28 Agosto 2017
"As palavras do Papa retumbam em louvor à reforma litúrgica que é lida em estreita conexão com a renovação da Igreja querida, promovida e efetivada na esteira do Concílio Vaticano II. Implica dizer, então, que negar a reforma litúrgica é negar o Concílio", escreve Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, especializado em Liturgia pela PUC-SP e música ritual pela FACCAMP, assessor eclesiástico para a Liturgia na mesma Arquidiocese, membro da Equipe de Trabalho para o Espaço Sagrado para a Catedral Cristo Rei e Mestrando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (FAJE), bolsista da CAPES.
A reforma litúrgica que se deu a partir das recomendações vivas dos participantes do Concílio Vaticano II, registradas na Constituição sobre a Sagrada Liturgia vem sendo interpretada no conjunto dos últimos dez anos – no mínimo – como uma tragédia para a Igreja. No marco da publicação do Motu Próprio Summorum Pontificum (exatamente há uma década), reconhece-se hoje em dia uma verdadeira confusão instaurada nas comunidades. A pretensa abertura àqueles que estavam apegados ao rito tridentino, completamente reformado depois do Concílio, oportunizou precedentes para que o fruto mais maduro do Concílio fosse questionado não apenas em sua recepção, que teria dado origem aos famosos “abusos litúrgicos”, mas também e sobretudo na sua legitimidade. “Não era bem isso que os padres conciliares queriam com a reforma”, argumenta-se. Assevera-se que a crise eclesial se instaurou como consequência da reforma litúrgica.
No mínimo, instaurou-se um amplo mal-estar em diversos setores da Igreja. Relativizar e – pior – negar a riqueza e importância da reforma litúrgica, quase que criminalizando-a, tornou-se o ‘apostolado’ de não poucos sites dedicados à Liturgia. Soma-se a esta empreitada, a idealização de um movimento de “marcha-à-ré”, na direção de repropor a liturgia pré-conciliar como remédio para os supostos disparates produzidos pela ‘modernização’ da Liturgia. Há livros publicados que ensinam o passo-a-passo para que se enriqueça o Missal fruto da reforma com as prescrições do Missal Tridentino. Uma operação – em si mesma – completamente sem sentido, já que este último foi, sim, revogado em uso para a Igreja Latina. Embora haja quem negue com veemência, seria suficiente observar as palavras de Paulo VI a respeito da instauração do novo Missal, depois de apresentar com certo detalhe as mudanças substanciais em relação ao Missal Trindentino:
Por fim, queremos dar força de lei a tudo que até aqui expusemos sobre o novo Missal Romano. Nosso predecessor, São Pio V, promulgando a edição-príncipe do Missal Romano, apresentou-o ao povo cristão como fator da unidade litúrgica e sinal da pureza do culto da Igreja. Da mesma forma, nós, no novo Missal, embora deixando lugar para “legítimas variações e adaptações”(15), segundo as normas do Concílio Vaticano II, esperamos que seja recebido pelos fiéis como um meio de testemunhar e afirmar a unidade de todos, pois, entre tamanha diversidade de línguas, uma só e mesma oração, mais fragrante que o incenso, subirá ao Pai celeste por nosso Sumo Sacerdote Jesus Cristo, no Espírito Santo. [...]
Tudo o que aqui estabelecemos e ordenamos queremos que seja válido e eficaz, agora e no futuro, não obstante a qualquer coisa em contrário nas Constituições e Ordenações Apostólicas dos nossos predecessores, e outros estatutos, embora dignos de menção e derrogação especiais.
E é esse mesmo Paulo VI que se tornou o advogado de Francisco em seu discurso aos participantes da Semana Litúrgica Nacional em Roma. Em diversos momentos de sua mensagem, o Papa cita Paulo VI. É importante registrar um fato. Curiosamente, Bento XVI não é lembrado em seu magistério litúrgico no âmbito das contribuições para que a reforma se estabelecesse e fincasse raízes.
Na verdade, é mais do que curioso. A ausência de alguma referência a Bento XVI é muito significativa, uma vez que em seu discurso o Papa cita todos os Pontífices que trataram da questão litúrgica, desde Pio X até João Paulo II. Saltando Bento XVI, refere-se a si mesmo em suas posições por ocasião da Evangelii Gaudium e também n’alguma homilia proferida em seu pontificado.
É bom recordar que Bento XVI tornou-se o patrono e a referência fundamental para aqueles que advogam a “finada” reforma da reforma. Uma expressão reprovada pela própria Santa Sé recentemente, na ocasião em que se propôs inserir elementos do Missal Tridentino – no caso a orientação versus Oriens – em celebrações do Advento passado.
As palavras do Papa retumbam em louvor à reforma litúrgica que é lida em estreita conexão com a renovação da Igreja querida, promovida e efetivada na esteira do Concílio Vaticano II. Implica dizer, então, que negar a reforma litúrgica é negar o Concílio. Aliás, o perfil mais comum dos pequenos grupos aderentes ao teorema da “reforma da reforma”, fortalecido pela legitimidade do que se denominou “forma extraordinária do Rito Romano”, é de pessoas avessas às grandes aquisições de caráter – sobretudo - eclesiológico e ecumênico do Concílio Vaticano II. Quem nega a reforma em geral, nega o Concílio em suas mais significativas posições no processo de aggionarmento da Igreja. Note-se, inclusive, que esses grupos tem certa assistência de gente muito jovem e que não conheceu como as coisas eram antes do Concílio não apenas em matéria litúrgica, mas na complexidade da trama eclesial. Estas pessoas defendem que se retorne ao que chamam de usus antiquor (que não é o mais antigo, assim se sabe ao menos quem conhece a história da liturgia no Ocidente). Mas o Papa foi muitíssimo claro: “a reforma litúrgica é irreversível.” Neste sentido, como muita lucidez o Pontífice afirma que não é momento para que se ponha em questão a reforma litúrgica, revisando suas escolhas, como se estas não tivessem sido acertadas e portanto, devessem ser anuladas. Antes, o Papa recomenda estuda-la e conhece-la com profundidade.
Embora as fontes do Papa em seu pronunciamento seja preponderantemente magisteriais ou diretamente litúrgicas, é possível reconhecer traços de uma teologia da liturgia recente. Sobretudo quando Francisco aborda a Liturgia como uma realidade viva na qual atua Cristo mesmo na diversidade ministerial que compõe o Povo de Deus. Ao reconhecer como fruto da reforma a apropriação do culto da Igreja pela própria Igreja e não apenas pelo clero, a perspectiva do pontífice se identifica com aquela de teólogos como Andrea Grillo, cujas contribuições tem sido muito significativas no que consta da avaliação teológica da reforma e também na crítica ferrenha ao movimento de retorno ao passado, ancorado no Motu Proprio Summorum Pontificum e sobretudo, na instrução Universa Ecclesia. Outro aspecto diz respeito a conceber a liturgia não como um conjunto de rubricas a obedecer ou textos a recitar, mas como ação ritual pela qual o Evangelho se faz carne no corpo da assembleia. Uma “escola de vida cristã” para citar suas palavras.
Particularmente, penso que estas palavras de Francisco são um bálsamo para muitos de nós, padres e estudiosos da liturgia, que temos assistido a um desmonte progressivo por parte de grupetos sem formação consistente e com forte apelo ideológico. É muito triste verificar que a forma ritual da fé se vê enfraquecida por iniciativas, algumas inclusive de aparência inofensivas: altar abarrotado de velas, identificação da ars celebrandi com o cumprimento das rubricas, vestimentas ‘retrô’, desencorajamento da comunhão na mão e no pão e vinho, uso de véus por parte das mulheres, desconfiança e repúdio de elementos genuinamente culturais como a dança seja consideradas nas celebrações, promoção do latim, apreciação da Missa Tridentina como um ritual excêntrico ao qual se convida os amigos para frequentar etc. Na verdade, essa maneira de atuar, revela um desconforto com os modelos de Igreja oriundos do Concílio, disfarçado de piedade e devoção. Uma aventura na qual os desavisados embarcam com grande prejuízo para a vida de fé em seus desafios e urgências na contemporaneidade.
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O alcance do discurso do Papa sobre a Liturgia pós-conciliar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU