comum do Deus de Jesus Cristo neste mundo, reconhecemos tal comunhão como o nosso fundamento imperecível.
O perigo de perdê-la, infelizmente, não é irreal. Gostaria aqui de destacar dois aspectos. Nos últimos tempos, a geografia do cristianismo mudou profundamente e está mudando ainda mais. Diante de uma nova forma de cristianismo, que se difunde por um imenso dinamismo missionário, às vezes preocupante nas suas formas, as Igrejas confessionais históricas continuam muitas vezes perplexas. É um cristianismo de baixa densidade institucional, com pouca bagagem racional e ainda menos bagagem dogmática e também com pouca estabilidade. Esse fenômeno mundial coloca a todos nós diante da pergunta: o que essa nova forma de cristianismo tem a nos dizer de positivo e de negativo? Em todo o caso, ela nos coloca novamente diante da pergunta sobre o que é que permanece sempre válido e o que pode ou deve ser mudado, diante da questão acerca da nossa escolha fundamental na fé.
Mais profunda e, no nosso país, mais candente é o segundo desafio para toda a cristandade. Sobre ela eu gostaria de falar: trata-se do contexto do mundo secularizado, no qual devemos vivemos e testemunhar hoje a nossa fé. A ausência de Deus na nossa sociedade se torna mais pesada, a história da sua revelação, da qual nos fala a Escritura, parece relegada a um passado que se afasta cada vez mais. É necessário, talvez, ceder à pressão da secularização, tornar-se modernos mediante uma diluição da fé? Naturalmente, a fé deve ser repensada e sobretudo revivida hoje, de modo novo, para se tornar algo que pertença ao presente. Mas não é a diluição da fé que ajuda, mas sim o fato de vivê-la inteiramente no nosso hoje.
Essa é uma tarefa ecumênica central. Devemos nos ajudar nisso reciprocamente: a acreditar de modo mais profundo e mais vivo. Não serão as táticas que nos salvarão, que salvarão o cristianismo, mas sim uma fé repensada e revivida de um modo novo, mediante a qual Cristo, e com ele o Deus vivo, entre neste nosso mundo. Assim como os mártires da época nazista nos aproximaram mutuamente e suscitaram a primeira grande abertura ecumênica, assim também a fé hoje, vivida a partir do íntimo de nós mesmos, em um mundo secularizado, é a força ecumênica mais forte que nos recongrega, guiando-nos para a unidade no único Senhor.
Erfurt, 23 de setembro de 2011
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"A candente pergunta de Martinho Lutero deve se tornar novamente a nossa pergunta". Bento XVI em Erfurt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU