12 Junho 2020
16:01:1916:01:1916:01:2016:01:2416:01:2516:01:2516:01:2916:01:40“...vendo as multidões, Jesus compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas” (Mt 9,36).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 11º Domingo do Tempo Comum - Ciclo A, que corresponde ao texto de Mateus 9,36-10,8.
Depois do percurso quaresmal e pascal, retomamos o tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum” (Ano A), seguindo o evangelista Mateus. Trata-se de uma longa “caminhada contemplativa”, deixando-nos inspirar pelo modo de ser e de agir de Jesus. Estamos na escola do discipulado, deixando-nos modelar pelo Mestre de Nazaré: seu estilo de vida, sua forma de pensar e de viver a relação com o Pai, sua maneira de entender o ser humano, sua relação com os outros, seu modo de conhecer, de crer, de esperar, de amar, sua liberdade diante da religião e das tradições, sua atitude diante das vítimas, dos sofredores e escluídos...
E o evangelho de hoje nos indica que Jesus vive uma presença diferente e inspiradora no contexto social e religioso de seu tempo; seu olhar contemplativo vê o emergente, o alternativo, o novo..., nas mesmas realidades que para outros são uma lixeira de coisas mortas, de amargura e desalento. Ele tem uma sensibilidade para perceber o Reino de Deus onde aparentemente não está, onde outros veem uma massa de pecadores, de excluídos que não conhecem a lei, de impuros, de publicanos a serviço do império romano.
A partir do olhar misericordioso do Pai, Jesus também contempla a vida e vislumbra aquilo que o olhar superficial e acostumado à linguagem da sinagoga não é capaz de descobrir.
Ao deixar-se impactar pela “massa sobrante”, “cansada e abatida”, Jesus sente o despertar de suas entranhas compassivas. Esse é o sentido da verdadeira compaixão: “amor de entranhas”. Elas são o lugar onde estão localizadas as nossas emoções mais íntimas e mais intensas. Constituem o centro de onde brota o amor oblativo, que nos move a sair de nós mesmos para entrar em sintonia com a dor e a miséria do outro.
Quando os evangelhos falam da compaixão de Jesus como estremecimento de suas entranhas, eles expressam algo muito profundo e humano. A compaixão que Jesus sentia era obviamente muito diferente dos sentimentos superficiais ou passageiros de pesar ou de simpatia pela situação do outro. Pelo contrário, ela está relacionada com a palavra hebraica “rahamim”, que se refere ao ventre materno de Deus.
Na verdade, a compaixão é uma emoção tão profunda, central e poderosa em Jesus, que só pode ser descrita como um movimento de contração do “ventre de Deus”. Nele, está oculta toda a ternura e toda a bondade divina. Nele, Deus é pai e mãe, irmão e irmã, filho e filha. Nele, todos os sentimentos, emoções e paixões são uma só coisa no amor divino. Nesse sentido, a compaixão revela o abismo de ternura imensa, inesgotável e insondável de Deus.
Jesus, presença visível da compaixão do Pai, sofre ao ver a distância que havia entre o sofrimento dos enfermos, excluídos, desnutridos e estigmatizados pela sociedade, e a vida que o mesmo Pai queria para todos. Jesus, então, põe em marcha um “movimento compassivo”, constituídos de discípulos e discípulas, que se deixaram seduzir por Ele, para prolongar na vida o mesmo compromisso compassivo do Mestre.
Aqui, não se trata de adesão a um mero programa ou a uma doutrina, mas do convite a um seguimento (“vir comigo”), no calor e intimidade de uma relação pessoal que é dirigida a cada um em particular. Para isso, requer-se uma resposta sem reservas, com a marca da compaixão.
Sem compaixão, todo seguimento de Jesus torna-se vazio, burocrático, rotineiro, normativo...
A compaixão é princípio de humanidade e expressão da identidade do ser humano. Na sua essência, a pessoa pode ser definida como ser compassivo. Sem compaixão, não há humanidade, pois predominam a violência, a dureza de coração, a indiferença, o fechamento fanático da mente e da inteligência.
Enquanto compassivo, o ser humano se sente solidário, terno, próximo... tanto diante da situação dos outros seres humanos, vítimas de exclusão e violência, como diante da natureza ferida, de forma que todo ato de homi-cídio e de eco-cídio se converte em sui-cídio; matar a outra pessoa ou destruir a natureza é matar-se ou destruir-se a si mesmo. Sem compaixão, o ser humano se torna lobo solitário que se guia pela lei da selva. Sem compaixão, não há respeito pela vida dos outros, mas a guerra de todos contra todos.
De fato, a com-paixão não é um sentimento menor de “piedade” para com os que sofrem.
A com-paixão não é passiva, mas sim altamente ativa; é a capacidade de com-partilhar a própria paixão com a paixão do outro. Trata-se de sair de si mesmo e de seu próprio círculo e entrar no universo do outro enquanto outro, para sofrer com ele, para cuidar dele, para alegrar-se com ele e caminhar junto a ele, e para construir uma vida em comunhão e solidariedade.
Quem já foi tocado por um olhar de uma pessoa pobre ou sofredora, e deixou que este olhar penetrasse no fundo do seu coração, sabe que não sai “ileso” desta experiência; algo mudou dentro de si.
É uma experiência que o modifica profundamente, tanto que muitos interpretam como uma “experiência de Deus”, uma experiência de ter conhecido no rosto do pobre o rosto de Cristo.
As comunidades cristãs, ao longo de sua história, se moveram entre duas atitudes: a insensibilidade diante do sofrimento humano e a compaixão para com as vítimas. Hoje, só terá credibilidade o cristianismo se, como o bom Samaritano, deixa-se afetar pela situação do outro e realiza gestos compassivos.
Por isso, às notas tradicionais aplicadas à Igreja: una, santa, católica, apostólica (os tradicionalistas acrescentam uma quinta: “romana”, que não faz parte do Credo), poderíamos acrescentar outras duas: samaritana e compassiva. Não é evangélica uma Igreja só preocupada com ritos, leis, doutrinas, sacrifícios..., desprovida de compaixão. É na vivência compassiva que a Igreja mais se identifica com Aquele que é centro mesmo dela, o Jesus Compassivo. Afinal, somos seguidores de uma pessoa compassiva e não simples adeptos de uma religião ou de uma determinada doutrina.
E que é a Igreja senão a grande comunidade, constituída de pequenas comunidades, seduzidas por esta compaixão ousada de Jesus? A Igreja, para ser Igreja, precisa fundamentar-se na compaixão de Jesus.
Para que serve a Igreja se não mantém aceso o fogo da compaixão de Jesus que aquece os corações e transforma sem cessar as estruturas? Jesus não estabeleceu nenhum sistema de dogmas, normas e ritos. Não é o fundador de uma religião, mas de um movimento vivo, ativado pela compaixão e animado por uma esperança sempre nova, renovadora da vida. Para que servem todos os dogmas, normas e ritos se não despertam a compaixão nem ajudam à vida em sua incessante renovação, diversidade e criatividade?
O Evangelho deste domingo também nos possibilita considerar nossa interioridade como “Israel”; Jesus nos envia às “ovelhas perdidas” de nosso interior: afetos, desejos, sentimentos, paixões, feridas, fracassos, traumas... Re-ordenar a vida interior, evangelizar nossas profundezas para que sejamos presenças compassivas.
A evangelização começa pela própria interioridade. No percurso interior (caminho), levar a luz do Evangelho, a mensagem da boa-nova. Tudo deve ser integrado, acolhido, iluminado... para dar um novo sentido à nossa própria existência. Carregamos muitos “nomes”, muitas presenças que ainda não foram acolhidas.
A finalidade da evangelização das profundezas é colocar Deus em seu devido lugar em nossa vida. É retornar a Ele, vivendo plenamente nossa humanidade e deixando-a vivificar pelo seu Espírito. Trata-se, dessa maneira, de experimentar a salvação em todas as dimensões de nosso ser, de recompor-nos, reajustando-nos às leis fundamentais da vida.
É indispensável “unificar-nos” por dentro e descobrir que podemos re-inventar-nos a cada dia, a cada passo, conduzindo conscientemente nossa vida em direção à plenitude e não arrastá-la pelo chão.
Quem está “unificado” tem a coragem de redefinir-se, de eleger, de assumir-se; é alguém preparado para dar um salto arrojado e criativo.
A discreta presença do nosso Mestre interior nos move a acolher nosso potencial de ternura, de cuidado e de resistência diante de todas aquelas situações e forças que desintegram a vida e nos dividem por dentro. Então, nossa interioridade evangelizada fará emergir a força compassiva que estava reprimida.
Só poderemos ser compassivos na relação com os outros quando formos compassivos com nossa própria história de vida.
A compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro que sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais. Afirmamos ser seguidores(as) do Jesus Compassivo e, no entanto, a realidade deixa transparecer a trágica face da “sem-paixão”; está se tornando “normal” ser intolerante, violento, preconceituoso, racista, misógino,...
- Sua presença, frente ao contexto pandêmico, social, político, religioso..., revela “compaixão profética” ou “massa de manobra” da violência institucionalizada?
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Seguidor(a) de Jesus: movido(a) a compaixão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU