08 Dezembro 2017
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 2º Domingo do Advento, 10 de dezembro (Mc 1, 1-8). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O trecho do Evangelho segundo Marcos proposto para este domingo pela liturgia contém o título da obra, particularmente significativo e, portanto, a conformidade de tal título com a profecia de Isaías que se cumpriu na missão de João, o precursor.
A primeira palavra do título é “início” (arché), a mesma com a qual se abre o livro do Gênesis, portanto, o livro das Sagradas Escrituras da antiga aliança. De fato, inaugura-se uma nova história, uma nova criação, com a proclamação da “boa e bela notícia” (euanghélion), da alegre mensagem referente ao evento de Jesus, o Messias, o Filho de Deus.
O desígnio da salvação chegou ao cumprimento, o Antigo Testamento, que estava grávido do Messias, se cumpriu: agora, há como que um novo início, o início do tempo messiânico. E se, nos profetas, a boa notícia dizia respeito à vinda de Deus entre os humanos, à nossa história (“Eis que o Senhor Deus vem!”, Is 40, 11), agora esta notícia indica que tal vinda se realizou em Jesus Cristo.
Jesus, cujo nome Jeshu’a significa “o Senhor salva”, é o Ungido do Senhor, o Messias, o descendente de Davi esperado por Israel particularmente naqueles dias. Jesus, esse homem galileu nascido de Maria, é o Cristo e, como tal, é o Filho de Deus de acordo com os Salmos (pense-se apenas nos Salmos 2 e 110); é o Filho de Deus por ser aclamado pela sua comunidade como ressuscitado, Kýrios, Senhor vivo; é o Filho de Deus proclamado no fim do Evangelho pelo centurião romano, aos pés da cruz (cf. Mc 15, 39).
Quando Marcos põe por escrito a sua obra, a messianidade e a filialidade divina de Jesus são proclamadas pela Igreja; portanto, com esses títulos, indica-se em Jesus muito mais do que o Messias humano: é Deus que veio ao meio de nós! Esse início, porém, não foi um evento que aconteceu por acaso, mas está inscrito na história de um povo, Israel, é um evento que leva ao cumprimento as Sagradas Escrituras, sobretudo a profecia de Isaías.
O Evangelho inicia se inserindo no rastro da Palavra de Deus já revelada, porque – como escreve o apóstolo Paulo – foi preanunciado nas Escrituras por meio dos profetas (cf. Rm 1, 2). O Cristo havia sido prometido por Deus e havia sido invocado e esperado pelos pobres e humildes crentes no Senhor: portanto, agora, tudo se cumpre como (kathós) havia sido escrito.
O aparecimento de João está conforme com a palavra profética de Isaías sobre a voz que grita no deserto (cf. Is 40, 3) e a de Malaquias que anuncia um mensageiro enviado diante do Senhor (cf. Ml 3, unido a Ex 23, 20).
Eis, então, que João Batista, o Batizador, entra em cena para revelar a vinda de Jesus, já presente na história, discípulo entre os seus discípulos, mas escondido, ainda não manifestado na sua identidade. Assim como Malaquias havia revelado que a vinda de Deus seria precedida por um mensageiro que abriria o caminho diante do seu rosto, assim aconteceu.
No deserto, João é a voz de alguém que grita: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas”. A profecia, que permanecia silenciosa há séculos, tem novamente uma voz e fala com o convite de sempre à conversão, a retornar ao Senhor.
De acordo com a tradição judaica, será o profeta Elias, mensageiro anunciador do fim dos tempos e do grande e terrível dia do Senhor (cf. Ml 3, 23), que fará ressonar novamente a palavra do Senhor. Sim, João é o novo Elias (cf. Mc 9, 13), que entra em cena no deserto, na região circundante ao Jordão, antes que ele desemboque no Mar Morto.
Ele usa um hábito como o de Elias (cf. 2Re 1, 8) e dos profetas (cf. Zc 13, 4); a sua comida são os produtos espontâneos da natureza, raízes e mel selvagem; a sua vida ascética, rude, é a de um homem que não frequenta nem os poderosos nem os locais urbanos.
No entanto, “toda a região da Judeia e todos os moradores de Jerusalém”, expressões enfáticas, vão ao encontro dele na solidão do deserto. Sobre João Batista, temos notícia não só nos Evangelhos, mas também em fontes judaicas (incluindo especialmente Flávio Josefo), que nos testemunham o seu sucesso: ele tinha um grande séquito entre os filhos de Israel, especialmente entre os crentes simples, que mendigavam de Deus misericórdia e perdão e que certamente não podiam se vangloriar de praticar as observâncias prefixadas por homens religiosos que não conheciam o duro esforço de viver.
Na mesma região – hoje sabemos – havia diversos grupos, entre os quais a comunidade essênica do Qumran, na qual se esperava o Messias, praticavam-se imersões para obter a purificação e se ofereciam a Deus como sacrifício a escuta, o estudo das Sagradas Escrituras e o louvor, em uma liturgia comum que havia renunciado aos sacrifícios do templo de Jerusalém.
João, talvez, fazia parte desses grupos? Ele certamente os conhecia, mas não temos notícias suficientes para colocá-lo dentro de um desses movimentos religiosos, embora o seu pertencesse à mesma constelação.
João pede a preparação de um caminho para o Senhor e a conversão em vista da remissão de pecados. Por que preparar um caminho para o Senhor? Porque o Senhor nunca pede que abramos um caminho diante de nós e a percorramos para ir até ele, mas exatamente o contrário: ele pede para limpar o caminho sobre a qual ele nos alcança, vem até nós.
O caminho não é nosso, mas dele, do Senhor! O encontro se deve à sua graça, à sua busca de cada um de nós, não a uma iniciativa nossa. De fato, ele vem no caminho da misericórdia e do perdão, que só ele pode traçar: nós só podemos encontrá-lo se reconhecermos o nosso pecado. De fato, o pecado é contradição com o Senhor, mas é a única possibilidade para que tomemos consciência de encontrar o Senhor. Só um coração despeçado, um coração que se reconhece na culpa e confessa o próprio pecado, pode experimentar Deus.
Não por acaso, quando Moisés pede a Deus: “Ensina-me o teu caminho, e assim ficarei sabendo que gozo do teu favor” (Ex 33, 13), a versão aramaica do Targum parafraseia: “Ensina-me o caminho da tua graça, para que eu possa conhecer a tua misericórdia”. O Senhor nos precede sempre, no chamado, no encontro, no amor, “o seu rosto caminha conosco” (cf. Ex 33, 14).
Custamos muito a compreender isso em profundidade, mas, quando ele vem a nós, revela-se precisamente o seu amor gratuito, a sua graça. Certamente, depois, podemos seguir os seus rastros amando-o e escutando-o com todo o coração e toda a vida (cf. Dt 10, 12), mas o caminho continua sendo dele. Ou, melhor, Jesus dirá: “Eu sou o caminho” (Jo 14, 6).
O pedido de João, além disso, também é o da conversão, do retorno ao Senhor, que encontra no gesto do batismo um sinal e, na confissão dos pecados, uma palavra: ambos, sinal e palavra, atestam a verdade daqueles que acorrem ao Batizador, não para fugir da cólera de Deus (cf. Mt 3, 7; Lc 3, 7), mas para se colocarem na condição de encontrar o Senhor, aquele que vem até ele.
João revela, indica, manifesta Jesus e, depois, o imerge, o batiza (cf. Mc 1, 9). Depois, desaparece imediatamente da cena. Ao contrário dos outros sinóticos, Marcos, sempre breve e essencial, testemunha apenas estas palavras do Batista: “Depois de mim (opíso mou) virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo”.
É o modo para expressar como João desempenha o seu ministério de precursor: a sua tarefa e missão é introduzir outro, Jesus, alguém do qual ele ainda não diz o nome, mas que já está presente ou, melhor, é um discípulo dele, está no seu seguimento.
João sabe discernir que ele é o mais forte, é justamente ele aquele Senhor do qual ele é indigno de ser escravo. Este é um grande mistério, diante do qual só podemos fazer silêncio e adorar. O discernimento de João sobre Jesus é apenas graça, se deve apenas à revelação de Deus.
E João, na mais radical obediência, reconhece que foi mandado para manifestar um discípulo dele: aquele que vem depois dele está prestes a passar à frente dele (cf. Jo 1, 30). Esse discípulo deve manter o lugar central, por isso, João sempre se mostra descentrado, inteiramente inclinado a indicar aquele ao qual os olhares de todos devem ir. Porém, ele confessa também a diferença entre o seu batismo e o que será dado por Jesus, duas imersões diferentes: uma na água, a outra no Espírito Santo, no Espírito de Deus que o Messias detém em abundância e plenitude (cf. Is 11, 1-2), aquele Espírito de Deus que Jesus dará aos que creem nele.
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