15 Outubro 2016
Botos, ariranhas, tartarugas, peixes, pássaros e macacos estarão em risco se 246 represas continuarem a funcionar na Amazônia — principalmente na bacia do Tapajós e nas nascentes dos Andes.
O aumento das hidrelétricas na Amazônia ameaça várias espécies em extinção e coloca habitats únicos em risco, alerta estudo recente.
A reportagem foi publicada por Mongabay e reproduzida por Envolverde, 13-10-2016.
Botos, ariranhas, tartarugas, peixes, pássaros e macacos terão seus habitats alterados por represas hidrelétricas, e algumas espécies poderão ser extintas por completo, revelou a equipe internacional de biólogos que estudou os impactos associados com as 191 represas em funcionamento na Amazônia e as 246 represas já planejadas ou em construção.
Os pesquisadores também identificaram interações negativas entre a construção de represas, a mineração, a agricultura industrial, o comércio, o transporte, as mudanças climáticas, a migração humana, e as atividades relacionadas à biodiversidade e aos ecossistemas, demonstrando como os impactos podem se multiplicar de várias maneiras devastadoras.
Em termos ambientais, os mais diretos e óbvios impactos causados pelas represas e relatados no estudo recaem sobre a vazão e a conectividade entre as águas. Nutrientes que descem rio abaixo pelos Andes são interrompidos por represas. Os pulsos de inundação, que são uma parte vital para os ciclos de vida de muitas espécies, são modificados pelos reservatórios e pelos padrões de fluxo que as represas criam e controlam. A complexidade do habitat se extingue e espécies como o boto se isolam em determinados trechos do rio entre as hidrelétricas, o que torna as subpopulações menores vulneráveis à extinção.
Peixes que migram ao longo dos canais fluviais têm suas rotas bloqueadas, incluindo a recentemente descrita migração em massa de peixes-gato que nadam distâncias de 370 quilômetros enquanto pesam menos que a metade de uma grama. A diversidade dos peixes de água doce na Amazônia é a maior do mundo, com mais de 2500 espécies, a maioria endêmica da região. O estudo conclui que muitas espécies estão em risco direto de extinção devido à construção de represas.
Não são apenas as espécies aquáticas que correm perigo. A biodiversidade amazônica nasce, em parte, da riqueza de habitats que a região contém, como ilhas, várzeas e afloramentos rochosos. Tais ambientes oferecem habitats importantes não só para peixes e plantas aquáticas, mas também para animais terrestres, incluindo primatas, pássaros e morcegos.
“Rios – ou seções de rios – caudalosos que desaguam em inclinações íngremes são uma exceção, e não a regra, na planície amazônica”, explica Carlos Peres, coautor do estudo da Universidade de East Anglia, no Reino Unido. “Estes rios são característicos dos escudos geologicamente arcaicos da Guiana e do Brasil (ao norte e ao sul do Rio Amazonas, respectivamente) e estão ligados normalmente a canais fluviais mais estáveis e rochosos em uma escala de tempo evolutiva. Sendo assim, as biotas terrestres e aquáticas presentes nesses habitats um tanto quanto únicos – altamente cobiçados pelas hidrelétricas – são mais propícias a serem endêmicas das bacias hidrográficas da região”.
“Os que continuam perdendo mais, neste caso as espécies que correm risco de extinção global, são os microendêmicos restritos àquelas seções rápidas [de rios] impulsionadas pelos construtores das usinas”, informou Alexander Lees, líder do estudo, à Mongabay.
“Espécies de ilhas fluviais também estão em risco de inundação – especialmente em torno do Rio Madeira, por exemplo, que possui um conjunto de espécies de aves com alcance restrito”, disse Lees, da Universidade Cornell, nos EUA.
Outros pássaros em risco incluem o choca-preta-e-cinza, que possui diversas subespécies restritas a ilhas e várzeas, que, segundo Lees, “continuam perdendo uma proporção significativa de seu alcance global”, assim como o chororó-do-rio-branco, criticamente ameaçado de extinção “por conta das usinas já planejadas ao longo do Rio Branco”.
As consequências devastadoras não estão limitadas à Amazônia, pois se propagarão pela América do Norte: habitats importantes para aves migratórias que passam o verão no Norte e o inverno na Amazônia também podem ser extintos.
O estudo também assinalou equívocos comuns sobre a construção de hidrelétricas, apontadas como uma fonte elétrica sustentável para as populações urbanas e rurais do Brasil. Além de as hidrelétricas amazônicas não serem sustentáveis – os reservatórios inundam a floresta e submergem árvores, fazendo com que o solo libere altas quantidades de metano, um gás estufa potente -, a população da região não é a que mais se beneficia da eletricidade que as usinas geram.
“As indústrias são os principais beneficiários”, revela Philip Fernside, coautor desse estudo, à Mongabay. “Apenas 22% da eletricidade brasileira é voltada ao consumo doméstico”.
Christian Poirier, Diretor do Programa Amazon Watch, que não estava envolvido no estudo, acrescentou: “Está claro que a grande força por trás da construção das hidrelétricas na Amazônia é o apetite voraz por energia das indústrias de mineração, e não as necessidades das casas comuns”.
“Usinas como Belo Monte reservam 30% de sua energia para a indústria de mineração, ao passo que o complexo planejado do Tapajós foi projetado para prover energia aos processos de extração e fundição de bauxita da região”, acrescentou.
“O incentivo para a construção de grandes usinas em regiões amazônicas remotas e ricas em minérios, onde a transmissão de energia para os centros urbanos é ineficiente e proibitivamente cara, pode ser entendido como uma doação subsidiada pelo poder público aos interesses do agronegócio e da mineração corrupta e insustentável do país”, concluiu Christian. No momento, um escândalo de corrupção no Brasil tem envolvido alguns personagens-chave no setor hidrelétrico, aumentando o ceticismo sobre os verdadeiros benfeitores do boom envolvendo a construção de usinas.
O estudo conclui que a grande necessidade de energia por parte das empresas privadas que buscam lucro na extração de bauxita, níquel, cobre e ouro será facilitada pela expansão hidrelétrica altamente subsidiada pelo governo. Porém, as conexões entre diversos setores comerciais não se restringem a isso: no Rio Xingu, a controversa e recentemente autorizada Usina Belo Monte levará a uma redução de fluxo de 80% no trecho de 100 km conhecido como Volta Grande. Segundo o estudo, uma empresa canadense pretende explorar este leito de rio recentemente exposto e, para tanto, adquiriu uma concessão de 1.305 km2 para a mineração de ouro.
Usinas e minas também causam, em conjunto, um grande impacto sinérgico, ainda que indireto, no meio-ambiente: a contratação de trabalhadores e o consequente desemprego quando o projeto finaliza leva a mais desmatamento e degradação dos habitats, especialmente em virtude do corte ilegal de madeira e da caça.
Usinas também promovem a rápida expansão da agricultura industrial e do comércio, outra má notícia para a floresta tropical, particularmente em partes da bacia amazônica que um dia foram remotas. “Vias navegáveis para transportar soja estão sendo planejadas em conjunto com usinas na bacia do Rio Tapajós, e na Bolívia, em conjunto com as usinas do Rio Madeira”, afirma Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. “Esses projetos trazem grandes implicações para o desmatamento e fogem ao atual sistema de licenciamentos ambientais para usinas no Brasil. Não só o sistema de licenciamentos precisa ser fortalecido, mas, mais fundamentalmente, o sistema que envolve as tomadas de decisão precisa ser revisto”.
Todo o estrago é agravado pelos danos causados pelas usinas às comunidades ribeirinhas que são por elas deslocadas: a construção da Usina Belo Monte tem tido um efeito tão prejudicial nos povos indígenas que o governo e as empresas responsáveis têm sido processados por etnocídio.
Então, o que pode ser feito? Alguns pedem pela completa suspensão da construção de hidrelétricas e a adesão a fontes alternativas de energia. “Os impactos socioambientais inaceitáveis causados por projetos de represas no passado e no presente deviam levar os formuladores de políticas a instaurar uma moratória imediata em novos projetos de grandes represas por toda a bacia”, disse Poirier.
Fontes alternativas de energia são abundantes e ofereceriam maior segurança quanto ao fornecimento de energia do que as represas, que são mais propensas a apresentar quedas em sua capacidade de gerar energia em cenários que envolvam recorrentes mudanças climáticas e desmatamento. “O Brasil tem um tremendo potencial para energia solar e eólica”, diz Feranside. “O país possui extensos litorais com ventos constantes. Estudos mostram que matrizes marítimas de torres altas construídas na plataforma continental podem abastecer toda a eletricidade do Brasil”.
Ao que tudo indica, tais alternativas não serão criadas em um futuro próximo. Segundo Fearnside, “[a] preferência do governo por hidrelétricas é clara. Em janeiro de 2016, a [então] presidente vetou a inclusão de qualquer fundo para ‘energia renovável não-hidráulica’ no plano de desenvolvimento para os próximos cinco anos”.
Poirier explica que outra opção para proteger a biodiversidade é atuar dentro de um sistema existente, uma vez que “a modernização das redes elétricas sabidamente insustentáveis… reduziria drasticamente a demanda e pouparia os últimos rios de curso livre da Amazônia”. Além disso, se o governo continuar a construir represas, “os responsáveis pelo setor de energia devem também respeitar os direitos dos povos indígenas e tradicionais de serem plenamente consultados e ouvidos antes de qualquer planejamento que afete suas terras, culturas e estilos de vida”.
O estudo conclui que os locais para novas represas na Amazônia também devem ser mais bem analisados, com uma avaliação de toda a bacia quanto a custos e benefícios — ambientais, sociais e financeiros — a ser feita antes de qualquer construção. Segundo Lees, “tem sido coletada uma grande quantidade de dados relacionados à biodiversidade durante avaliações de impactos, mas isso não foi traduzido em avaliações sobre o risco de extinção das espécies de alcance restrito e análises de custo benefício efetivas entre os ganhos econômicos e a degradação dos ecossistemas e da biodiversidade”.
Há esperança de progresso com relação à proteção da biodiversidade na proposta de Lei de Licenciamento Ambiental que abordará algumas dessas questões, mas “com a instabilidade atual do Congresso Brasileiro, a nova lei provavelmente não será promulgada em 2016”, disse Mauricio Schneider, coautor do estudo e consultor legislativo na Câmara dos Deputados. Essa esperança, no entanto, é abalada por uma proposta de emenda constitucional que está tramitando rapidamente no Congresso Nacional e que visa acabar com a atual exigência de um extenso processo de licenciamento de impacto ambiental para grandes projetos de infraestrutura fomentados pelo governo federal – uma ação com a provável intenção de acelerar a construção de represas na Amazônia.
Ironicamente, os desafios que o Brasil tem de enfrentar talvez sirvam para que a Amazônia ganhe tempo. Segundo Schneider, “o Brasil tem frequentemente escolhido soluções energéticas caras e subsidiadas em larga escala ao invés de programas de eficiência energética ou sistemas de distribuição. Revezes econômicos, um escândalo de corrupção envolvendo a represa Belo Monte e as grandes empreiteiras sendo processadas judicialmente … vão adiar a construção de novas hidrelétricas”. Schneider acrescenta que “talvez haja algum efeito colateral bom em meio a tantos interesses escusos”.
Mapa que mostra a distribuição de barragens na Amazônia, com o tamanho do círculo que representa a potência. Círculos vermelhos mostram onde centenas de represas foram propostas, com concentrações elevadas nas regiões de cabeceiras dos Andes e da bacia do Tapajós. (Foto: Cortesia/ Alexander lees / Envolverde)
O futuro da biodiversidade é, portanto, incerto, mas há oportunidades de agir e assegurar um futuro mais positivo tanto para a Amazônia quanto para as pessoas e a fauna que dela dependem.
“O futuro dos ecossistemas amazônicos e dos empreendimentos destrutivos como a construção de represas não está escrito em pedra” diz Fearnside. “Eles dependem das escolhas da sociedade em cada país amazônico. Os interesses dessas sociedades seriam mais bem atendidos se as políticas que favorecem cada vez mais as represas fossem revistas”.
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Represas ameaçam a biodiversidade amazônica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU