24 Mai 2018
Uma plateia de mais de 400 produtores de soja, no coração do agronegócio brasileiro, aplaudiu longamente a apresentação do meteorologista Luiz Carlos Molion.
A reportagem é de Patrícia Campos Mello, publicada por Folha de São Paulo e reproduzida por Amazônia, 23-05-2018.
“O aquecimento global é um mito: a temperatura mundial não está aumentando, nós vivemos ciclos de aquecimento e resfriamento que sempre existiram”, dizia Molion, conhecido cético sobre a noção de mudanças climáticas, em outubro do ano passado. Sua palestra havia sido patrocinada pela Agrosul, concessionária da multinacional de máquinas agrícolas John Deere, pela fabricante de adubos Fertilaqua e pela Fundação Bahia, entidade de pesquisa bancada por produtores baianos.
“O CO2 não causa efeito estufa e a ação do homem é insignificante para causar efeitos sobre o clima”, afirmava Molion em um auditório decorado com tratores na cidade de Luís Eduardo Magalhães, onde se concentra a produção de soja no oeste da Bahia.
Luís Eduardo Magalhães faz parte da região conhecida como Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), a mais nova fronteira agrícola do Brasil. Abriga a maior parte das terras ainda não exploradas no país. Aqui, as ideias de Molion são repetidas como mantra pelos produtores rurais.
O pesquisador aposentado dá cerca de 50 palestras por ano em diversos estados brasileiros, contratado por empresas como a Syngenta e a Casa do Adubo, além de associações de produtores, prefeituras e governos estaduais. Na quarta-feira (16), ele foi o principal palestrante da convenção internacional da soja Soy Sur, patrocinada pela Bolsa de Chicago (CME Group), em Ciudad del Este, no Paraguai.
Em suas apresentações, ele fala sobre a tendência do clima para a safra seguinte, os próximos dez anos, e denuncia “a inverdade científica chamada aquecimento global”. “Mostro para os agricultores que eles não são culpados, que o CO2 e o metano não têm nada a ver com variabilidade climática e que o desmatamento não tem nenhuma influência sobre o regime de chuvas”, disse Molion à Folha.
Físico e pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), Molion goza de pouca credibilidade no mundo acadêmico. “Alguém dizer que a molécula de gás carbônico não exerce efeito estufa atmosférico, isto é, que não absorve e reemite radiação térmica, é uma asneira anticientífica equivalente a dizer que a Terra é plana”, afirma o meteorologista Carlos Nobre, presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e ex-pesquisador do Inpe.
“É irônico ver empresas que dependem tanto de ciência para desenvolvimento de seus produtos patrocinarem de forma irresponsável e antiética a pseudociência, pensando somente no lucro que a expansão da fronteira agrícola vai lhes trazer.”
A presidente do Sindicato de Produtores Rurais de Luís Eduardo Magalhães, Carminha Maria Missio, representa mais de 1.400 produtores rurais e cerca de 2 milhões de hectares de área plantada, equivalente ao estado de Sergipe. Ela afirma não existir prova de que a Terra está se aquecendo nem de que o homem tem alguma coisa a ver com isso.
“Ninguém sabe o que é fato e o que é opinião. O que acabou com os dinossauros? Foi o desmatamento?”, indaga. Ela diz que sua região teve quatro anos de seca, de 2012 a 2016, e agora está voltando à “normalidade”.
Pesquisas, no entanto, indicam o contrário.
Segundo levantamento de Ludmila Rattis, das ONGs de pesquisa Woods Hole Research Center (WHRC, dos EUA) e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a temperatura média da região de Luís Eduardo Magalhães e Barreiras aumentou de 0,7ºC a 0,8ºC entre 1901 e 2015.
A pesquisadora usou dados da Climate Research Unit da Universidade de East Anglia (Reino Unido). Constatou que houve aumento de até 2ºC em setores do cerrado, como o sul de Goiás. Ela ressalva que o estudo apenas aponta que houve, sim, aumento na temperatura –mas não analisa se isso já pode ser atribuído à ação do homem.
O regime de chuvas também sofreu alterações. Dissertação de mestrado da bióloga Juliana Oliveira Campos, da Universidade de Brasília (UnB), aponta que houve queda de 8,4% na precipitação no cerrado entre 1977 e 2010. No sul desse bioma, em Goiás, a redução de chuvas chegou a 10,6%, enquanto ao norte, no Matopiba, foi de 4,7%.
“Acreditamos que a redução das chuvas foi menor no Matopiba porque lá o desmatamento foi menor e teve início mais tardio”, diz Juliana. A retirada das árvores do cerrado e sua substituição por pastagens e lavouras teria levado a uma redução da evapotranspiração (perda de água do solo por evaporação e, nas plantas, por transpiração), que diminui a formação de chuvas.
Marcos Heil Costa, professor de climatologia da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e coordenador de um estudo de avaliação do potencial hídrico do oeste da Bahia, considera que a seca dos últimos anos não faz parte de um ciclo natural.
“A seca é bem mais longa do que o normal, está entrando no sexto ano. E em 2017, apesar de ter voltado a chover em algumas áreas, as chuvas começaram muito tarde. O IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, órgão criado pelas Nações Unidas e pela Organização Meteorológica Mundial] prevê que haverá expansão da área de semiárido para o cerrado”, diz.
A agropecuária é o principal emissor no Brasil dos gases que agravam o efeito estufa e resultam na elevação da temperatura média da atmosfera terrestre.
Fonte: Ludmila Rattis/WHRC/Ipam, com dados do Climate Research Unit
Segundo o Sistema Nacional de Registro de Emissões, 33% delas vêm do setor de energia, a maioria da queima de combustíveis fósseis. Em segundo lugar estão as emissões diretas da agropecuária, com 31%, por meio do uso de fertilizantes (que leva à emissão de óxido nitroso), do metano expelido pelo gado e da queima de combustível por máquinas agrícolas e de transporte.
Em terceiro lugar, no cômputo oficial, aparece o desmatamento, com 24%. Como a derrubada de florestas se faz para aumentar a área de pasto e agricultura, a agropecuária responde em realidade por 55% das emissões brasileiras.
Hoje, o Matopiba concentra a maior área agricultável ainda disponível do país, em grande parte porque sua conversão foi tardia. O Sudeste começou a ser convertido para agropecuária séculos atrás, e a Amazônia, em grande escala, nos anos 1970.
Já o cerrado começou a ser explorado apenas 30 anos atrás, com a chegada de imigrantes do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Vinham atrás das terras que eram muito baratas, por causa do desafio de fazer o solo ácido começar a produzir.
Os produtores, no entanto, estão expandindo a atividade agropecuária para locais onde não há viabilidade econômica, por exigir uso excessivo de produtos químicos para corrigir solo e de irrigação, adverte André Guimarães, diretor-executivo do Ipam.
“Não somos contra a produção agropecuária, mas é preciso ordenar a ocupação do Matopiba. Em vez de ficar expandindo a agropecuária para áreas onde não há viabilidade econômica, precisamos preservar essas áreas”, diz Guimarães.
Muitos produtores, mesmo sem acreditar que a mudança climática veio para ficar, já se adaptam a uma realidade mais seca e quente. Pedro Cappellesso, 30, e sua família têm uma fazenda de mil hectares onde produzem 70 mil sacas de soja –suficientes para encher mais de cem carretas de três eixos.
Como grande parte dos produtores da região, ele faz rotação de culturas e plantio direto, duas técnicas agronômicas para preservar o solo. No sistema de plantio direto, a terra não fica nua, sujeita a erosão e enxurradas, mas coberta com a “palhada”, restos de cultura como sorgo, milho, capim braquiária e milheto. Antes de semear, o solo não é revolvido por arado.
A prática reduz a perda no solo por erosão e os gastos com combustível, sementes e adubo – e também as emissões. Cappellesso agora usa o sorgo para rotação de culturas. “Não plantamos mais o milho, porque consome muito mais água e nós entendemos que o rio está dando problema”, diz.
As seguidas secas que afetaram a região mais a concessão desorganizada de outorgas para retirada de água para irrigação vêm diminuindo a vazão de alguns rios. A água faz diferença na produtividade: a soja sem irrigação, ou de sequeiro, rende 60 sacas por hectare. Com ela, o rendimento sobe para 80 a 85 sacas.
“O norte do cerrado vive uma situação crítica –se a seca persistir, a atividade agrícola na região se tornará antieconômica”, diz Mercedes Bustamante, do Departamento de Ecologia da UnB.
O aumento da temperatura, aliado à redução da vazão dos rios e ao avanço das grandes propriedades, tem acirrado os conflitos fundiários e também por água.
A região de Correntina (BA) foi palco de uma invasão em novembro de 2017. Cerca de mil pequenos agricultores ocuparam a Fazenda Igarashi e destruíram as instalações. Eles culpam a fazenda pela baixa na vazão do rio Arrojado, que está inviabilizando a agricultura dos ribeirinhos.
Os pequenos produtores usam sistemas de irrigação tradicionais, como o rego e a roda d’água, que não funcionam quando a vazão do rio cai muito. A Igarashi voltou a funcionar recentemente e líderes locais afirmam que vão invadi-la de novo se os rios voltarem a baixar.
“No ano passado, a água que vinha pelo rego [sulco construído pelos produtores para irrigação] sumiu, a gente tinha que ficar acordado a noite inteira e se revezar para empoçar um pouco de água e conseguir molhar a terra [irrigar]. Foi uma tristeza, morreu o milho, o feijão, tudo”, diz Adolfo Batista de Oliveira, 55, que planta um hectare de milho, batata e feijão para sustentar a família de seis.
“A crise hídrica é óbvia, a redução da vazão dos rios é percebida por toda a população”, diz Luciana Khoury, promotora de Justiça Ambiental na região. Segundo ela, o problema é que não existe um plano de bacia estabelecendo o que pode ser retirado dos rios e do aquífero Urucuia, que abastece a região, sem ameaça à segurança hídrica.
Ela pediu em dezembro de 2015 que fosse suspensa a concessão de outorgas para captação dos rios até que o plano de bacias ficasse pronto, mas sua recomendação não foi acatada pelo governo estadual.
Segundo Marcos Costa, da UFV, os dados apontam uma diminuição média da vazão dos rios na região. Mas, para ele, o fenômeno se deve mais à seca prolongada do que ao aumento de retirada de água para irrigação.
Ele diz que, hoje em dia, as outorgas para retirada de água são concedidas com base em informações que estão defasadas. “Não se analisa, por exemplo, qual é o impacto da multiplicação dos poços sobre as águas subterrâneas, como as do aquífero Urucuia.”
Mercedes Bustamante ressalva que o agronegócio não constitui um bloco homogêneo. “Há uma parcela de grandes produtores agrícolas muito conscientes, que praticam uma agricultura sustentável inovadora, usando alta tecnologia”, diz.
“Eles estão usando métodos de conservação do solo, reduzindo uso de fertilizantes, porque, além de ser ecologicamente positivo, reduz o risco econômico.”
Para o climatologista Carlos Nobre, a agricultura cometerá “suicídio se não se adaptar às mudanças climáticas que já ocorrem e que continuarão a ocorrer por muito tempo no futuro, como, por exemplo, o aumento dos extremos climático como secas e ondas de calor que tantos prejuízos trazem.”
Procuradas pela reportagem, as empresas que bancam as palestras do professor cético dizem não compactuar com suas ideias e afirmaram estar comprometidas com ações de mitigação para mudanças climáticas. A Fertilaqua informou que contrata Molion porque ele tem boa credibilidade para previsão do tempo e é demandado por clientes, não por causa de sua campanha contra a ideia de aquecimento global.
Segundo a Syngenta, a contratação se deu devido ao amplo conhecimento de Molion sobre o cultivo do café e seu sistema de previsibilidade climática. “Essa visão [ceticismo climático] não se alinha com a da Syngenta”, disse a empresa em nota.
A John Deere afirma que as declarações feitas por qualquer palestrante em eventos afiliados à John Deere são opiniões pessoais e não representam o posicionamento da empresa. A multinacional disse também reconhecer a mudança climática e estar comprometida com agricultura sustentável.
Já a Casa do Adubo, rede de lojas de insumos agropecuários, afirmou que contrata o palestrante porque ele acerta nas previsões do tempo, mas também por suas críticas à tese do aquecimento global.
Molion afirma que as empresas o contratam como chamariz, porque sabem que suas palestras são populares.
“Ele acerta na previsão de secas, mostra que não existe aquecimento global e que não é tudo culpa do agricultor”, diz Alexandre Moreira Maciel, 41, que produz banana e mamão na região de Barreiras (BA).
“Gostamos muito das avaliações científicas dele, e em 2010 ele previu a seca pesada que tivemos em 2012”, diz Nílson Vicente, diretor-executivo da Fundação Bahia. “Se existisse mesmo esse aquecimento global, o café já ia ter sentido, porque é muito sensível à temperatura.”
Há outros cientistas na região que compartilham da opinião de Molion, como Ricardo Reis Alves, professor de geografia da Universidade Federal do Oeste da Bahia, constantemente consultado pela Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba).
“O filme do [ex-vice-presidente dos EUA] Al Gore deveria chamar ‘Uma mentira conveniente’, não “Uma verdade inconveniente”, diz o agrônomo Valmor dos Santos, 59, vice-presidente do Programa de Agronomia Sustentável em LEM. “São interesses estrangeiros tentando prejudicar nossa agricultura, a mais produtiva do mundo.”
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Agronegócio banca palestras de cético sobre mudança climática para ruralistas no Matopiba - Instituto Humanitas Unisinos - IHU