03 Fevereiro 2017
Repartir é a palavra mestra da conduta cristã. O apelo vem de longe: Isaías já nos convida a isto. Paulo não fala em repartir, mas evoca hoje «a fraqueza de Deus». E, esta fraqueza, Deus a dá para nós, em partilha, quando repartimos o Corpo do Cristo. Nele, mesmo sem saber, tornamo-nos «luz do mundo» e «sal da terra».
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, comentando 5º Domingo do Tempo Comum - Ciclo A. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Referências bíblicas:
1ª leitura: “Tua luz brilhará como a aurora” (Isaías 58,7-10)
Salmo: Sl. 111(112) - R/ Uma luz brilha nas trevas para o justo, permanece sempre o bem que fez.
2ª leitura: “Fui à vossa cidade anunciar-vos o mistério” do Cristo crucificado (1 Coríntios 2,1-5)
Evangelho: “Vós sois o sal da terra (...). Vós sois a luz do mundo” (Mateus 5,13-16)
O sal se perde nos alimentos que lhe tomam emprestado o sabor. Assim como o fermento na massa, ele se torna invisível. Podemos ver nesta imagem os discípulos do Cristo imersos no mundo. A maior parte deles não tem condição de fazer ouvir a sua palavra nem de agir conforme a sua identidade de cristãos, mas o que dá gosto à terra, e ao mundo, é a caridade. Esta caridade que, mesmo sem dizer de onde vem, pode contribuir para dar um rosto humano às nossas relações, às nossas instituições, às nossas sociedades. Se o sal... Se todo o sal do mundo perdesse o seu poder de salgar, não haveria remédio, pois nada além dele é capaz de salgar. Esta é a grandeza e a responsabilidade dos discípulos de Jesus: não há nenhum «produto em substituição». O amor, assim como Jesus o manifestou na Páscoa, é a última chance da terra. Não somos discípulos de Cristo para nós mesmos apenas, para a nossa própria «salvação»: somos discípulos para os outros, para a terra. A terra tem todo o direito de nos rejeitar, se lhe recusamos o sabor devido. E esta não é uma situação confortável: podemos ser rejeitados e esmagados com os pés seja porque «salgamos» seja porque não «salgamos».
Enquanto o sal mistura-se invisível aos alimentos, a luz não se pode esconder; ao contrário, ela mesma se mostra. A luz do mundo é Cristo (João 9,5). Significa que, tomando por referência as suas palavras e a sua maneira de ser, encontramos os bons caminhos, em vez de errarmos ao acaso. Ele também é luz, porque vem confirmar a dignidade do homem e dar-lhe alegria. Formando um só bloco com o Cristo, porque, crentes, somos o corpo que o Espírito lhe dá, temos a missão de difundir a sua luz. Não somente pela palavra que esclarece, mas, luz para os olhos: é preciso que «os homens vejam as nossas boas obras». Para serem boas, estas obras devem ser feitas por si mesmas, porque são boas, ou seja, para que sirvam aos outros e não para serem vistas; porque, então, deixariam de ser boas. A mensagem evangélica deve chegar até às extremidades da terra. Não se trata nem de proselitismo nem de busca de influência, mas de «fazer ver». E não importa como: a 2ª leitura nos diz que a maneira de anunciar o Evangelho deve ser calcada no conteúdo do anúncio.
As imagens do sal que se perde na massa e da lâmpada que se coloca no candeeiro podem parecer contraditórias. Até porque, um pouco mais adiante, no Discurso da Montanha, Jesus vai prescrever que não se deve agir para ser visto pelos homens (Mateus 6,1-18). Mas que tudo deve permanecer «no segredo». A primeira resposta que me vem ao espírito é que todo discípulo, alternadamente, conforme as circunstâncias, deve se fazer sal ou luz. Mas vamos mais longe: as mesmas «boas obras» são as que devem ao mesmo tempo ser sal e luz. São «sal», quando não as fazemos para nos fazer ver. São luz, pois que devem conduzir os homens a «dar glória», não a nós, mas ao «nosso Pai que está nos céus». Não tem nada ganho, enquanto os homens não voltarem à origem das nossas boas obras. Outro detalhe, as pequenas parábolas do sal e da luz estão no plural: «Vós sois o sal (...) Vós sois a luz» Jesus parece dirigir-se aos discípulos enquanto estes formam um corpo, uma comunidade. Mas, no capítulo 6, lemos: «quando deres esmola» (versículo 2), «quando orares» (versículo 6), «Tu, porém, quando jejuares» (versículo 17). Ou seja, a comunidade dos discípulos deve brilhar aos olhos dos homens, mas cada um deve se diluir no corpo, como o sal.
Eis-nos aqui, pois, imagens de Deus; quer sejamos o Samaritano, que vai em socorro do ferido, ou o próprio ferido - pensemos em Cristo na cruz - que espera que voltemos os olhos para ele. Esta atenção mútua, recíproca, é que nos faz existir. Por ela é que somos de fato, verdadeiramente, imagens de Deus, que é troca, paternidade e filiação. Espírito que vai e vem, que se dá e se recebe. Esta é a luz que faz existir todo homem na medida em que aceita ser iluminado. Para compreender a compatibilidade dos nossos textos, na aparência contraditórios, podemos notar que as comandas de segredo (capítulo 6) estão no singular: «Quando rezares… Quando deres esmola». Já o evangelho de hoje, ao contrário, fala no plural: «Vós sois o sal da terra (…) Vós sois a luz do mundo». Talvez seja arrojado concluir que este evangelho de hoje se dirige às coletividades, às Igrejas, enquanto que o capítulo 6 dirige-se a nós enquanto indivíduos: se busco a admiração para mim mesmo, eu me isolo, colocando-me acima dos outros, ponho-me à parte. Ora, a relação de benquerer é que me faz imagem da Trindade, e que me dá, portanto, verdade e existência. «Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles», diz Jesus em Mateus 18,20. «No meio deles»: podemos traduzir «neles». O espetáculo da nossa união é que pode ser o «sal da terra» e a «luz do mundo». Mas, confessemos, ainda estamos bem longe do que se esperava. O benquerer mútuo que nos torna semelhantes a Deus supera, aliás, os limites das nossas Igrejas: ele deve se estender até às extremidades do mundo. Nenhum homem, nem mesmo o mais perverso, deve ser excluído dele. Na Cruz, Deus nos amou até no pior excesso da nossa perversão.
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O Sal da terra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU