20 Mai 2016
"Saio do sério quando vejo o santo do século IV ser culpado pela falta de visão em suas manifestações sobre temas que, na sequência, moldaram, de forma indelével, a teologia cristã: o pecado original, a misoginia, a predestinação. Agostinho estava apenas tentando pensar em voz alta na medida em que, como gosto de dizer, se fazia as grandes perguntas e se esforçava para se sair com uma perspectiva plausível em seu contexto limitado: eis o que todos nós somos e o que deveríamos estar fazendo. Não reifiquem as suas respostas. Proponham-nas as suas próprias", escreve Wendy M. Wright, professora de teologia e coordenadora das ciências humanas da Creighton University, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 16-05-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Deve ter sido em 1971 ou 1972. O livro “Confissões” de Agostinho havia sido colocado, juntamente com outras fontes primárias, como leitura obrigatória para uma disciplina de história medieval na Universidade Estadual da Califórnia, em Los Angeles. O professor, um sujeito de meia idade, cabelos cumpridos, uniformizado com um sobretudo com mangas até o cotovelo, tinha apresentando todos os textos obrigatórios do semestre num tom desapaixonado para um historiador social.
De minha parte, não possuía contexto algum a partir do qual avaliar o que ele descrevia como a primeira autobiografia o mundo ocidental. Agostinho de Hipona era um nome desconhecido para mim, assim como o era Suetônio, autor da história crivada de escândalos em torno dos imperadores romanos, outro daqueles textos que se-me-apresentavam como uma série de páginas que eu tinha de ler ao longo das próximas semanas.
Em estava em meus 20 e poucos anos; era uma típica aluna da citada universidade, que recebia uma população diversa e pouco tradicional. Não era a minha primeira incursão na educação superior: em sintonia com o ethos flutuante e libertário de minha geração, participei fugazmente de várias outras instituições depois de acabar o ensino médio, passando pelos departamentos de música, teatro musical e artes dramáticas, finalmente abandonando os salões consagrados da academia para buscar uma carreira profissional no show business. Afinal de contas, Hollywood era a minha cidade natal.
Por vários anos, trabalhei em atividades assalariadas em que tive de usar uma variedade de fantasias conforme me eram exigidas: como cantora e dançarina na Disneyland Kid of the Kingdom (usei um uniforme branco combinado com uma parte em couro na cor laranja tipo Mary Janes); viajei os Estados Unidos com uma apresentação bancada pela Pure Oil (usando alternadamente um lamê dourado coberto com penas de avestruz e um macacão azul que escorregava para revelar um maiô amarelo claro); apresentei-me com a multicultural Intercity Repertory Company, de Los Angeles, no West Side Story (representando uma imigrante porto-riquenha); e passei uma temporada num conjunto musical dos anos 90 em Paris antes de estrear na Broadway.
Em algum momento ao longo do caminho, entre viagens e testes para comerciais de TV nos quais a modelagem da nossa perna era uma exigência maior do que a nossa capacidade de proferir um solilóquio shakespeariano, desisti deste mundo do show business e voltei aos estudos, saindo do teatro e indo para a história.
Agostinho não havia aparecido em minhas listas de leituras até então. Tampouco estava escondido entre os muitos tomos que meus pais mantinham nas prateleiras de nossa casa. Na qualidade de filha única daquilo que o meu pai costumava descrever como um casal boêmio de classe média alta – um projetista de joalherias e uma escritora –, fui exposta à literatura clássica, mas não a do tipo religioso.
A direção do meu compasso moral orientava-se pelo pacifismo não religioso dos meus pais e pelo engajamento no ativismo político não violento. Ao mesmo tempo, vivenciei desde tenra idade o que se pode descrever como uma sensibilidade espiritual, uma sensação da presença de Deus que, vendo hoje, só posso atribuir à presença contínua de uma ama afro-americana profundamente religiosa que me cuidou durante os meus primeiros anos de vida.
A minha família não ia com regularidade a cultos ou missas. Eu tive uma certa exposição à religião no ensino fundamental através da Primeira Igreja Congregacional de Los Angeles (First Congregational Church of Los Angeles), cujo pastor pacifista o meu pai veio a conhecer.
Assim que minha mãe soube de minhas qualidades de cantora e fora aconselhada de que a melhor formação para alguém assim era participar do coro da igreja, fui matriculada num coral presbiteriano, respeitado por seu ótimo programa musical. A minha sensibilidade inata, ou talvez a minha sensibilidade formada com a ajuda de minha babá, desenvolveu-se em seguida com a prática de cantar hinos e os salmos.
A participação na igreja não era o objetivo de eu estar matriculada no coral. Isso veio com o meu treinamento musical. Os meus pais arriscavam comparecer uma vez por ano nos festivais musicais e, apesar de meu amor por música, afastei-me do programa durante os anos em que cursei ensino médio, quando novas oportunidades musicais se apresentaram.
Na época em que me deparei com aquele curso de história medieval, há muito me encontrava distante de alguma prática religiosa formal. Iniciei a minha incursão na obra “Confissões” – edição Penguin Classics, traduzido por R.S. Pine-Coffin – como fazia com qualquer outro texto universitário.
Em pouco tempo, a narrativa em primeira pessoa me conquistou, tomada que estava pelo tecido dos lamentos de Agostinho: “Ouça-me ó Deus!”; “O que é então o Deus que eu cultuo?”; “Quem vai me permitir descansar contente em ti?”; “Por que tu significas tanto para mim?”
O roubo de peras, recordações da infância. O aluno de latim lamentando-se da morte de Dido. O jovem apaixonado, perdido nas delícias da fornicação. Os frequentadores vorazes do teatro que aplaudem a tragédia ersatz. O sujeito sedento que bebe o licor dualista do maniqueísmo até a última gota. O filho errante que foge das súplicas de sua mãe importuna. O amigo companheiro que se debate com os imponderáveis junto de seus companheiros filosóficos. O adulto que rejeita a sua amada e lamenta as mortes do amigo e seu filho.
Maldade, eternidade, materialidade, espírito, culpa, graça, volição: as reflexões de Agostinho me conduziram ao longo da narrativa até o ponto onde, à beira da conversão, ele se põe debaixo de uma figueira a gritar: “Por que não agora?” e a tensão dramática se desvanece.
A tarefa que nos fora posta na disciplina de história era ler todo o livro. Assim, embora parte de mim achava que esse passado já estaria acabado, perseverei ao longo das reflexões retrospectivas de Agostinho a respeito do livre arbítrio, do orgulho, da memória e da morte piedosa de sua mãe reconciliada.
Entretanto, sem conhecimento de mim, o meu ponto mais verdadeiro com as Confissões ainda estava por vir: o Livro X, Capítulo 27 para ser exato.
“Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! E eis que estavas dentro de mim e eu fora, e aí te procurava, e eu, sem beleza, precipitava-me nessas coisas belas que tu fizeste. Tu estavas comigo e eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti aquelas coisas que não seriam, se em ti não fossem. Chamaste, e clamaste, e rompeste a minha surdez; brilhaste, cintilaste, e afastaste a minha cegueira; exalaste o teu perfume, e eu respirei e suspiro por ti; saboreei-te, e tenho fome e sede; tocaste-me, e inflamei-me no desejo da tua paz.”
O que até então fora uma leitura interessante, uma história sedutora, um olhar fascinante para dentro de um outro mundo, agora era um autodespertar, um reconhecimento do grito de meu próprio coração.
Vários dias depois, vi-me batendo hesitante na porta da repartição onde o nosso professor ficava: em uma das aulas, ele havia informado sobre os dias em que estaria aí, com tempo livre. Sentada no outro lado da mesa, abri com cuidado o exemplar do livro que tinha comigo, já todo rabiscado de anotações, e passei a ler trechos e a soluçar...
Ele pausou, arrumou-se em sua cadeira e falou: “Esse livro afeta algumas pessoas assim”, disse ele numa reação fria.
Durante as décadas que se passaram desde então – anos que incluem a minha própria conversão, o meu casamento, o mestrado, três filhos, um doutorado e anos de ensino –, tive sempre Agostinho posto diante de mim inúmeras vezes.
Como aluna de pós-graduação em religião, aprendi a interpretar a transformação confessional interior do bispo de Hipona através das lentes da superbia e da humilitas.
Como professora-adjunta sem experiência ainda, fiquei feliz com uma observação feita por um aluno, de que a obra Confissões é “uma história sobre duas árvores”.
Como pesquisadora da espiritualidade cristã, fui surpreendida por uma série de exemplos com figuras históricas que pediram que as Confissões, muitas vezes aquele mesmo Livro X, fosse lido no leito de morte. Numa ocasião, um guia ou confessor espiritual, muito embora ignorando completamente a minha relação com o livro, designaria aquele importante parágrafo para a minha reflexão orante.
Além disso, eu muitas vezes saio do sério quando vejo o santo do século IV ser culpado pela falta de visão em suas manifestações sobre temas que, na sequência, moldaram, de forma indelével, a teologia cristã: o pecado original, a misoginia, a predestinação. Agostinho estava apenas tentando pensar em voz alta na medida em que, como gosto de dizer, se fazia as grandes perguntas e se esforçava para se sair com uma perspectiva plausível em seu contexto limitado: eis o que todos nós somos e o que deveríamos estar fazendo. Não reifiquem as suas respostas. Proponham-nas as suas próprias.
Com tudo isso, e mesmo com edições mais recentes da clássica autobiografia sendo lançadas, eu mantive comigo aquela versão original, agora já bastante desgastada, com suas páginas amareladas, com minhas anotações a caneta, de cima a baixo em suas margens. É a ela que me volto, e não à investigação acadêmica, quando rezar é o meu motivo para retornar à fonte.
Com certeza, existem outros livros espirituais e outros autores que, quando me perguntam, posso responder que tiveram um impacto formativo grande em mim também. A obra do Irmão Lawrence, intitulada “The Practice of the Presence of God”, foi uma fonte de alimentação pessoal diária ao longo do curso de uma década depois que me uni à Igreja Católica. E o senso comum inspirado, embevecido nos variados escritos de Francisco de Sales, modelaram-me e me desafiaram por mais de 30 anos enquanto apliquei as minhas habilidades acadêmicas para analisar, traduzir e disseminar a rica herança do “Doutor do Divino Amor” do século XVII.
Mas nenhuma outra passagem registrada sobre uma página, catapultada ao longo de dezesseis séculos e em vastas extensões histórias e geográficas, chegou até mim – ou falou ao meu coração – da mesma forma como o fizeram aquelas palavras, capturadas na tradução eufônica de Pine-Coffin, que emergia do próprio coração confessante de Agostinho:
“Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei!”
Confessions
St. Augustine, translated by R.S. Pine-Coffin
Penguin Classics, 1961
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“Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei!” Uma leitura de 'As Confissões' de Agostinho de Hipona - Instituto Humanitas Unisinos - IHU