30 Outubro 2016
“Agora, no final do Ano da Misericórdia, que o Papa Francisco tinha promulgado pelos vivos mais necessitados de todas as raças e religiões, a Congregação para a Doutrina da Fé promulga este documento pelos cristãos mortos. É como se o Papa fosse por um lado (quer ajudar os vivos, na linha de Mt 25, 31-46 e suas obras de misericórdia), mas eles, da Congregação, fossem por outro e se ocupassem dos mortos de seu rebanho crente”, escreve Xabier Pikaza, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 27-10-2016. A tradução é de André Langer.
O valioso documento da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a Sepultura dos Defuntos (Ad resurgendum cum Christo, Para ressuscitar com Cristo) suscita algumas reservas significativas, tanto pelo que omite, neste final do Ano da Misericórdia, como pelo que quer exigir.
É um documento antigo, aprovado e assinado já há meses [assinado em 15 de agosto de 2016], mas publicado apenas agora, quando nos aproximamos da festa de finados (02-11-2016) para esquentar o ambiente com o tema. Como é normal nestes casos, a imprensa oral e escrita, na terça-feira, 25 de outubro, omitiu seus valores, para insistir apenas em suas quatro proibições principais, com ar de reserva e às vezes de forte crítica:
a) Proíbe-se espalhar as cinzas dos mortos em campos e vales, rios e mares, pois isso implica em um respeito menor pelos finados, e leva ao risco de voltar a uma religião naturalista, que vincula os mortos com a natureza sagrada, sem fé na ressurreição.
b) Proíbe-se conservar as cinzas em casas ou espaços privados (fora de cemitérios sagrados ou igrejas) porque esse gesto “encerra” os mortos ao âmbito familiar, sem mais, como se fez em muitos povos, em vez de insistir em sua abertura para um mistério de vida e ressurreição que vai unido às igrejas ou cemitérios cristãos.
c) Proíbe-se dividir as cinzas em pequenas unidades (uma, talvez, para cada família), e assim reparti-las como se se dividisse o defunto e não se admitisse sua unidade pessoal perante Deus.
d) Acrescenta-se às três anteriores uma opinião, na minha opinião, pouco ajustada à Bíblia sobre a separação de corpo e alma... e uma arriscadíssima decisão de solicitar aos párocos e ministros para que não ofereçam a oração da Igreja (os funerais) por aqueles defuntos (ou no âmbito daquelas famílias) que não aceitam neste campo a doutrina deste documento e queiram que suas cinzas sejam espalhadas em montanhas e águas, pensando que isso vai contra os costumes e o compromisso dos cristãos que sempre rezaram pelos mortos.
São duas, na minha opinião, as principais reservas que este valioso documento suscita, que nos ajuda a entender o sentido da vida humana, a esperança da ressurreição e o grande dom e compromisso fiéis da comunhão dos santos que, segundo a doutrina da Igreja, vincula os vivos e os mortos. Uma reserva é circunstancial, de tempo; a outra, de fundo.
Agora, no final do Ano da Misericórdia, que o Papa Francisco tinha promulgado pelos vivos mais necessitados de todas as raças e religiões, a Congregação para a Doutrina da Fé promulga este documento pelos cristãos mortos. É como se o Papa fosse por um lado (quer ajudar os vivos, na linha de Mt 25, 31-46 e suas obras de misericórdia), mas eles, da Congregação, fossem por outro e se ocupassem dos mortos de seu rebanho crente.
Não creio que o tenham feito de propósito, mas que parece uma “ideia estapafúrdia” (para não dizer “má ideia”) esta de seguir em uma linha contrária à do Papa e de grande parte do atual cristianismo (foi o que me disse um amigo bem por dentro), não há dúvida...
– O Papa está empenhado em oferecer o amor ativo de Jesus pelos homens e mulheres mais necessitados (famintos, sedentos, estrangeiros, presos...),
– mas a Congregação só pensa em si mesma, a oração pelos mortos cristãos, seu sinal sagrado, para depois de ter sofrido este inferno de terra se é que nem todos mudamos, como disse o Papa Francisco, com palavras dramáticas, na Laudato Si’, sobre a justiça e a terra de todos.
(Foi o que me disse um amigo meu, não sei se ele tem razão, mas parece que sim.)
É muito bom rezar pelos defuntos e manifestar com (n)eles o mistério da vida que vence a morte, com a esperança de Cristo, a favor de todos os homens, não somente dos cristãos,
– mas a primeira intenção e obra de Jesus Cristo foi acompanhar, ajudar e levantar os vivos, como sabe qualquer um que tenha começado a ler os Evangelhos (não é preciso que tenha terminado, como devem ter feito os autores deste documento).
A este respeito quero recordar uma deliciosa anedota medieval que agora se repete, uma anedota à qual dedico algumas páginas do meu livro As Obras de Misericórdia, escrito com José Antonio Pagola (Verbo Divino, Estella 2016).
No final da Idade Média, em catecismos e livros de moral, quis-se acrescentar uma sétima obra de misericórdia às seis de Mt 25 (dar de comer e beber, vestir, cuidar dos doentes e presos, acolher os estrangeiros...), para completar assim o número harmônico de sete (sacramentos, pecados, virtudes, céus...). Havia duas opções mais difundidas entre catecismos, livros de moral e pregadores:
a) Uma, ajudar e promover as mulheres necessitadas e em perigo de exploração pessoal e social, ou seja, a libertação da mulher;
b) A outra: enterrar bem os mortos e rezar muito por eles, com funerais, missas e cemitérios.
Venceu esta última: rezar pelos defuntos, com bom enterro e missas... Foi boa a promoção dessa obra, de maneira que uma parte considerável da Igreja (e do clero pós-tridentino) especializou-se em rezar pelos defuntos, mais que ajudar os vivos.
Teria sido melhor a outra, ajudar as mulheres em risco de destruição pessoal e social, como disse implicitamente o Papa Francisco.
A mesma coisa acontece agora. O Papa queria colocar de relevo as obras de Mt 25, pelos vivos. A Congregação optou pelos mortos, que são muito importantes, mas com o risco de esquecer os vivos em necessidade.
Não sei se o fizeram de propósito, mas não poderiam ter feito pior, neste final do Ano da Misericórdia, em que todos esperávamos que a Congregação dissesse algo profundo, comprometido, na linha da Obras de Misericórdia da Bíblia e do Papa Francisco, mas eles só pensaram em si mesmos, que é importante, mas não o definitivo.
Não quero pensar mal, mas se diz que por trás está a mão do cardeal Müller contra Bergoglio Papa. O cardeal não está de acordo (diz grande parte da imprensa) com a “deriva” do Papa... e o gesto de publicar este documento ratificará essa impressão. Mais lenha na fogueira. Não penso que seja assim, mas parece ser. Seria um caso a mais de disputa vaticana, em temas que são de todos os cristãos.
Como disse, o documento não é ruim; pelo contrário, é muito bom e recorda coisas importantes para cristãos e não cristãos, mas deveria ter sido perfilado mais, de forma positiva, de gozo e louvor pela vida, em um momento em que parece que muitos banalizam os mortos.
Mas, talvez, não era o momento para dizê-lo, com um documento assim, que é em princípio positivo, mas que, para a imprensa (e não é a imprensa ímpia, mas também a católica), se resume nas quatro proibições que assinalei acima (espalhar as cinzas nas montanhas, guardá-las em casas particulares, reparti-las em porções menores... e rezar pelos que assim o dispuseram).
Quero recordar apenas de passagem que uma das melhores cristãs que eu conheço (alma de Deus, madeira de santa) perdeu a filha maior em um acidente, e cumprindo a sua vontade, após missas e funerais, recolheu as cinzas do crematório e as espalhou nos lugares favoritos da menina... Algum padre lhe terá dito que assim sua alma vaga errante, que não pode se salvar... Agora, caso ler este documento, chorará de pena outra vez, por sua filha e pelos “padres” vaticanos que não conhecem o que é o sofrimento pela morte de uma filha.
Retorno ao tema. É um documento bom, como todos os da Congregação, bem organizado e construído, mas não parecia necessário, pela consequência prática que tira:
– Certamente, admite a cremação dos cadáveres, coisa que a Igreja já tinha admitido há algum tempo, embora com a oposição de alguns eclesiásticos, mas insiste nas quatro proibições que assinalei. Certamente, compartilho a preocupação do documento pelo respeito aos mortos, seus corpos e cinzas. Mas, penso que neste momento o tema mais apropriado não é aquele que a Congregação apresenta agora.
Um amigo me disse após fazer a leitura do documento:
– Ou a Congregação para a Doutrina da Fé não tem um tema melhor no qual pensar, e deve fazer algo para justificar sua existência, ou já não sabe mais nada do que acontece no mundo.
– A imensa maioria dos párocos não vai perguntar aos familiares se vão enterrar o defunto ou cremá-lo, nem se vão conservar suas cinzas em um columbário do cemitério paroquial ou espalhá-las na natureza (mar, rio ou montanha).
Certamente, um determinado tipo de Igreja segue preferindo o enterro dos cadáveres, por tradição, por proximidade afetiva ao cemitério e pela sobrevivência de uma profunda religiosidade cósmica, da qual procede a maioria de nós. Como homem da antiga Igreja, também eu prefiro afetivamente o cemitério, um cemitério de povoado ou de aldeia, perto da igreja, como neste em que vivo, em que as mulheres do lugar vêm para rezar pelos seus mortos.
Mas, cinco razões me levam a colocar em dúvida o valor e a atualidade do que diz a Instrução Ad Resurgendum cum Christo, sobre funerais e enterros (que reproduzo na sequência):
1. Por lembranças da infância. Minha avó, assim como todas as mulheres da aldeia, ia todos os domingos ao cemitério para rezar pelos defuntos... e meu pai nos disse que isso era muito santo. Mas, acrescentou que também era santo o corpo dos mortos que não tinham tido sepultura de Igreja, como aquele marinheiro que acabavam de “sepultar” no mar, duas semanas antes, sob o toque de sirenes, com a oração do capitão e de toda a tripulação e dos passageiros, sabendo que seria imediatamente devorado pelos peixes, nas águas cheias de tubarões do Caribe. Como lobo do mar, cristão velho, sabia que as águas do mar são um dos melhores cemitérios para os defuntos, esperando a ressurreição. Se as coisas fossem de outra maneira (disse-nos) e só os do bom cemitério da Igreja se salvassem, Deus seria injusto.
2. Por inovação cristã. Os seguidores de Jesus veneram um homem cuja memória não se encontra vinculada a um cemitério. Quando o anjo da páscoa disse às mulheres que vão para rezar por ele (como fazia a minha avó) “ele não está aqui”, estava iniciando uma nova forma de entender a vida dos mortos, mais além da simples sepultura, entendam como queiram depois os teólogos o que essa passagem da Bíblia implica sobre o corpo do Crucificado.
Para a Bíblia de Jesus, o importante é a preocupação com os vivos, mais que o bom rito dos mortos, como acabo de salientar no Comentário de Marcos, cujo comentário terminei nestes dias, com uma longa análise sobre sepultura e ressurreição, algo que, pelo que parece, não importa aos clérigos deste documento, que podem saber muita teologia de um tipo, mas pouca Escritura e Evangelho.
3. Por respeito religioso. Os homens e mulheres veneraram desde a antiguidade de diversas maneiras os mortos, de modo que os enterraram, cremaram ou recordaram de outras formas. Ainda hoje me emocionam os enterros funerários dos velhos povos, em colinas e montanhas, dólmens, trílitos... Eles continuam a me recordar a presença e a vitória da vida na própria natureza. Mas sei que existiram também outras formas de expressar o respeito pelos mortos, e entre elas sobressai a “semeadura” das cinzas enterradas ou cremadas nos mais diversos lugares da terra, na terra inteira convertida em grande cemitério de milhares de gerações de viventes.
4. Por inutilidade. Independentemente do que disser a Congregação para a Doutrina da Fé, a imensa maioria dos párocos vai continuar a fazer o que puder, o que melhor sabe, sem entrar muito na questão de se os que pedem um funeral por seu morto vão enterrá-lo ou cremá-lo, vão conservar suas cinzas em um columbário de cemitério ou espalhá-las com respeito e amor em rios ou montanhas, nos mares e nos campos. Ninguém acredita que os agentes de pastoral vão seguir, nesse campo, as diretrizes da Congregação para a Doutrina da Fé, simplesmente porque têm outras coisas mais importantes para fazer, especialmente as obras de misericórdia pelos vivos, as seis de São Mateus. E, além disso, o que acontece com os corpos empregados nas faculdades de Medicina, com maior ou menor respeito, para fins de estudo? Também vão proibir o seu uso?
5. Finalmente, neste momento de mudança de mentalidade, neste umbral de um tempo novo, os pastores cristãos (bispos, presbíteros, teólogos e catequistas...) devem preocupar-se em oferecer uma doutrina e experiência assentada na esperança sobre a vida dos defuntos, a comunhão dos santos (mais do que ocupar-se de pequenos ritos como os deste documento). Segue sendo admirável o fervor dos cristãos que criaram imensos cemitérios subterrâneos (catacumbas...) para enterrar os defuntos. De sua fé vivemos; a partir dela devemos avançar. Mas, hoje, já não se pode impor um costume e uma experiência antigos nas imensas megalópoles, por falta de terra, por mudança de mentalidade... e, talvez, pela fé cristã, pois o nosso Deus é um Deus de vivos, não de mortos, como disse Jesus.
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Xabier Pikaza: “Minhas reservas ao documento sobre ‘as cinzas dos mortos’” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU