04 Julho 2018
Como discernir o verdadeiro do falso profeta? Temos de ser prudentes e atentos aos sinais dos tempos... Um profeta leva sempre uma mensagem de esperança. Por outro lado, a sua palavra deve necessariamente incomodar.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Ex 2,2-5
2ª leitura: 2 Co 12,7-10
Evangelho: Mc 6,1-6
A reflexão a seguir é de Raymond Gravel (1952-2014), padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, comentando as leituras do 14º Domingo do Tempo Ordinário - Ciclo B. A tradução é de Susana Rocca.
No Prólogo de São João podemos ler que, em relação a Cristo, o Verbo de Deus, “Ele veio para a sua casa, mas os seus não o receberam” (Jo 1,11). Com efeito, eis aqui o drama da Aliança de Deus e os homens; essa aliança é encontro, aceitação, abertura ao outro, transformação, novidade, e essa aliança só pode se expressar através dos profetas, e eles não caem nunca do céu; eles nascem sempre de baixo, na espessura da história humana. É por isso que é difícil reconhecê-los, apreciá-los e escutá-los. As três leituras de hoje nos apresentam profetas: Ezequiel, Paulo e Jesus de Nazaré. Que tipo de profetas eles são eles?
Um ser humano ordinário. Nas três leituras de hoje, nos damos conta rapidamente que os profetas são, antes de tudo, seres humanos bem comuns, com seus limites e fragilidades. Ezequiel, um sacerdote que viveu no tempo de Nabucodonosor e do Exílio de Babilônia (598-587 a.C), é um profeta desconcertante, de genialidade diversa e complexa. Ele é como os israelitas do seu tempo, esmagados pela derrota, desesperados e deportados para a Babilônia. É de joelhos que ele toma consciência de que Deus acompanha seu povo na angústia e que tem necessidade dele para exprimir a sua presença: “Entrou em mim um espírito que me fez ficar de pé. Então eu pude ouvir aquele que falava comigo” (Ez 2,2).
É o mesmo Paulo que escreve a sua segunda carta aos Coríntios: “Eu estava tão preocupado e aflito que até chorava” (2 Co 2,4). Paulo toma consciência de sua pequenez humana perante a grandeza da missão à qual ele se sente chamado: “Para que eu não me inchasse de soberba por causa dessas revelações extraordinárias, foi me dado um espinho na carne (em grego: skolops), um anjo de Satanás para me espancar, a fim de que eu não me encha de soberba” (2 Co 12,7). Será que é um handicap físico, uma doença crônica ou seus adversários missionários eloquentes e autoritários que, com antecedência, ele havia chamado de “servidores de Satanás” (2 Co 11,13-15)? Não sabemos nada sobre isso! Uma coisa é certa: Paulo é muito humano e ele o experimenta na sua carne, (em grego: sarkos), que designa a fragilidade da existência humana.
Jesus de Nazaré não é também um homem comum? De maneira que mesmo a sua família achava que ele era perturbado: “Os parentes de Jesus foram segurá-lo, porque eles mesmos estavam dizendo que Jesus tinha ficado louco” (Mc 3,21). E no trecho que nós temos hoje o evangelista Marcos, retomando o que as pessoas da sua cidade diziam dele, escreve: “Esse homem não é o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E suas irmãs não moram aqui conosco?” (Mc 6,3). Dizer que Jesus é o carpinteiro, o filho de Maria, pode querer dizer duas coisas: 1) que seu pai, José, faleceu; se não Marcos haveria escrito que Jesus era o filho do carpinteiro ou, 2) que se trata de uma família de reputação duvidosa, pois, na época, não se dizia nunca que alguém era filho da sua mãe. Uma coisa é certa: Jesus de Nazaré foi um homem completamente comum, de um meio bem comum, de uma cidadezinha escura que fez que o evangelista João dissesse: “Natanael disse: ‘De Nazaré pode sair coisa boa?’” (Jo 1,46).
Um profeta leva sempre uma mensagem de esperança. Por outro lado, a sua palavra deve necessariamente incomodar. O profeta é aquele que anuncia as situações de injustiça, que questiona, que interpela e que convida à mudança, à novidade. Frequentemente nós somos reticentes às mudanças; atolamo-nos em velhos hábitos e desculpamos a nossa passividade apoiando-nos em doutrinas e regras que determinamos serem a Verdade. Porém, não há verdades totalmente acabadas, absolutas, imutáveis, inalteráveis, e para que lembremos Deus deve necessariamente passar por mulheres e por homens como nós. Daí a rejeição, a negação e a condenação dos profetas. O teólogo Michel Hubaut escreve: “Se Deus tivesse desejado que o homem pegasse o caminho errado como se diz, ele não teria conseguido fugir disso...”. Pois se há uma constatação na história da revelação judeu-cristã, ela é exatamente essa propensão do homem a querer encontrar Deus nas manifestações extraordinárias, milagrosas e grandiosas. E, ainda, na linha da história, percebemos que Deus prefere as teofanias do quotidiano mais do que as teofanias do grande espetáculo”. E, como prova, seu Filho nasceu como todo mundo: uma criança; ele se tornou carpinteiro como seu pai e ele foi crucificado como um vulgar bandido. Hubaut acrescenta: “Não podemos dizer que esse Messias veio lisonjear a espera das multidões”.
Contudo, todos os profetas sabem: a Palavra, a Boa nova que eles têm a anunciar será automaticamente mal recebida. A novidade perturba, incomoda. Ela impede de ficar na monotonia. A novidade suscita perplexidade, rejeição. O profeta Ezequiel experimentou-a: “Criatura humana, vou mandar você a Israel, a esse povo rebelde, que se rebelou contra mim. Eles e seus antepassados se revoltaram contra mim até o dia de hoje. Os filhos são arrogantes e têm coração de pedra” (Ez 2,3-4). São Paulo o expressa também desta maneira: “E é por isso que eu me alegro nas fraquezas, humilhações, necessidades, perseguições e angústias, por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Co 12,10). E o evangelho de Marcos faz dizer a Jesus este célebre ditado: “Um profeta só não é estimado em sua própria pátria, entre seus parentes e em sua família” (Mc 6,4), pois é preciso reconhecê-lo, alguns dias a humanidade de Deus nos choca. Preferiríamos um Deus autoritário, todo-poderoso, que impõe as suas recompensas e os seus castigos... Felizmente, esse Deus não existe!
Como discernir o verdadeiro do falso profeta? Temos de ser prudentes e atentos aos sinais dos tempos. Infelizmente, na Igreja atual, alguns acham que são verdadeiros profetas pela sua intransigência, pela sua severidade e pelo que eles falam. Mas, atenção! O fato de ser criticado, rejeitado ou ainda de deixar indiferentes às pessoas que me rodeiam, não fazem de mim automaticamente um profeta. A Palavra que eu levo deve ser uma Boa Nova, uma Palavra que liberta, que salva e que dá esperança. E é por isso que os verdadeiros profetas não são sempre aqueles que nós pensamos. Eles são dificilmente apoiados pelas instituições, mesmo pela Igreja... Pois a Igreja, ela também não gosta do que incomoda, não gosta de mudança, de novidade, e os profetas são frequentemente suspeitos. O teólogo francês Hyacinthe Vulliez escreve: “Quando queremos nos desfazer de um profeta é habitual tratá-lo de anormal, de atípico e mesmo de estrangeiro, o que permite distanciá-lo e mesmo fazê-lo desaparecer. Não gostamos da pessoa que tem um discurso diferente do convencional. Ele incomoda, ele faz sair da monotonia de sempre, e isso o pessoal não gosta!”
O verdadeiro profeta de hoje deve necessariamente ter a linguagem das mulheres e dos homens de hoje, caso contrário ele deixará indiferentes as pessoas mais vulneráveis da sociedade: os pobres, os pequenos, os desprezados, os feridos da vida. A sua palavra deve denunciar as injustiças que sofrem e lhes permitir de ter esperança. Pode ser que o verdadeiro profeta não seja católico, nem mesmo cristão. A sua pertença a uma confissão particular não tem nenhuma importância. O profeta é aquele que restaura a justiça, que devolve a dignidade aos excluídos e aos feridos da vida e que traz esperança num mundo melhor.
Concluindo, o versículo evangélico que diz: “E Jesus não pôde fazer milagres em Nazaré...” (Mc 6,5) corre o risco de nos surpreender. Nós temos lá a prova de que um milagre não é um passe de mágica ou um prodígio que vira as leis da natureza; o milagre é um sinal que fala da proximidade daquele que faz com quem vê. O que significa que para que o milagre, o sinal possa se realizar, é preciso uma inter-relação, uma fé, uma confiança entre quem a dá e quem a recebe, se não nem a Palavra nem o sinal poderão produzir seus frutos. Se isso foi verdadeiro no tempo de Jesus, assim também é ainda hoje.
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Profetas desconcertantes! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU