16 Fevereiro 2018
Não é muito difícil pensar em escrever sobre lixo e desperdício neste Carnaval. É só dar um giro pela cidade do Rio de Janeiro (e, imagino, por qualquer outra megalópole deste país) para que qualquer pessoa do senso comum se sinta horrorizada pela quantidade de sujeira exposta depois da farra, escreve Amélia Gonzales, jornalista e ambientalista, em artigo publicado por G1, 15-02-2018.
Eis o artigo.
Estive fazendo um percurso de meia hora nos trens do Metrô e vi de tudo, de sandálias a resto de roupas, entre areia e muita, muita sujeira em cada vagão. Fácil apontar, como vilão, o Carnaval. São quatro dias em que se consente tudo, ou quase tudo, inclusive não se preocupar com o próprio lixo ou com quem vai passar mais tarde para catá-lo. Li em algum comentário nas redes sociais o pensamento de alguém que me afetou: todo brasileiro, no fundo, é escravocrata, já que se permite sempre deixar para trás seus próprios resíduos, com a certeza de que algum subalterno vai cuidar de limpá-los. Felizmente, hoje em dia, tal subalterno é pago. Não recebe tanto dinheiro quanto seria necessário para as suas necessidades, disso sabemos bem, mas ao menos não é obrigado a fazer o serviço.
Fato é que mais de 400 toneladas de lixo foram recolhidos depois dos 246 blocos que desfilaram pelas ruas da cidade desde sábado até quarta-feira (14). Pela manhã, estive na Central de Abastecimento de Alimentos do Rio de Janeiro (Ceasa), o maior posto deste tipo localizado no Rio de Janeiro, que fica em Irajá, e lá pude perceber outro tipo de lixo, o de alimentos, que nos leva a refletir também sobre o desperdício.
Dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) no Brasil, dão conta de que, anualmente, 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são desperdiçados ou se perdem nas cadeias produtivas de alimentos. Se os pesquisadores se dispuserem a dar uma caminhada pela Ceasa, vão descobrir a origem de parte do problema. Há uma absurda falta de compromisso dos que trabalham no setor com aquilo que vão vender. Importante frisar que não estou aqui fazendo nenhum tipo de julgamento. Falta educação? Informação? É uma questão de hábito cultural?
Outra questão é que as pessoas estão acostumadas a comprar alimentos como se estivessem adquirindo produtos de moda. Precisam ser bonitos, reluzentes, por mais que tanta beleza tenha a ver também com a quantidade de defensivos agrícolas necessários para plantá-los.
São muitas as possibilidades, mas o fato é que o fenômeno acontece num país onde há sete milhões de pessoas que passam fome. E seria necessário, por parte do Estado, uma ponte entre tal privação e tamanho desperdício. Não há.
Mas o que acontece é que não dá para se apontar um único responsável. É preciso olhar para todo um sistema que menospreza o valor dos alimentos que estão “fora do padrão” para serem revendidos ou consumidos em restaurantes.
Segundo a FAO, o desperdício no mundo responde por 46% da quantidade de comida que vai parar no lixo. Já as perdas — que ocorrem sobretudo nas fases de produção, armazenamento e transporte — correspondem a 54% do total. Quem se responsabiliza?
Voltando ao carnaval, e ao lixo, esta pergunta sobre a responsabilidade ficou pairando no ar hoje, em roda de amigos. As latas de cervejas jogadas nas calçadas, nas areias das praias, nos trilhos do Metrô, não deveriam estar na meta das fabricantes do produto? Sim, a isto se chama, no âmbito da responsabilidade social, de “compromisso com toda a cadeira produtiva até o final”, ou seja, até ser descartada. Mas é preciso também exigir de quem bebe o mesmo compromisso, respeito ao outro. Há tarefas para todos.
E lá vou eu em busca de autores que me ajudem a refletir com mais propriedade sobre este comportamento tão pouco civilizado dos humanos nas megalópoles brasileiras. Não posso pensar que seja só aqui que se observa o descaso com o produto que se descarta, do alimento ao lixo, até porque encontrei num filósofo e sociólogo esloveno, Slavoj Zizek, pensamentos globais que me afetaram sobre o assunto, os quais eu quero compartilhar com os leitores.
Zizek gosta de provocar. Para ele, a melhor maneira de se demonstrar um verdadeiro amor ao meio ambiente é fazer contato direto com o lixo que produzimos. Somente depois desse contato é que poderemos pavimentar um caminho para a mudança que precisamos para o planeta.
Isso implica, por exemplo, em buscar saber, no próprio lugar onde se mora, qual o destino que o lixo terá. Ir ao corredor e lançar na lixeira um saco bem atado contendo o lixo do dia é fácil demais, nos distancia demais deste contato necessário. A próxima cena que vou descrever é bem ao gosto do filósofo esloveno que gosta de causar algum tipo de reação em seus leitores: pensar que após a descarga não temos mais nenhum comprometimento com o que se foi água abaixo é um hábito que deveria ser repensado.
Zizek vai além, como bom desafiador que é, comparando o lixo ao amor. Só se pode amar alguém, de verdade, quando ousamos conviver com o “lado lixo” (se me permitem a expressão) daquela pessoa. No caso, o lado lixo é todo o comportamento que difere do nosso. Hoje isso está cada vez mais distante da realidade. Quem busca um(a) parceiro(a) quer que ele(a) tenha pontos semelhantes de pensamento e de hábitos. Se não for assim, está fora. Como lixo.
O pensamento é mágico, voa alto, e quem me acompanha neste espaço sabe que não gosto de pôr freios quando encontro quem consegue ampliar minhas reflexões. Zizek vai fundo nessa proposta. Seus vídeos estão disponíveis na internet e pode ser divertido terminar o Carnaval em companhia de pensamentos desafiadores.
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O lixo do carnaval e o desperdício de alimentos. Quem paga a conta? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU