"Sofrimento não salva. O que salva é a consciência de que o sofrimento faz parte de nossa vida e que devemos conviver com ele para superá-lo", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar o Evangelho de Marcos (Mc 8,34-9,1).
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, professor de exegese bíblica, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) e padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze, cujo último é O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).
O texto sobre o qual vamos refletir hoje é tirado de Mc 8,34–9,1. Trata-se de um texto emblemático, o qual coloca duas condições para o seguimento de Jesus: o negar a si mesmo e tomar a cruz. Como isso foi compreendido pelos apóstolos e pela Igreja? A lógica da pregação de Jesus parece trágica. O que significa negar a si mesmo e tomar a cruz. Comecemos pela cruz.
A cruz, por causa de suas hastes vertical e horizontal, céu e terra, muito antes do cristianismo, já fazia parte do imaginário de povos. Os primeiros cristãos não a tinham como símbolo do cristianismo, mas o peixe, que era utilizado nas celebrações eucarísticas. Foi somente a partir do século segundo que a cruz foi identificada com os cristãos, os quais passaram a ser chamados de “os devotos da Cruz”. Com isso, a cruz passou a simbolizar a fé na morte e na ressurreição de Jesus, o perdão dos pecados, a salvação, o sofrimento de Jesus e do ser humano na labuta da vida.
Mais tarde, a cruz feita na testa aparece como sinal de acolhimento do cristão na comunidade, mas também de proteção contra o demônio e risco de vida. Por isso, diante de um perigo, há quem faz o sinal da cruz na testa e exclama: “Cruz Credo”, ou seja, “Creio na cruz que me salva”.
Na Idade Média, os portugueses que chegaram ao Brasil, assim como os espanhóis na América Latina, trouxeram nos navios a cruz e a espada. Em nome da cruz da catequese, eles mataram à espada os indígenas que não aceitavam a fé. Nos outeiros, nos montes, por onde passavam, os portugueses fincavam cruzes para simbolizar a posse, a conquista da terra para Cristo, isto é, para o império.
Também de Portugal veio o costume de colocar nas estradas, no local onde morria uma pessoa, uma cruz para defender a alma do falecido das garras do Capeta, que poderia levá-la para o Inferno. E é dessa tradição é que vem o ditado popular: “quem me deve foge de mim, como o diabo foge da cruz”. Esse costume de erguer cruzes à beira dos caminhos também servia para lembrar o sofrimento de almas penadas e errantes, saídas do Purgatório procurando encontrar os viandantes para lhes transmitir mensagens do Além.
Tomar a cruz não é sinal de conformismo com o sofrimento, como ensinou a Igreja, por muito tempo. Sofrimento não salva. O que salva é a consciência de que o sofrimento faz parte de nossa vida e que devemos conviver com ele para superá-lo. Jesus não morreu na cruz porque quis. Ele não precisava morrer na cruz para nos salvar. A cruz foi consequência de sua atuação político-religiosa.
Negar a si mesmo não significa anular-se, aniquilar-se ou desvalorizar-se, mas é, simplesmente, libertar-se dos seus próprios interesses, sair do seu mundo, do seu ego, descentrar-se. E é nesse sentido que a comunidade de Marcos entendeu como ela devia enfrentar a cruz que Jesus levou nas costas até o calvário. O mesmo poderia ocorrer com discípulos e discípulas do Reino.
Ser cristão é assumir a cruz e suas consequências. Pertencer ao grupo de Jesus era e é algo muito perigoso, subversivo. O império Romano, o dos primeiros séculos do cristianismo, estava matando os seguidores do Nazareno. O medo diante da morte, da perseguição romana, transformou-se, por causa da lembrança da cruz de Jesus, em resistência. A cruz de Jesus, entendida à época, por alguns, como fracasso, tornou-se sinal de vida, de ressurreição e como consequência da atuação política de Jesus e de seus seguidores.
Assim é a nossa vida, diante de cada tropeço é importante erguer a cabeça e recomeçar sempre, seja na vida pessoal seja na vida social e na política. Os primeiros cristãos recomeçaram a labuta. Não pararam diante da cruz. Essa cruz salva!
Recomeçar sempre! Acreditar sempre! Lutar sempre! A cruz, as cruzes estarão sempre por aí. Não há como fugir delas! Sofrer para salvar, não! Resistir, sim, de cabeça erguida, com a bravura de um atacante que quer sempre o gol. Eis a metáfora da cruz, o seu sentido profundo é o do perder para ganhar. Fazer um gol de placa na luta por um mundo de justiça, de paz e bem, apesar dos sofrimentos que a vida nos acarreta. Essa é a maturidade da fé que nos salva! Amém!