04 Abril 2011
"Cada um de nós pode (ou melhor, deveria) praticar privadamente a sua própria religião com o espírito de `benção original`, esquecendo a lúgubre ideia da culpa coletiva."
A análise é do filósofo e político italiano Gianni Vattimo, em artigo publicado no jornal La Stampa, 02-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O livro de Matthew Fox In principio era la gioia inaugura dignamente a nova coleção de teologia dirigida por Vito Mancuso e Elido Fazi, que é o seu editor (423 páginas). Pode-se e deve-se recomendá-lo certamente como fonte de edificação espiritual, como manual de meditação, como guia para uma possível experiência mística.
Como muito frequentemente a teologia não é edificante, assim a edificação parece se prestar pouco a discussões e argumentações teológicas. Todavia, podemos induzir que o livro é algo mais do que um banal texto de edificação do fato, em nada insignificante, de que, em consequência da sua publicação (1983), o autor foi expulso (1993), por iniciativa do então cardeal Ratzinger, chefe do Santo Ofício, da ordem dominicana, na qual havia sido discípulo de um grande teólogo como Chenu.
Se, para alguns, essa expulsão já é uma recomendação positiva, há uma outra que se descobre só depois da leitura das densas 300 páginas do livro, e que soa assim: "Todo este livro, na realidade, nada mais é do que a exposição da espiritualidade dos anawim , dos oprimidos" (p. 331).
Não se deve, por isso, motivar ulteriormente a simpatia que sentimos desde o início pelo livro e pelo seu autor. Mesmo que alguns elementos que o caracterizam suscitem alguma resistência: a sistematicidade da construção, que repete e também renova certos esquemas típicos dos manuais de espiritualidade da tradição católica, com a articulação da Via positiva, Via negativa, Via criativa, Via trasformativa; a fluvial abundância das citações que servem como epígrafes para os vários capítulos, onde é convocada toda a história da mística, da poesia, do pensamento espiritual não só do Ocidente (e que também tem o sentido positivo de oferecer uma espécie de suma antológica desse pensamento).
Principalmente, o que me atrai mas também repele no livro é o seu tom "positivo", que faz pensar às vezes em certas formas de nova religiosidade "americana" (New Age), às quais alimentamos respeito, mas que não sentimos como nossas.
O porquê de um certo incômodo com relação a este último aspecto do livro é também a sua substância teórica e teológica. A reação de suspeita é motivada justamente por aquilo que ainda domina a nossa experiência religiosa: somos todos filhos de Agostinho, diria Fox, isto é, submissos a uma educação que nos acostumou a pensar a história da salvação como redenção da queda original no pecado.
Não por acaso o título em inglês do livro é Original Blessing, Benção original. Nós, de original, sempre conhecemos principalmente o pecado: o ato de amor que deu lugar à criação, a benção original, foi logo manchado pela história da serpente e da maçã. A história das nossas relações com Deus é uma história de queda, pena e redenção, também esta, porém, operada só na força de um sacrifício, de uma pena que o próprio Filho de Deus carregaria sobre as costas, suportando a dor da Crucificação.
Mas, diz Fox, "ninguém acreditava no pecado original antes de Agostinho", como por exemplo Santo Irineu de Lyon, que escreveu 200 anos antes dele (p.49). A "benção", o ato de amor com que Deus cria o mundo e nos dá a vida, é uma ideia bíblica muito mais original. Agostinho construiu a doutrina do pecado original só nos últimos anos da sua vida, fundamentando-se em uma passagem da carta de Paulo aos Romanos (5,12) que ele leu como se dissesse que, com Adão, todos os homens pecaram e, por isso, trazem consigo a mesma culpa.
A filosofia ocidental (Kant: a ideia do "mal radical") retomou essa doutrina, considerando que a inclinação ao mal é um dado natural no homem, com consequências importantes também para o modo de entender a sociedade. E também todo o modo que herdamos de considerar o corpo, os sentidos, o erotismo está profundamente ligado a esse primado do pecado.
Fox se propõe a obra nada simples, de fato, de repensar o cristianismo fora da luz cintilante que o agostinismo lhe impôs. Certamente, não fazendo como se não se devesse mais falar de pecado – ele mesmo, nas quatro seções em que ilustra as suas quatro "vias", dedica páginas intensas a como se configura o pecado do ponto de vista de cada uma delas: que se reduz sempre a uma forma qualquer de resistência inerte (egoísta, conservadora) contra a positividade da relação com o mundo, com a natureza, com os outros.
Mas as desventuras que ele encontrou com a hierarquia católica advertem sobre a dificuldade também teórica da sua posição, pelo menos no plano doutrinal. A Igreja sempre deixou muita liberdade aos muitos místicos que Fox se refere no livro, de Hildegarda de Bingen a Meister Eckhart, de Juliana de Norwich a Simone Weil – certamente não a Giordano Bruno, que é um dos grandes inspiradores desse livro.
Mas, no plano da doutrina aceita e ensinada, o discurso era e ainda é muito mais rígido. Cada um de nós, e o próprio Fox e seus discípulos, pode (ou melhor, deveria) praticar privadamente a sua própria religião com esse espírito de benção, esquecendo a lúgubre ideia da culpa coletiva.
Mas, dessa ideia, dependem muitas "disciplinas", relações de poder, verdadeiros privilégios da casta (!) sacerdotal, para que uma proposta de renovação teológica e espiritual como essa não se confronto, no fim, com a necessidade de uma autêntica revolução. Talvez fosse a hora, mas lhes parece que é o tempo propício?
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