01 Março 2019
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 8º Domingo do Tempo Comum, 3 de março (Lucas 6, 39-45). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na última parte do discurso da planície proferido por Jesus depois de descer da montanha com os 12 discípulos por ele tornados apóstolos, Lucas recolheu frases diversas, palavras e imagens que ele define como “parábolas” e que dizem respeito sobretudo à vida dos fiéis nas comunidades.
Jesus as havia dirigido para alertar os discípulos sobre os comportamentos de alguns religiosos que estavam em cena na época, escribas e fariseus, mas Lucas as atualiza, atualiza-as para a sua Igreja.
De fato, as mesmas expressões no Evangelho segundo Mateus são utilizadas com maior clareza polêmica em relação às lideranças de Israel (cf. Mt 7, 16-18; 12, 35). Essas breves sentenças são expressadas mediante acoplamentos: dois cegos, discípulo e mestre, tu e o teu irmão, duas árvores, dois homens, duas casas (cf. Lc 6, 46-48). Esse estilo certamente pertencia à técnica retórica oral, voltada a facilitar a impressão das palavras na mente dos ouvintes.
O primeiro ensinamento brota de uma pergunta retórica feita aos ouvintes: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?”. A advertência é evidente, mas a quem é dirigida? A cada discípulo, tentado a não reconhecer as próprias incapacidades, os próprios erros, mas habitado pela pretensão de querer ensinar os outros. Porém, também são dirigidas aos “guias” da comunidade cristã, aqueles que, em seu interior, detêm a autoridade e ensinam os outros, mas às vezes são afetados pela cegueira: denunciam os pecados alheios, condenam severamente os outros, sem nunca um exame sobre si mesmos e sobre o próprio comportamento.
No Evangelho segundo Mateus, Jesus advertiu esses “cegos guiando cegos” (Mt 15, 14; 23,16), e, no quarto Evangelho, testemunha-se um extenso ensinamento seu sobre a cegueira dos homens religiosos, que não reconhecem que são cegos e, portanto, permanecem em uma condição de pecado, sem possibilidade de conversão (cf. Jo 9, 39-41).
É claro que os homens religiosos e nós também, quando, na comunidade cristã, temos a tarefa de guiar, admoestar e corrigir aqueles que nos são confiados, podemos ser precisamente tentados a ensinar o que não vivemos e talvez a condenar nos outros aqueles que são os nossos pecados: denunciando as falhas alheias, defendemo-nos da consciência que nos condena e nem as reconhecemos também como nossas.
Por isso, é preciso uma grande capacidade de autocrítica, um atento exercício ao exame da própria consciência, saber reconhecer o mal que nos habita, sem expiá-lo morbidamente no outro.
Segue-se, depois, uma frase sobre a relação entre discípulo e mestre, um verdadeiro chamado à formação: o discípulo está no seguimento do mestre, aceita ser instruído e formado por ele, dispõe-se a receber com gratidão o que lhe é ensinado. Além disso, de acordo com a tradição rabínica, o discípulo aprende não apenas da boca do seu mestre, mas estando ao lado dele, compartilhando sua vida em uma atitude humilde que não presume e nunca se coloca no espaço de uma autossuficiência que desmentiria a sua qualidade de discípulo.
Um discípulo, portanto, não pode ser mais do que seu mestre e, quando tiver completado a formação, será grato ao mestre pelo caminho percorrido, até poder se tornar também ele mestre. O mestre é autêntico quando faz o discípulo crescer e, com humildade, sabe transmitir o ensinamento que ele mesmo recebeu; o discípulo é um bom discípulo quando reconhece o mestre e tenta se tornar ele também, vivendo todas as exigências do discipulado.
Porém, é preciso dizer também que Jesus não se limita a colocar a relação mestre-discípulo dentro da tradição rabínica, mas a transcende, indicando como o seu seguimento envolve ir aonde quer que ele vá (cf. Ap 14, 4), viver envolvido na sua vida até compartilhar o resultado da sua morte, portanto, a ressurreição. O caminho de Jesus, o da vida-morte-ressurreição, é o caminho do discípulo e só pode ser percorrido mediante a atração da graça de Cristo, sem confiar nas próprias forças.
Eis, depois, uma advertência na segunda pessoa do singular, que merece ser relatada por extenso: “Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho? Como podes dizer a teu irmão: irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho, quando tu não vês a trave no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão”.
Sim, o irmão cristão, na vida cotidiana da comunidade, pode ser chamado a corrigir o irmão, porque essa é uma necessidade da vida comum: caminhar juntos envolve ajudar-se reciprocamente, a ponto de se corrigir.
Mas, precisamente em referência à correção, Jesus se torna exigente: esta nunca pode ser uma denúncia das fraquezas do outro; não pode ser uma pretensa manifestação de uma verdade que o humilha; nunca pode sequer parecer um julgamento nem a antessala de uma condenação já pronunciada no coração.
Infelizmente, na vida eclesial, muitas vezes a correção, em vez de causar conversão, perdão e reconciliação, produz divisão e inimizade, acabando por separar em vez de favorecer a comunhão. O pecado dos outros nos escandaliza, perturba-nos, convida-nos à denúncia, e isso também nos impede de ter um olhar autêntico e real sobre nós mesmos. O que vemos nos outros como “trave”, sentimo-lo em nós como cisco; o que condenamos nos outros, desculpamo-lo em nós mesmos.
Então, nós merecemos o julgamento de Jesus: “Hipócrita!”, porque hipócrita é quem é habitado por um espírito de falsidade, que não sabe reconhecer o que é verdadeiro e, de fato, está dividido entre aquilo que aparece e aquilo que está escondido, entre o interior e o exterior.
Nessa exortação, Lucas faz ressoar significativamente várias vezes o termo “irmão”, entendendo-o em sentido cristão e aplicando-o a todas as dimensões da vida eclesial. E se Mateus, para a correção fraterna, exige uma verdadeira práxis, um procedimento a ser adotado na comunidade cristã (correção face a face, correção na presença de uma ou duas testemunhas, apelo à comunidade: cf. Mt 18, 15-17), Lucas delineia um caminho para que a correção seja de acordo com o Evangelho: trata-se de nunca se sentir juiz do irmão, de se reconhecer pecador e solidário com os pecadores, de corrigir com humildade seguindo em tudo o exemplo do mestre, Jesus.
Essa série de sentenças é concluída pela imagem da árvore boa, que é tal porque produz frutos bons, que, ao contrário, não podem ser colhidos se a árvore for ruim. Jesus chama novamente à realidade e convida os ouvintes a discernir o verdadeiro do falso discípulo com base no critério dos frutos trazidos pela sua vida. Não as palavras, as declarações, as confissões, nem mesmo a oração são suficientes para dizer a autenticidade do seguimento de Jesus, mas é preciso olhar para o comportamento, para os frutos das ações realizadas pelo discípulo.
O coração é a fonte do sentir, querer e agir de todo ser humano. Se há amor e bondade no coração, então o comportamento da pessoa também será amor, mas, se o mal domina no coração, as ações que a pessoa realiza também serão mal. O discípulo, por isso, é chamado ao exercício do discernimento!
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O cisco e a trave - Instituto Humanitas Unisinos - IHU