16 Novembro 2017
O relato é do historiador Miguel Palacio, responsável pelo setor de Relações Públicas da Igreja Ortodoxa Russa. "O sonho dos bolcheviques - explica no centenário da 'Revolução de Outubro' - era apagar a experiência histórica, espiritual e social da Rússia, a sua cultura nacional, fundada no cristianismo. Mas não conseguiram alcançar esse objetivo". Uma longa lista de mártires. E o pesado legado da história.
A entrevista é de Sarah Numico, publicada por AgenSIR, 15-11-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Está prestes a terminar este incômodo 2017, que comemora o centenário dos eventos de 1917 que levaram Lênin e os bolcheviques ao poder e, portanto, ao nascimento da República Soviética. Um aniversário lembrado com evidentes dificuldades históricas e emocionais. Um símbolo sobre o qual talvez valha à pena deter-se é aquele "muro da dor", monumento nacional às vítimas de repressões políticas, que foi inaugurado em 30 de outubro, na Avenida Sakharov, em Moscou, pelo patriarca ortodoxo Kirill e o presidente Vladimir Putin. Neles está gravada em bronze a palavra "lembrar", em vinte e duas línguas; para sustentar o monumento, pedras de antigas prisões e campos de concentração, valas comuns em todo o país. Note-se que o monumento foi incentivado e financiado pelo governo federal e não, como até aqui em relação a outros memoriais, por associações cívicas. Para perceber o estado de ânimo de quem precisa acertar as contas com esse passado, o Sir conversou com Miguel Palacio, historiador, responsável pelas Relações Públicas e pelo departamento de Protocolo do Instituto de estudos superiores em teologia Santos Cirilo e Metodio da Igreja Ortodoxa Russa, em Moscou.
Que significado teve para a Igreja Ortodoxa Russa relembrar a Revolução de Outubro de 1917?
A Igreja Ortodoxa Russa, logo após a queda do governo czarista, em fevereiro de 1917, revelou-se refém da complexa situação política: tanto o governo provisório como os sovietes tiveram uma relação difícil com a Igreja. Além disso, em outubro de 1917, pouco antes da tomada do poder pelos bolcheviques, na vida de nossa Igreja aconteceu um evento histórico, que teve um significado exclusivamente positivo: a eleição do Patriarca de todas as Rússias por parte do Conselho pan-ortodoxo. Se os acontecimentos de 1917 na Rússia marcam o início da opressão da Igreja, eles também permitiram a sua salvação, porque foi encontrado um líder espiritual depois de mais de 300 anos: o patriarcado havia sido abolido por Pedro I em 1700 e a Igreja, anexada como parte do sistema estatal, era administrada por um órgão colegiado, o Santo Sínodo.
As feridas da perseguição e do martírio marcaram profundamente a vida da Igreja na Rússia: que frutos podem ser vistos hoje?
O número de novos mártires da Igreja Ortodoxa Russa só é comparável com os primeiros séculos do cristianismo. Para citar alguns fatos: no período inicial de perseguição (1918-1920) foram ceifadas cerca de 9 mil vidas; nos anos 1937-1938 foram reprimidos 200 mil pessoas e 100 mil foram executadas (foi morto um sacerdote em cada dois). Em 20 de agosto de 2000 por decisão do Conselho dos arcebispos foram canonizados os mártires e os confessores da Igreja Russa, tanto aqueles conhecidos como aqueles que não têm nome. De fato, até o momento, conhecemos pelo nome cerca de dois mil santos que sofreram na União Soviética pela fé de Cristo.
No ano do centenário da revolução, na Rússia fala-se muito dos cristãos vítimas de perseguição. Em geral, ultimamente estamos organizando palestras e rodando filmes sobre o tema. No polígono de Butovo, em Moscou, onde nos anos 1930 foram fuzilados dezenas de milhares de pessoas, foi construído um monumento memorial. Estiveram presentes também muitos representantes da Igreja católica. Foram descobertos mais de cem locais de sepultamento das vítimas da repressão política e continua a busca de novos objetos. Os ícones dos mártires e dos confessores do século XX estão pendurados em quase todas as igrejas da Igreja Russa; em sua honra, muitos monges recebem seu nome. É importante notar que são praticamente nossos contemporâneos, portanto a sua experiência de vida está mais perto de nós do que a experiência da santa antiga Igreja.
Que "lições" aprendeu a Igreja com as décadas de ideologia comunista?
A principal lição é a invencibilidade da Igreja graças à força espiritual do seu clero e dos seus fiéis. No início dos anos 1960, Nikita Kruschev dizia que na década de 1980 iria viver o último sacerdote. Agora os sacerdotes falam na televisão e nos outros meios de comunicação, e se divulga a sua opinião; enquanto isso, Kruschev e seus colegas estão praticamente esquecidos.
Como você acha ter sido possível em um país tão profundamente marcado pelo cristianismo como a Rússia, uma ideologia tão marcadamente ateia auferir tal sucesso?
Infelizmente, em 1917, o poder no país foi tomado por criminosos políticos, pessoas desprovidas de qualquer compreensão sobre a vida espiritual. Eles consideraram a Igreja uma força perigosa que poderia expor a inconsistência de seus slogans. O sonho dos bolcheviques era apagar a experiência histórica, espiritual e social da Rússia, a sua cultura nacional, fundada no cristianismo. Mas eles não conseguiram alcançar esse objetivo. Apesar do medo, as pessoas frequentaram a igreja, se casaram, batizaram seus filhos e ajudaram o clero. E isso apesar do fato de que seu comportamento poderia resultar em riscos no trabalho, demissão, ou envio para a prisão caso fossem encontradas com uma Bíblia. Sabe-se que, às vezes, nas residências soviéticas atrás de um retrato de Marx, Lênin ou Stalin eram escondidos ícones, venerados quando ninguém estava olhando. Os jovens que iniciavam o seminário eram convocados pela KGB, que os desencorajava e assustava, mas isso não impediu que um número substancial de jovens talentosos e cultos tivesse dedicado suas vidas ao serviço da Igreja. A fé vivia no coração das pessoas, apesar das numerosas proibições e graças aos mártires e aos ascetas chegou até às gerações atuais de cristãos ortodoxos, que não conseguem sequer imaginar que seria possível perder não só o trabalho, mas também a vida, apenas pelo fato de usar uma cruz no peito.
O que você sente quando passa ao lado do Mausoléu de Lênin na Praça Vermelha?
Penso que chegará o momento em que os diferentes grupos da sociedade russa – os comunistas, os socialistas, os conservadores, os monarquistas e os liberais - sem confrontos, violências ou tensões, chegarão a um parecer comum sobre o fato de que o corpo de Lênin deva ser entregue à terra. Ele era um homem terrível, um assassino cheio de ódio e de vingança, mas também era um pensador excepcional, o criador de um novo Estado, capaz de persuadir milhões de pessoas sobre sua exatidão.
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Revolução Soviética em Moscou: um monumento aos mártires. O historiador Palacio: "A difícil relação com a Igreja Ortodoxa" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU