03 Agosto 2016
Os trilhos do metrô não chegam a toda São Paulo e, quando chegam, perdem a oportunidade de levar uma de suas principais vocações: desenvolvimento urbano em áreas periféricas. Segundo o urbanista Geraldo Moura, há várias explicações para isso, mas uma das principais é que o sistema metroviário não está sendo pensado para responder a pergunta “que cidade queremos?”, mas apenas para reforçar lógicas já estabelecidas. Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade São Paulo, Moura fala sobre transporte, desenvolvimento urbano e os principais desafios do próximo prefeito de São Paulo do ponto de vista urbanístico.
A entrevista é de André de Oliveira , publicada por El País, 02-08-2016.
Eis a entrevista.
Em outubro temos eleições municipais. Transporte sobre trilhos é uma atribuição da administração estadual, mas levando em conta que mobilidade é uma das principais questões de São Paulo, quais serão os desafios de um próximo prefeito?
Em minha opinião, são sete pontos que devem ser levados em consideração. 1) Trazer “cidade” para regiões dormitórios. Implantação de equipamentos de transporte, com equipamentos integrados nas regiões de estações de metrô e corredores de ônibus é fundamental. 2) Trazer gente de volta para o centro. É garantir acesso para que a pessoa possa morar perto das oportunidades. 3) Inibir a cidade murada. É incentivar a proliferação de espaços de convívio, principalmente de convívio entre diferentes. 4) Impedir a proliferação dos condomínios. O condomínio dificulta a continuidade das infraestruturas, principalmente de transporte, e faz com que os bairros fiquem “monossociais”, que uma camada social fique cada vez mais distante da outra, o que torna a cidade mais desigual. É preciso inibi-lo. 5) Tirar espaço de carros. É dar, claramente, cada vez mais espaço para ônibus e meios não motorizados.
Antes de você completar a lista, já é possível dizer que muitos desses pontos coincidem com medidas tomadas por Fernando Haddad. Apesar disso... A popularidade dele não é boa. Aliás, tudo indica que ele terá muitas dificuldades para se reeleger.
Sim, mas não estou falando da disputa política pequena, mas de cidade. Acredito que esse é um preço pago pelos governantes que ousaram enfrentar a questão. Em Bogotá, com o prefeito Enrique Peñalosa, que nunca poderia ser chamado de esquerda, aconteceu algo semelhante. Ele fez o que era preciso, transformou a cidade em uma referência para a mobilidade, e não se reelegeu. [Depois de 12 anos, Peñalosa foi eleito novamente agora]. Acho que justamente por ter acertado, a atual Prefeitura de São Paulo pode ter se inviabilizado eleitoralmente.
E por que isso acontece?
Porque mudar a cidade requer mexer em questões estabelecidas. A questão das bicicletas é exemplar disso. Ela não é só um modo de mobilidade, mas um jeito de fazer essa repactuação do espaço público. É claro que ao longo do processo tem sofrimento: a bicicleta vai, obviamente, acabar se tornando perversa em algumas situações para o pedestre, além de tomar parte do espaço anteriormente destinado aos veículos, e isso vai gerar reclamações. É um processo conflituoso, mas necessário se queremos falar de mobilidade. E, mais uma vez, não dá pra falar de transporte sem falar de cidade, de espaço. Nunca é demais lembrar o Milton Santos: “o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”.
E quais são os outros dois pontos da lista de sete?
Vamos lá. 6) Induzir uma cidade mais compacta. O que significa impedir a proliferação de periferias cada vez mais distantes. 7) Vincular adensamento com infraestrutura de transporte. Ou seja, é adensar áreas que ficam perto dos eixos de mobilidade, como metrô e corredores de ônibus. É curioso notar que isso também começou a ser feito pela atual gestão. O novo Plano Diretor da cidade prevê que haja adensamento habitacional nos principais eixos de transporte.
Ou seja, apesar da Prefeitura não ser responsável pelo metrô, quando falamos em mobilidade, falamos de outras questões. Certo?
Sim e é por isso que mobilidade não se resume a uma questão técnica, que fazer metrô não pode ser apenas uma discussão tecnológica, como tem sido muitas vezes. Não dá pra falar de transporte e não falar de planejamento urbano. São Paulo tem uma região metropolitana da ordem de 20 milhões de habitantes. As oportunidades, contudo, estão extremamente centralizadas. Isso é fruto de uma lógica em que as pessoas vivem longe e tem que se deslocar muitos quilômetros para trabalhar. O que é preciso é levar cidade para onde só tem gente morando. E qual é um modo de fazer isso? Construir metrô, transporte, mas isso não basta. Junto com o metrô, é necessário pensar equipamentos que façam as pessoas quererem se mudar para perto das estações. É levar escola, emprego, faculdade, lazer e garantir também que pessoas alijadas pela lógica do mercado imobiliário possam morar nas imediações de maneira adequada. Ou seja, o grande problema de quando falamos em transporte é que ele é pensado sozinho. Não dá para fazer assim, o planejamento tem que vir todo junto.
Se fosse de responsabilidade da prefeitura, você acredita que o sistema metroviário paulistano teria mais sucesso?
O Metrô não se limita a uma cidade, é um transporte metropolitano, por isso, mais do que a questão de se é uma responsabilidade do Estado ou da Prefeitura, a verdade é que no Brasil temos carência de entidades metropolitanas. Os comitês que gerenciam as bacias hidrográficas são, talvez, um exemplo mais próximo de como a questão deveria ser trabalhada. É um desafio, porque às vezes, em uma única mancha urbana, você tem oito, dez prefeituras de partidos diferentes. Só que a existência dessa entidade facilitaria muito, porque o Governo estadual não entende nada da relação urbana do poder local. E a questão fundamental quando falamos de transporte, mais do que qual tecnologia usar, é que tipo de cidade nós queremos.
Como assim?
De todas as estruturas da cidade, as de transporte são as que mais induzem o crescimento do território. Quando o Metrô vai fazer uma linha nova, ele trabalha com a pesquisa Origem e Destino. Ele pergunta para as pessoas de onde elas vêm e para onde vão. A partir daí, estabelece o traçado. Tudo certo? Não. Porque você reforça a lógica, presente no desenho de avenidas da cidade, que é muito anterior ao metrô, de morar longe e trabalhar no centro. A pesquisa Origem e Destino só reforça isso, logo, o traçado do metrô também. Chega uma hora que essa dinâmica de deslocamentos fica inviável. É só entrar na Sé, às 17h30 da tarde, e ver o que acontece.
Qual é a alternativa?
É quebrar essa lógica que chamamos de “radiocêntrica”. E isso não pode partir apenas de uma questão técnica, mas de se perguntar que cidade nós queremos. Toda nova linha de metrô deveria vir com medidas de planejamento territorial. São Paulo é um dos lugares do mundo em que as pessoas mais se deslocam da periferia para o centro, do centro para a periferia, para trabalhar. Por isso não dá para tratar a questão do transporte público como uma questão estritamente técnica.
O Metrô não tem levado desenvolvimento urbano para a cidade?
A questão aqui, que é a mesma que eu coloquei na minha tese, é: por que o Metrô fala uma coisa e faz outra? Ele sempre defendeu que o sistema metroviário é um indutor de crescimento, de planejamento urbano, mas isso nunca aconteceu de fato.
Nem na construção da Linha 3 – Vermelha, que vai até Itaquera, na zona leste da cidade?
Ali isso esteve próximo de acontecer, mas vamos fazer alguns recortes históricos para responder isso. Na época da construção da Linha 1 – Azul, o primeiro trajeto da cidade, já se sabia que o traçado mais carente e importante era o Leste-Oeste, mas o Norte-Sul foi privilegiado na construção da linha, sob a justificativa que a região leste era atendida pela RFFSA – atual CPTM. Mas, um dos motivos centrais parece ser claro: havia espaço para o mercado imobiliário expandir na ponta sul da cidade. E qual é o sentido de construir a Linha 2 – Verde na Avenida Paulista? Ela operou durante anos só naquele trecho, sem ligação com outras linhas. A Linha 3 – Vermelha, por sua vez, que é a segunda a ser construída na cidade, além de fazer a ligação necessária (Leste-Oeste), também tinha um plano de desenvolvimento, com planejamento habitacionais, áreas de interesse, etc.
E o que deu errado?
Foi um problema institucional. Até a construção da Linha 3 – Vermelha, na década de 1970, a responsabilidade era, em maior parte, da Prefeitura. Naquela época, contudo, ele passa para o âmbito estadual, que tem maior poder de investimento. No caminho, perdeu-se a preocupação de planejamento urbanístico quando o assunto é metrô. Por isso, eu falava sobre uma entidade metropolitana que conseguisse juntar visões diferentes.
E em que pé estamos hoje?
Continuando a digressão histórica, é simbólico que o trajeto mais novo da cidade, a Linha 4 – Amarela, tenha começado a operar justamente na Faria Lima e que seu trecho que iria um pouco mais longe não foi entregue até hoje. Por volta dos anos 1990, houve um momento em que o Metrô, já fora do âmbito da Prefeitura, perdeu completamente a preocupação com a cidade. E isso vem muito na esteira de uma lógica neoliberal de iniciativa privada. A linha com a iniciativa privada, como é o caso da amarela, tem dois problemas: o que é vantajoso para o mercado em termos de deslocamento? Que as pessoas peguem muito trem e o use para pequenos deslocamentos. Isso significa mais lucro. Só que o metrô é sistêmico. Se a pessoa tem que fazer 28 trocas de trens para ir do ponto B ao X, ela pagará só uma passagem e na lógica do mercado isso é péssimo. Quer dizer, tanto faz quem opera a linha: se é iniciativa privada ou pública. Mas algumas questões tem que ser respeitadas e a prática vem mostrando que elas não são.
Comparativamente com outros países do mundo, inclusive da América Latina, São Paulo perde feio em quilometragem de metrô. Mas em relação a outras cidades brasileiras, ganha. Por que a falta de trilhos nas grandes cidades é uma problema nacional?
É uma pergunta com várias respostas. Uma delas é a opção rodoviarista que foi feita, pela primeira vez, lá em 1930. É só lembrar que o lema do Washington Luís era “governar é abrir estradas”. Em 1956, o Juscelino Kubitscheck aprofundou isso ao trazer a indústria automotiva. Depois, os militares foram ainda mais fundo e acentuaram essa tendência. Duas outras coisas explicam. A primeira é que o investimento ferroviário inicial é maior do que o rodoviário e, apesar de ao longo prazo os custos de manutenção caírem, o investimento não funciona para o timing eleitoral. A segunda questão, fundamental, é que a capilaridade do sistema rodoviário te permite um mercado imobiliário muito maior e sem controle. É bem aí que se perde o debate. Vamos pensar: se você abrir uma ferrovia, o crescimento ficará condicionado aos arredores das estações. Se você fizer uma rodovia, a mancha urbana pode se estender em qualquer ponto. O que é melhor para o mercado imobiliário?
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“O condomínio torna a cidade mais desigual. É preciso inibi-lo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU