18 Outubro 2019
Com a ajuda de Aarão e Ur, Moisés, num gesto concreto, mantém os braços estendidos para sustentar o combate de Israel com a sua oração. Ele não pronuncia uma oração formal, mas levanta as mãos para o céu. O salmista exprime inquebrantável confiança em seu Deus, «o guarda de Israel». Paulo exorta Timóteo ao combate da fé. Numa parábola de alerta, Jesus apresenta um juiz sem vergonha e uma viúva obstinada para afirmar que Deus fará justiça aos «escolhidos que dia e noite gritam por Ele». A Palavra modula com força o poder da oração.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 29º Domingo do Tempo Comum - Ciclo C (20 de outubro de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
1ª leitura: “Enquanto Moisés conservava a mão levantada, Israel vencia” (Êxodo 17,8-13)
Salmo: Sl. 120(121) - R/ Do Senhor é que vem o meu socorro, do Senhor que fez o céu e a terra.
2ªleitura: A Escritura faz “o homem de Deus perfeito e qualificado para toda boa obra” (2 Timóteo 3,14;4,2)
Evangelho: “Deus fará justiça aos seus escolhidos que noite e dia gritam por Ele” (Lucas 18,1-8)
Estamos sempre diante do mesmo problema; problema que é nosso, que era o de Israel, no deserto, e também era o da comunidade para a qual Lucas escreveu seu evangelho. Foi dito que fomos libertados, que fomos salvos, que Deus está conosco... E, no entanto, temos de atravessar uma longa espera, temos de viver o tempo do silêncio de Deus e da violência dos homens, sem excluir a nossa própria violência.
Para os primeiros leitores de Lucas, o tempo se delongava e nada acontecia. A promessa ia, então, se ofuscando e a fé se enfraquecendo: daí a pergunta « o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?» Rezamos tanto e nada aconteceu!
Ora, temos aí uma resposta: Deus não intervém através de milagres para modificar o curso dos acontecimentos. Ele deixa o homem entregue à sua liberdade. Cabe ao homem dominar a terra e controlar seus demônios. E se isto é verdade, se não cabe a Deus fazer nada, então, por que rezar? O que significa a 1ª leitura? e a terceira?
Já expliquei que, conforme as Escrituras, Deus deixa as coisas irem até bem longe, até o limiar da morte. Sua hora é de quando a crise chega ao paroxismo. Mas falar de limiar da morte é no mínimo insuficiente: Jesus realmente passou pela morte e só então foi que Deus se manifestou. Dizem alguns que para provar nossa fé.
Pessoalmente, não gosto desta explicação: Deus não tem necessidade de aplicar nenhum teste, para saber até onde vai a nossa fé. Ao contrário, uma prova assim gratuita tem até uma aparência de sadismo. Parece-me ser preciso voltar à explicação precedente: tudo está verdadeiramente em nossas mãos e o respeito à nossa liberdade exige que Deus não intervenha, de modo a falsear o jogo da história que estamos construindo.
A sua intervenção situa-se justamente no instante em que a história chega ao fim. O fim da história não é o fim da vida, porque Deus, que é a vida, não tem fim. Temos, pois, assim recolocada a questão: nestas condições, por que rezar?
Lendo com atenção a parábola do evangelho, ficaremos chocados com uma espécie de contradição. Jesus apoia-se na história de um juiz que, cansado de guerra, acaba por fazer justiça só para ter paz, depois de ter feito esperar muito tempo. Isto para nos dizer: primeiro, que Deus também, e com mais forte razão, faz justiça; e, segundo, que Ele não faz esperar. Mas como servir-se do exemplo de alguém que faz esperar, para nos falar de Deus, que não faz esperar?
É que Deus parece fazer esperar e, como disse mais acima, manifesta-Se somente quando a crise atinge o seu ponto culminante. « Por que tardar?» é a pergunta que se fazem muitos Salmos. Por que não imediatamente? Bom, Jesus nos convida a superar esta «evidência» do atraso de Deus. Trata-se de acreditar que Ele está intervindo agora, que a sua intervenção é contemporânea à nossa oração e, também, que a nossa oração já é ela mesma «prova» de que Deus está intervindo: não podemos rezar sem que o Espírito já esteja aí.
Afinal, a hora da crise é sempre a hora em que vivemos. Crise não é só aquela do final. Por toda a jornada Israel teve de conduzir a sua vitória contra os amalecitas, contra a morte. É a cada instante que estamos na linha de cumeada, entre a vida e a morte. E, como já disse, a revelação que em Cristo nos foi dada mostra que até mesmo este limiar foi superado: a morte não foi poupada. E Paulo diz muito bem, que somos continuamente submetidos à morte a fim de que a vida, esta que não está destinada à morte, pois que a atravessou, ressurja continuamente.
Deus parece fazer esperar porque nós, em nossa miopia, só vemos a face da morte, na Páscoa em que vivemos. Só a fé nos faz descobrir a face da vida e faz brotar em nós a ação de graças, «a Eucaristia». É preciso rezar sempre porque é sempre a hora em que Deus, com as nossas injustiças, faz nossa justiça. A hora em que, para nós, vem o Filho do homem.
Esta parábola se situa num contexto social e jurídico que pouco ou nada tem a ver com a ordem atual das coisas. Pouco importa! Jesus nos põe na presença de um juiz munido de todos os poderes, mas desprovido de qualquer moralidade. Diante de uma viúva que é só (não se fala de sua parentela) e sem defesa. Ela acaba de obter ganho de causa por força de sua perseverança.
No princípio, em sua condição de impotência diante do juiz, é uma imagem de cada um de nós. Tomemos consciência de que não temos nenhum título que fazer valer, nenhum «mérito» que (pode) possa justificar a benquerença divina. Não confiemos nem mesmo nos «bons sentimentos» que podemos experimentar de tempos em tempos, nem nas qualidades que nos são reconhecidas por nossos familiares. A viúva da parábola pede somente que lhe seja feita justiça: nós nem isso podemos pedir, porque a justiça arrisca de nos ser fatal. Deixemo-nos convencer que não temos nada de agradável que não nos tenha sido dado. A nossa verdade não é uma reivindicação de justiça, mas uma ação de graças. Felizmente, nossas exigências de justiça não são ouvidas por Deus. «Não entres em julgamento com teu servo, Senhor, pois frente a ti nenhum vivente é justo», diz o salmo 143. Isto, porém, não deve nos entristecer nem deprimir, mas, ao contrário, tranquilizar-nos e nos libertar. Com Cristo, já estamos justificados e podemos sair do regime da justiça para entrar no do amor.
Para a viúva da parábola, tudo finalmente entrou em ordem, ao preço de muito tempo e muitas dificuldades. É que ela estava diante de um juiz que era todo ao contrário de Deus. Como dissemos, a parábola está construída sobre este contraste. Se até mesmo um juiz perverso acaba por ouvir o pedido de uma viúva sem defesa, por mais forte razão, Deus, que está mais além da justiça, porque é amor, ouvirá os seus filhos. O texto, no entanto, diz que Ele lhes fará justiça. À luz do conjunto do Novo Testamento, devemos compreender que isto significa que os tornará justos, que os justificará. Estes filhos de Deus «gritam por ele dia e noite» e, no entanto, «Ele não os fará esperar». Marcos 11,24 vai até mais longe: «Tudo quanto suplicardes e pedirdes crede que já o recebestes e vos será dado.» Nesta perspectiva, para nós, a oração é uma tomada de consciência do dom de Deus, de um dom já oferecido. Mais isto só: este dom só vem a ser ativo em nós se cremos sinceramente que foi Deus quem o fez.
Notemos que esta fé é ela mesma um dom do Espírito. E que, igualmente, é o Espírito que nos foi dado em resposta à nossa oração. Por Ele e com Ele, nos tornamos capazes de viver no amor a situação que motivou a nossa oração. No amor e na paz que decorrem daí. No fundo, nosso único trabalho consiste em acolher, em consentir nisto que, sem cessar, Deus nos dá. Consentimento este que habita a ação de graças'.
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Por que rezar sempre? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU